Opinião da investigadora Filipa Vala, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, sobre os contributos para o futuro da FCT, pedidos pelo Ministério da Ciência e do Ensino Superior. Publicado originalmente no Facebook e aqui transcrito com autorização:
O Ministério da Ciência abriu um debate público sobre o futuro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) - e fez muito bem. O ministro nomeou um "grupo de reflexão" a quem pediu contribuições. Entre esse grupo há 3 tipos de contribuições entregues: há quem contribua apenas em nome individual, há quem contribua "tendo ouvido uns colegas" e há quem contribua "em nome da sua unidade de I&D". Tenho problemas logo aqui porque nunca percebi o critério de escolha dos 30 membros do grupo de reflexão e tenho mais problemas agora porque duvido da representatividade destas contribuições em termos do Sistema Científico Nacional (SCN).
Mas depois há o nível das contribuições do grupo de reflexão. O sinal mais evidente de que as contribuições são medíocres é o facto de se perceber pela maioria delas exactamente a fase e/ou atividade do autor da contribuição, tornando óbvio o que é óbvio: cada um puxa a brasa à sua sardinha e ignora as sardinhas dos outros.
Por exemplo, "A bolsa de pós-doutoramento deverá ser vista como um período de formação avançada de jovens doutorados." De formação avançada em formação avançada até à juventude final! Obviamente a pessoa que escreveu isto tem, há bastante tempo, uma posição permanente, com direito a reforma, descontos, e subsídio de desemprego no caso de, algum dia, vir a ser dispensada. Obviamente até que esta pessoa nem durante o seu doutoramento esteve sem os direitos que agora entende "racionalmente" (é "formação avançada" de "jovens" doutorados) poder recusar aos outros;
ou: "Este é o grande segredo para a Rolls-Royce fazer a ponte entre a investigação fundamental e a investigação aplicada. Toda a investigação nos laboratórios é gerida pelos académicos responsáveis pelos laboratórios, todo o equipamento usado nestes laboratórios pertence às universidades e todos os alunos que trabalham nestes laboratórios têm bolsas pagas pelas FCT locais e pelos variados tipos de financiamento do Horizonte 2020. A Rolls-Royce apenas traça os objetivos estratégicos que pretende que sejam investigados nestes centros e disponibiliza as suas instalações industriais sempre que é necessário fazer a validação em ambiente real." O modelo de aproximação às empresas é portanto a empresa definir o que precisa e o estado pagar. Obviamente que quem fala é.. um empresário.
A mim, que sou adepta das audições públicas, o que me preocupa sempre é esta sensação de que se perde muito tempo a fazer coisas que até parecem uma boa ideia, mas que acabam por não servir para nada. E não seria assim tão complicado fazer uma coisa que servisse para alguma coisa.
Se o que se pretende é ouvir os problemas identificados por sectores e também propostas para lhes responder existem as contribuições sectoriais (da ABIC, dos Reitores, do SNESup etc) que o fazem muito melhor do que as contribuições individuais dos 30 do "grupo de reflexão".
Se o que se pretende também é complementar essa informação com as dificuldades específicas sentidas por cada área de conhecimento - e bem, porque as há -, então é possível nomear um comité científico com representantes de todas as áreas em que cada um fica encarregado de ouvir os seus pares, sendo que estes têm que ser de várias unidades de I&D - o que não é, de perto nem de longe, o que acontece neste "grupo de reflexão". Este grupo de reflexão não é representativo do SCN, não é representativo das áreas do conhecimento, não é representativo das unidades de I&D, e os seus membros não são representativos de diferentes fases ou sequer tipologias de carreira. Os 30 membros deste grupo de reflexão - aqueles que respondem a tudo, porque também há quem só responda à parte que lhe interessa - estão a propor respostas para perguntas para as quais não têm a mínima, mas a mínima, qualificação para responder.
Mas existem, por contraste, uns profissionais chamados gestores de ciência e existem também umas pessoas que trabalham numas coisas chamadas políticas científicas, políticas públicas de gestão de ciência... pá, e cenas assim. Não só existem como servem para isto mesmo, e sim, sabem muito mais do assunto que 80% dos membros do grupo de reflexão. E bastaria um pequeno grupo dessas pessoas (não é preciso 30, bastariam três, ou cinco, vá) a compilar e analisar as contribuições sectoriais, as contribuições por área do conhecimento, e as da própria FCT e compilar tudo numa proposta de visão e de gestão para a FCT e o SCN, proposta essa que seria depois re-discutida com os mesmos painéis e modificada no que fosse necessário para uma versão final, acordada por todos.
Era mais fácil e mais eficaz e certamente mais barato (porque ter 30 pessoas que já têm o seu trabalho a escrever tratados sobre a salvação da FCT à medida do seu umbigo custa muito à produtividade nacional). Mas se quiserem inspirar-se lendo as contribuições, aqui fica o link.
1 comentário:
Subscrevo totalmente! identifico-me com o que escreve a Filipa.
Quanto ao grupo de reflexão, que pretende representar todas as áreas científicas, acho estranho não estar nenhum representante da astronomia e a geologia..
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