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sexta-feira, 10 de maio de 2013

Sobre o erro disse Huxley...

"O remorso crónico, e com isto todos os moralistas estão de acordo, é um sentimento bastante indesejável. Se considerais ter agido mal, arrependei-vos, corrigi os vosso erros na medida do possível e tentai conduzir-vos melhor na próxima vez. E não vos entregueis, sob nenhum pretexto, à meditação melancólica das vossas falhas. Rebolar no lodo não é, com certeza, a melhor maneira de alguém se lavar."
Estas foram as primeiras linhas que Aldous Huxley escreveu no prefácio da edição de 1946 do Admirável Mundo Novo.

domingo, 15 de maio de 2011

Mea culpa

Precisamos todos de uma reconversão moral. Sim, mas o que é que isso obriga?

Obriga a uma transformação nos hábitos e nas mentalidades, ou seja, largar as escamas que nos cobrem por fora e deitar ao lixo o entulho que nos pesa por dentro. Mudar maneiras de ver e, sobretudo, de atuar. Continua a haver grande distância entre o que dizemos e o que fazemos, e sobretudo entre o que queremos dos outros, que é muito, e o que exigimos a nós mesmos, que é pouco.

Em Portugal passa a ideia de que os políticos, os poderosos, são gente que não se recomenda, mas nós, não: os que estão do lado de cá, os anónimos, são muito corretos. É evidente que isto é um disparate. Muitos dos políticos não são recomendáveis, de facto, e devíamos concentrar forças para os tirar do caminho, porque, além de enormes estorvos, são parasitas, o que é ainda pior. Mas há na política gente de primeira, competente, cheia de boa vontade e até com grande espírito de sacrifício. Porém, o país não os ajuda, impedindo, com as suas deficiências e maledicências, que os melhores vençam, acabando assim por se aliar aos que merecem as críticas.

Por isso se diz que temos os políticos que merecemos, porque sofremos quase todos dos mesmos vícios, e insistimos em velhas práticas de péssimos efeitos a nível social e económico. E de que até já vamos tendo consciência, mas que não conseguimos mudar; porque uns emperram, outros não percebem, muitos são desleixados e outros oportunistas. Além disso, vivemos bem com as pequenas corrupções e temos umas “humanidades” bacocas que protegem malandros, incompetentes e companhia

A doença está diagnosticada, mas nem por isso a cura é mais fácil, porque a meio há uma gangrena que garante boa saúde à infeção.

Claro que isto não retira a responsabilidade aos políticos, até a acrescenta, porque estão em lugares de decisão. Entre uma boa e uma má política os resultados, a longo prazo, são a salvação ou a desgraça. Todos sabemos isso. Mas a questão agora é como mudar mentalidades empenadas e doentes. E é aqui que os políticos falham. Poderemos dizer que eles não puxam por nós e nós não puxamos por eles. Como sair deste círculo vicioso?

Seria um bom começo se reconhecessem os erros. Seria excelente e prestar-nos-iam um enorme serviço. Mas eles nunca falham, nunca erram, nunca nos enganam, nunca mentem e a coerência é o seu forte. É certo que qualquer aprendiz de político sabe que raramente a moral se deu bem com a política. Em momentos como o atual, a melhor estratégia política seria a honestidade de reconhecer os erros, de não atirar as culpas próprias para os outros; poderia ser o começo da tal conversão geral.

Mas, como os portugueses fogem da responsabilidade como o diabo da cruz – até nisto os políticos nos imitam –, como encontrar quem tenha coragem para começar por aqui?

Ora, tendo em conta que vai uma grande indecisão no eleitorado, eu proponho um princípio de escolha eleitoral que me parece bom: votem no candidato que tenha sido capaz de reconhecer os erros que fez e as ideias erradas que teve. Esse, se existe, está a dar-nos algumas garantias. Mas atenção: se a ideia pega teremos que ter cuidado com as conversões apressadas. Como sabem, para se ser capaz de uma conversão moral é preciso ter, previamente, exigências morais.

João Boavida

domingo, 2 de janeiro de 2011

Cirurgiões e atletas

A leitura do texto do escritor Cristovão de Aguiar, aqui publicado, sobre um problema de (sua) saúde que se arrasta e os correlativos contornos do atendimento profissional que finamente descreve, coincidiu com a segunda leitura que faço, mais atenta do que a primeira, do livro Ser bom não chega, da autoria de Atul Gawande, professor catedrático de cirurgia em Harvard (Lua de Papel, 2009). Conduzida pelo texto do escritor, destaco as seguintes passagens do livro do médico cirurgião (páginas 16-22), que condensam o essencial do que nele se trata (sublinhados meus):

“O que é preciso para se ser bom numa coisa onde o erro pode acontecer com tanta facilidade? Quando era estudante e depois interno, a minha preocupação mais profunda era ser competente. Mas o que aquele interno sénior revelara naquele dia era mais do que competência – compreendera não só a forma como uma pneumonia normalmente evolui e deve ser tratada, mas também a maneira de a detectar e combater naquela paciente específica, naquele momento específico, com os recursos e os auxiliares específicos que tinha ao seu dispor.

Muitas vezes as pessoas procuram nos grandes atletas lições de desempenho. E, para um cirurgião como eu, os atletas têm realmente lições a dar – acerca do valor de perseverança, do trabalho árduo e da prática, acerca da precisão. Mas o êxito em medicina tem dimensões que não podem ser encontradas num campo de jogos. Para começar, há vidas em risco. As nossas decisões e omissões, consequentemente, são de natureza moral. Também enfrentamos expectativas assustadoras. Em medicina, a nossa tarefa é lidar com a doença e possibilitar que cada ser humano tenha uma vida tanto mais longa e liberta de fragilidades quanto a ciência permitir. Os passos são muitas vezes incertos. Os conhecimentos que é necessário dominar são simultaneamente vastos e incompletos. No entanto, espera-se que sejamos céleres e firmes (…). Também se espera que façamos o nosso trabalho de forma humana, com carinho e preocupação. Não é só aquilo que está em jogo numa situação concreta, mas também a complexidade do exercício da medicina que torna as coisas tão interessantes e, ao mesmo tempo, tão perturbadoras (…).

Como médicos, assumimos este trabalho pensando que é tudo uma questão de diagnósticos cuidados, competência técnica e alguma capacidade para criar empatia com as pessoas. Mas não é, como rapidamente descobrimos. Em medicina, como em qualquer profissão, temos de lutar contra sistemas, recursos, circunstâncias, pessoas – e também contra as nossas limitações. Enfrentamos obstáculos de uma variedade aparentemente interminável. E, contudo, temos de andar para a frente, melhorar, aperfeiçoar (…).

Os capítulos deste livro analisam três condições essenciais para o êxito em medicina – ou de qualquer esforço que envolva riscos e responsabilidade.

O primeiro é a diligência, a necessidade de prestar atenção suficiente ao pormenor, para evitar erros e ultrapassar os obstáculos. A diligência parece uma virtude fácil e de menor importância (basta prestar atenção, não é?). Mas não é nenhuma das duas coisas. A diligência é ao mesmo tempo fundamental e cruelmente difícil para o exercício da medicina (…)

O segundo desafio é fazer bem. A medicina é uma profissão profundamente humana. Como consequência, está sempre a ser perturbada por falhas humanas, falhas como a avareza, a arrogância, a insegurança, o equívoco (…)

A terceira condição para o sucesso é o engenho – pensar de novo. O engenho é muitas vezes incompreendido. Não é uma questão de inteligência superior, mas de carácter. Exige, acima de tudo, a vontade de reconhecer o fracasso, de não tapar o sol com a peneira – e de mudar. Resulta de uma reflexão deliberada, quase obsessiva sobre fracasso e de uma procura constante de novas soluções. Estes são comportamentos difíceis de cultivar – mas estão longe de ser impossíveis (…)

Melhorar é um trabalho constante. O mundo é caótico, desorganizado e incómodo e a medicina não escapa, de modo nenhum, a essa realidade. Para complicar as coisas, nós, na medicina, também somos humanos. Somos distraídos, fracos e estamos imersos nas nossas próprias preocupações. Mesmo assim, a vida de médico está ligada à vida de outras pessoas, à ciência, e nós vivemos no ponto de união desordenado e complicado entre as duas. Temos uma visão de responsabilidade. A questão, então, não é saber se aceitamos a responsabilidade. Pelo simples facto de fazermos este trabalho, já aceitámos. A questão é, uma vez aceite essa responsabilidade, como fazer bem este trabalho.”

Nota: Da obra referida e de outra o De Rerum Natura deu notícia aqui e aqui.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O Erro no Desempenho Profissional


CONFERÊNCIA: O Erro no Desempenho Profissional

Conferencista: José Fragata, Médico-cirurgião de cardiologia e Professor da Faculdade de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Lisboa. Interessa-se pelo erro humano na área da saúde. É co-autor do livro O erro em medicina.

No próximo dia 8 de Outubro, sexta-feira, pelas 16h30,no Auditório da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra

A conferência é aberta ao público (com certificado de presença).

terça-feira, 13 de julho de 2010

Como é que podemos melhorar?

Num excelente documentário sobre o erro na área da saúde, transmitido pelo segundo canal da televisão portuguesa e do qual, infelizmente, não registei o título, uma médica fala, em determinado ponto da necessidade de recolher e analisar os eventos adversos das práticas clínicas. Iniciativa que assumiu por sua conta e risco:
"É evidente que os hospitais podem melhorar em diversos campos. Para lá se chegar torna-se essencial uma diligência: assinalar sistematicamente todos os acidentes que aí ocorrem.

Dra. Bara Ricou (Cuidados intensivos de cirurgia): Há uma medida que poderia ser aplicada: o ser-se capaz de assinalar os incidentes, fazer uma listagem deles e analisar porque ocorreram. Creio ser esta uma medida que há que tomar forçosamente, estamos numa fase de reflexão e creio que ela é essencial para que possamos avançar.
Entrevistador: Desde quando faz um levantamento dos incidentes no seu serviço?
Dra. Bara Ricou: Desde há pouco mais de um ano que fazemos o levantamento de todo o tipo de acidentes. E há alguns que nos preocupam para podermos avançar, para pensar: “como é que podemos melhorar?” Os acidentes acontecem na sequência de processos. Nunca é só uma pessoa que comete o erro.
Entrevistador: Quantos é que diria que há por ano?
Dra. Bara Ricou: Cerca de uma centena. Mas não tenho de os ter todos reportados. Isso foi feito numa base de voluntariado."

Erros médicos vão constar de registo nacional

Pela sua importância e carácter inovador, destaco uma notícia do Jornal de Notícias, da autoria de Carla Soares.

Ao nível do Ministério da Saúde foi criado um grupo técnico que se encontra a trabalhar num sistema nacional de registo de eventos adversos, com destaque para os erros clínicos. Esse registo “poderá ser voluntário ou compulsivo, anónimo ou identificado”.

O espírito é o que deve ser: "idealmente, não punitivo, confidencial, independente, efectuado por peritos e orientado para a organização”, isto para prevenir os erros e desenvolver culturas institucionais de análise e aprendizagem, que dispensam a imediata "culpabilização" que faz calar e, obviamente, repetir os erros.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Sobre o erro

Sabendo uma leitora que o De Rerum Natura se tem interessado pelo erro humano, enviou-nos uma lista de citações de pessoas com pensamento sobre este fenómeno:

"Quem confessa os seus erros é mais sábio hoje que ontem."
Alexander Pope

“Os homens erram, os grandes homens confessam que erraram.”
Voltaire

"Confessar um erro é demonstrar, com modéstia, que se fez progresso na arte de raciocinar."
Jonathan Swift

"Ninguém é maior do que aquele que está disposto a que lhe assinalem os seus erros."
Dave Barry

"A ciência compõe-se de erros que, por sua vez, são os passos até a verdade."
Júlio Verne

"Se fechares a porta a todos os erros, a verdade ficará na rua."
Rabindranath Tagore

"Eu não me envergonho de corrigir meus erros e mudar as opiniões, porque não me envergonho de raciocinar e aprender."
Alexandre Herculano

"Se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo."
Bento Jesus Caraça

“Quem nunca errou nunca experimentou nada novo.”
“O único homem que está isento de erros é aquele que não arrisca acertar.”

Albert Einstein

“Críticos são sujeitos que passam anos procurando um erro dos escritores - e acabam por encontrar.”
Peter Ustinov

“Contrariamente ao que crêem os chorões, todo o erro é uma propriedade que acresce o nosso haver. Em vez de chorar sobre ele, convém apressar-se em aproveitá-lo.”
José Ortega y Gasset

“O erro não se torna verdade por se multiplicar na crença de muitos, nem a verdade se torna erro por ninguém a ver...”
Mahatma Gandhi

“Por que será que há, de um modo geral, uma predominância entre a humanidade de opiniões e condutas racionais? (…) [Tal] fica a dever-se a uma característica da mente humana, a fonte de tudo o que é respeitável no ser humano, quer como ser intelectual, quer moral – o facto de que os seus erros são corrigíveis. Ele é capaz de rectificar os seus erros através da discussão e da experiência. Não simplesmente pela experiência; tem de haver discussão, que mostre como há-de a experiência ser interpretada.”
John Stuart Mill (2006). Sobre a Liberdade. Lisboa: Edições 70, pp. 55-56.

“Concordo e cedo sempre que me falam com argumentos. Tenho prazer em ser vencido quando quem me vence é a Razão, seja quem for o seu procurador.”
Fernando Pessoa

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Deus não se queixa

Os actos de Deus são realmente muito convenientes para desresponsabilizar os homens, porque Deus em geral não se queixa. Uma reportagem do programa Biosfera, já com dois anos, em que se faz uma antevisão bastante detalhada da tragédia na Madeira.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

"Há coisas que não se podem reparar"

Na sequência de texto anterior A pressão para trabalhar mal e doutros mais antigos sobre a temática do erro, bem como de comentários dos nossos leitores, registo o que se segue.

Em 2002, o escritor Richard Zimler afirmou que são...

“... raras as pessoas capazes da honestidade e da coragem moral de aceitar as responsabilidades por quaisquer problemas. Se há doentes em diálise envenenados com alumínio, nunca é por culpa de nenhum médico, enfermeiro, técnico ou administrador… Na verdade, a culpa não é de ninguém! (…) Alguém já viu algum ministro, algum reitor de uma universidade ou um director de empresa reconhecer numa conferência de imprensa: «É verdade, tomei uma decisão errada e o que vamos fazer para a corrigir é o seguinte…»? Por mim, nem uma única vez. Como ninguém assume a responsabilidade pelo que quer que seja, os problemas ou nunca são resolvidos, ou são resolvidos lentamente e de forma incompleta."

Os estudos científicos que incidem no tratamento do erro tendem a dar-lhe razão. Efectivamente, as condições relacionais e pessoais em que grande parte das actividades profissionais decorre são propícias ao seu encobrimento, ao seu rápido esquecimento, quando não à sua negação.
Como o epistemólogo Karl Popper referiu essa é a nossa tendência natural (também podendo ser entendida como fruto de uma longa aprendizagem), que se impõe contrariar, em nome da rectidão, da seriedade e do progresso do conhecimento.

E isso está a acontecer. Como excepção, admito, mas, ainda assim, está a acontecer, constituindo um incentivo moral e prático para quem, por múltiplas razões, não pretende esconder ou mistificar erros seus ou alheios, que, ao contrário, sente ser seu dever encará-los, assumi-los e comunicá-los, ainda que eles seja extemos, que não haja forma de os reparar.

Nessa medida, depoimentos como o de António Barba Ruiz de Gauna (na fotografia em cima), Director do Hospital Gregorio Marñón, de Madrid, sobre um erro que conduziu à morte de um criança, o pequeno Rayan, são de guardar na nossa memória:

"O pessoal da enfermaria...., custa-me dizer estas coisas, mas tenho de dizê-las, num determinado momento confundiu uma medicação - ou melhor, a via de administração para que percebam bem - da alimentação do bebé, administrada por sonda nasogástrica, como deve ser feito no caso de um prematuro, confundiram-na com a via venosa. O Hospital Gregorio Marñón assume todas as responsabilidades possíveis, tanto humanas como patrimoniais. Sabemos que há coisas que não se podem reparar, estamos completamente de acordo..." (13 de Julho de 2009).

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A interferência do erro nas decisões humanas

O texto que se segue resulta da compilação de dois comentários da autoria do leitor João Boaventura a um recentemente publicado no De Rerum Natura. Nele se explica uma sequência de decisões humanas que se revelaram tragicamente erradas e que explicam no livro Les décisions absurdes de Christian Morel. Pelo seu interesse e clareza, aqui lhe damos o destaque lhe é devido (na foto a explosão do Challenger).

Nos cinco anos que precederam o lançamento da nave espacial Challenger vários estudos incidiram na deterioração das juntas dos dois cilindros laterais "bloosters", provocada pela excessiva sensibilidade ao frio. Estas juntas são consideradas peças críticas, segundo a terminologia da NASA, pelo que, antes de se proceder a qualquer lançamento é necessária uma autorização ao mais alto nível.

Em 1980, as juntas eram catalogadas como "críticas de 2.º nível", passando, em 1982, a "críticas do 1.º nível", designações suprimidas a partir de 1983. Porém, algo deve ter corrido mal para voltarem a ser "críticas" em 1985, com a relevância de que a autorização para lançamentos já podia partir de níveis intermédios.

Seis meses antes do lançamento, um engenheiro da empresa produtora de "boosters" apresentou um relatório à direcção, onde exprime o seu "fundado receio de uma catástrofe terrível", se o problema das juntas não não ficar eficientemente resolvido. Outro engenheiro da mesma empresa solicitou a suspensão da entrega dos "boosters", com este aviso: "This is a red flag".

Um mês antes do lançamento a empresa dos "boosters" solicitou que as juntas deixassem de ser "peças críticas", ao que o responsável da NASA recusou mas, perante a insistência acaba por anuir, mantendo o ano de 1986 para o lançamento da nave.

No dia 27 de Janeiro de 1986, véspera do lançamento, os engenheiros da Morton Thiocol, no Utah, informados sobre as temperaturas baixas na Florida, ficam extremamente preocupados porque as juntas não foram testadas a tão baixas temperaturas, o que leva a empresa construtora a solicitar uma urgente teleconferência com a NASA, que levanta dúvidas sobre o lançamento no dia seguinte. Para uns, a solução é adiar, mas, para outros, a empresa de Utah não teria sido muito explícita.

Perante esta emergência, dezoito altos responsáveis e engenheiros da Morton Thiokol, e dezasseis responsáveis da NASA, teleconferenciam sobre o problema posto pelas baixas temperaturas.

Os engenheiros explicaram que o efeito de tão baixa temperatura é o de não permitir o enchimento das juntas com a consequente fuga do carburante e explosão. Posto isto a empresa propôs o adiamento do lançamento e solicitou uma pausa para reunião interna sobre melhor solução.

Na reunião empresarial dois engenheiros "declaram violentamente" que é imperioso evitar o lançamento, enquanto outros se mantêm silenciosos. O engenheiro responsável pelo estudo de projectos opõs-se igualmente ao lançamento. Perante esta quadro negativo para a empresa, os três directores responsáveis isolam-se com o engenheiro responsável, ao qual solicitam: "Take off his engineering hat and put on his management cap".

Enquanto aguardam as novas explicações da Morton Thiakol, o chefe responsável da empresa adido ao centro espacial Kennedy, na Florida, aconselhou veementemente o director da NASA a adiar o lançamento, mas discordou alegando que as juntas já há muito haviam deixado de ser peças críticas, o que se comprovava com os 24 precedentes lançamentos efectuados.

A teleconferência empresa-NASA foi retomada já perto da meia noite, véspera do lançamento. A empresa declarou que a nave podia ser lançada, o que confirma em fax assinado pelo responsável, mas sem a assinatura dos dois engenheiros que recusaram pactuar com a decisão errada.

No centro espacial Kennedy três altos responsáveis da NASA reúnem-se com o chefe do projecto da empresa adido, para lhe comunicarem que a referida empresa tinha concluído que a nave podia ser lançada sem qualquer risco, o que o surpreendeu e o levou a instar uma vez mais pelo adiamento, mas sem resultado.

No dia 28 de Janeiro de 1986, às 11:38, assistimos ao lançamento da nave com os resultados previstos.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

"A pressão para trabalhar mal"

Tantos epistemólogos como ergonomistas são unânimes em afirmar que, como profissionais, devemos fazer tudo o que está ao nosso alcance para evitar errar. Mas, por muito conhecimento e perícia que tenhamos, e por muito responsáveis que sejamos, isso não impede o surgimento de erros, porque, como humanos, não conseguimos antever e controlar todas as variáveis das situações laborais, sobretudo se nelas há fortes probabilidade de interferirem imprevistos. Assim, além de prevenirmos os erros que é possível prevenir, devemos estar atentos aos que conseguimos detectar e corrigi-los, de modo imediato e/ou mediato, tirando daí novos ensinamentos.

Tal orientação que parece muito simples e fácil de seguir é de uma complexidade e dificuldade extraordinárias, só podendo ser concretizada quando se reúnem diversas condições a saber: saber aprofundado, competência técnica, sentido da responsabilidade, honestidade, coragem. E, claro, porque as instituições e empresas implicam várias pessoas nas mesmas tarefas ou em tarefas complementares, trabalho em conjunto.

Neste trabalho é desejável que toda a gente esteja na mesma rota de pensamento e se guie por propósitos construtivos, direccionado para o que se entende estar bem, ser verdade, certo. Tendo, nessa medida, cada um o dever de encarar os seus erros e de os assumir em presença dos outros, de os ajudar a fazerem o mesmo e de se deixar ajudar por eles.

Isto sem ter necessidade de ponderar as consequências negativas que daí possam advir para si ou para os outros, em termos de avaliação negativa do desempenho que se pode traduzir em insegurança no emprego ou perda de regalias... sendo, até, mais valorizado quem encontra falhas, lacunas naquilo que faz, quem aceita reconhecer as que lhe são imputadas...

É por causa desta cultura do erro, que se consegue efectivamente concretizar em certos contextos laborais, que os acidentes em sectores fundamentais da sociedade (aviação, medicina, informática, etc.) são mais raros do que seriam se ela não existisse.

Mas o que acontece quando as pessoas são pressionadas para se direccionarem, em primeiro lugar, para a produção em quantidade e para darem uma imagem de si como profissionais perfeitos, sem quaisquer problemas, até porque o contrário implicaria uma avaliação menos positiva do seu desempenho e poderia ser desprestigiante para a instituição ou empresa que lhe assegura a subsistência?

A resposta é aquela em que o leitor está, certamente, a pensar: a cultura do erro é substituída pela sua ocultação e, mesmo, pela sua negação, a que se junta o isolamento de quem o identifica e/ou ousa expô-lo para o tratar e, posteriormente, evitar...

Christophe Dejours, autor a que me referi em texto anterior, num dos seus livros, apresenta um exemplo muito claro deste dilema que afecta muitos e em silêncio, claro está.

Trata-se de um engenheiro, recentemente designado para uma garagem da SNCF (Societé National des Chemins de Fer Français). Alguns dias após a sua chegada, toma conhecimento da informação sobre um acidente ocorrido num sector da ferrovia pelo qual é responsável. A cancela de uma passagem de nível não baixou à passagem de um comboio. Nesse momento não havia ninguém na estrada, nem a pé nem de carro.

Em reunião de trabalho, o engenheiro relata o incidente. Os dispositivos automáticos não funcionaram. Após o incidente, a cancela voltou a funcionar normalmente, sem nenhuma intervenção técnica (…). Porém, o facto é inquestionável. Qual é a causa? Onde está o defeito? Silêncio geral entre os colegas. O novo engenheiro insiste, mas os demais minimizam a importância do facto. O engenheiro não pensa assim e, entendendo que o incidente é grave, exige uma investigação técnica completa. O grupo vai aos pouco isolando o novato insistente. Porquê?

As mudanças estruturais (…) deixaram os quadros tão sobrecarregados de trabalho que eles dizem “deixa lá”. Não podem, é claro, admitir tal situação oficialmente e limitam-se a recusar a investigação proposta pelo novo colega porque ela seria difícil e implicaria tempo e trabalho. Além disso, insistem no facto de que, desde o ocorrido, a cancela aparentemente funciona (…)

Os ânimos exaltam-se. O engenheiro recusa-se a desistir da investigação (…). Por fim, o chefe (…) intervém:
Chefe: Houve descarrilamento do comboio?
Engenheiro: Não!
Chefe: Houve colisão com algum veículo ou peão?
Engenheiro: Não!
Chefe: Houve feridos ou mortos?
Engenheiro: Não!
Chefe: Então não houve incidente. O caso está encerrado.

Ao sair da reunião, o engenheiro não se sente bem, está arrasado, não entende a atitude dos outros; tão pouco a sua unanimidade. Fica na dúvida, não sabe se está a seguir o regulamento e o sentido ético (…) ou se, ao contrário, está dando mostras de perfeccionismo e teimosia descabida, cumprindo-lhe, nesse caso, rever toda a sua vida profissional. Nos dias seguintes os colegas evitam comer à mesma mesa que ele e dirigir-lhe a palavra (…) O cerco aperta-se."

Imagem: Do filme Tempos modernos, de Charlie Chaplin.
Referência completa: Dejours, C. (2007, edição original: 1998). A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro, Editora FGV, páginas 32-33. (O texto apresentado sofreu ligeiros ajustamentos para o português de Portugal).

É possível sobreviver sem avaliação do desempenho?

No Jornal Público de 30 de Janeiro de 2010 foi publicada uma entrevista de Ana Gerschenfeld a Christophe Dejours, professor no Conservatoire National dês Arts et Métiers, em Paris.

Nessa entrevista, o especialista com obra reconhecida na área da Psicologia do Trabalho e da Acção apresenta o essencial das análises que tem feito sobre a avaliação individual do desempenho profissional que está a ser implementada em inúmeros países, nos mais diversos sectores, em instituições e empresas públicas e privadas, sob o pretexto de aumentar a qualidade do trabalho e a igualdade e justiça social.

Trata-se de análises que não deviam ser ignoradas porque há nelas factores de sobra para nos preocuparmos directamente e a curto prazo com a saúde física e psicológica dos profissionais, a qual se reflectirá no funcionamento social e técnico das instituições onde estão integrados, que, por sua vez, se reflectirá no atendimento às pessoas que a elas se dirigem. Menos directamente e a mais longo prazo, mas de modo mais sério e profundo, reflectir-se-á no modo como nos vemos e vemos os outros, como encaramos a nossa existência e que sentido lhe atribuímos, como estruturamos os valores que fundam a cultura em que nos estruturámos como pessoas.

Da referida entrevista destaco uma passagem, pela alternativa que aponta, pela possibilidade que abre de repensarmos a relação que temos ou devíamos ter com aquilo que fazemos na vida e com a vida.
"Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado?
Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade. Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas. E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre.

E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho.
Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.

O que fizeram?
Abandonaram a avaliação individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas. Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo. Para o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto. Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente."

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Descubra os ERROS!



Parece que a "Face Oculta" está para durar. Mas não era sobre isso que queria falar. Queria só que jogassem comigo ao "descubra os erros".

Armando Vara enviou um carta ao conselho superior de supervisão do BCP pedindo "suspenção"/suspensão dos seus mandatos no banco. Mas teve o cuidado de dizer: é uma "suspenção"/suspensão e não uma "renuncia"/renúncia, pois isso poderia ser interpretado como "assumpção"/assunção* de culpa.

Veja a carta aqui e descubra os erros de ortografia do administrador do BCP que pelos vistos também suspendeu o Português.

:-(

É a vida.

Isto faz-me lembrar um livrinho muito engraçado que ofereci há dias à minha filha mais nova (a Beatriz de 7 anos). Intitula-se "A menina que não gostava de livros", da autoria de uma senhora indiana a viver no Canadá (Manjusha Pawagi). Muito interessante, fácil de ler e que incentiva a ler. Pode custar no início, como ao gato Max que ficou marcado na cauda com a forma de um grande livro que lhe caiu em cima :-) Mas ajuda pela vida fora, e é uma enorme fonte de prazer.

De vez em quando ofereça um livro ao seu filho(a). E leia-o com ele(a), substituindo algum do tempo em frente à televisão. Vai fazer toda a diferença.

*assumpção é uma variante de assunção

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Não sei se falamos do erro ou do pecado

"É fundamental considerar a abordagem comportamental
e humanista dos erros para se obter um mundo melhor.”
Senders & Moray, 1991, 57.

“Em regra, relatamos casos (…) que correm bem.
Por vergonha, não contamos os que correm mal e,
muito menos, os descrevemos.”

Salgado & Henriques, 2002, 69.

A atenção que no último meio século a epistemologia e a ergonomia têm dedicado ao erro na acção humana tem contribuído para o encararmos, de modo cada vez mais firme, como um factor de progresso do conhecimento e de aperfeiçoamento das práticas profissionais.

Ainda assim, percebemos que, com frequência, ele se rodeia de uma auréola depreciativa que lhe imprime uma valência fortemente negativa, conferindo, não raras vezes, a quem se afigura como responsável pela sua ocorrência, uma imagem desfavorável.

Trata-se duma imagem até certo ponto compreensível, pois certos erros podem afectar de maneira significativa a segurança, a saúde e o bem-estar, justificando-se, nessa medida, referirmo-nos ao erro, no seu sentido mais lato, como faz Lentin (1994, 7), num tom depreciativo: “esse sub-produto um pouco nauseabundo”; ou como faz Lobo Antunes (1996, 77), num tom circunspecto: “tema cinzento na cor, sinistro no perfil e amargo no travo”.

Errar não é, pois, em princípio, uma experiência que deixe os profissionais, independentemente da área laboral em que se situem, indiferentes, e tanto mais assim é quanto mais empenhamento e responsabilidade imprimirem às funções que exercem. De facto, o desconforto face à ideia de errar e ao erro em si, sobressai como uma impressão amplamente partilhada. Impressão que se tem de aprender a superar, pelo menos em parte, para se poder direccionar convenientemente a atenção para a prevenção e detecção de erros, bem como para a sua identificação, remediação e/ou recuperação.

No caso de profissões que implicam uma relação próxima e o cuidado com aos outros, como a medicina ou o ensino, os sentimentos e emoções, jogam um papel relevante. A este propósito, o sociólogo Philippe Perrenoud (1993, 180) refere que tais profissões “para além das competências, mobilizam fundamentalmente a pessoa que intervém (…). Para fazer frente ao fracasso, à incerteza, ao conflito, à angústia (…) é preciso coragem, lucidez, perseverança, generosidade, descentração, serenidade e mil e uma outras qualidades psicológicas e virtudes morais”.

É preciso também perceber que a crença de que se é capaz de enfrentar e resolver, de modo exemplar, todo e qualquer problema profissional, por mais complicado que ela se apresente, não passa de uma crença ingénua e irrealista. Ainda assim, enraizada que no nosso modo de pensar, desencadeia em muitos profissionais que experienciam o erro, como autores e/ou actores, sentimentos de incompetência, inferioridade, vergonha e, mais acentuadamente, culpa. Pode também ser responsável por sentimentos contrários a estes, como a atribuição de responsabilidade a outrem, a justificação assente no escrupuloso cumprimento de directrizes e, também, mais vulgarmente, a desculpabilização. Independentemente do pólo em que os sentimentos se situem, originam, no entender de Andy Hargreaves (1998, 172), o “processo do perfeccionismo” que não depende, apenas de factores intrínsecos, relacionados com a maneira de ser de cada um, mas também de factores históricos e contextuais que os sugerem ou reforçam.

Relativamente a estes factores, Karl Popper (1999) lembrou estar ainda muito presente no ocidente, a antiga ética das profissões intelectuais, que sustenta a autoridade do especialista, assim designada por se acreditar que o profissional possui um saber total, definitivo e absolutamente certo. Sendo verdade que esse saber não passa de um mito, um desejo, pois, no fundo, todos sabemos como somos falíveis, facilmente provoca efeitos contrários aos pretendidos, a saber: atitudes de intolerância e de desonestidade. Se não, vejamos: por um lado, “proíbe que se cometam erros (…) o erro é absolutamente interdito” sendo, nessa medida, fortemente censurados e, por outro lado, o facto de os erros não poderem “ser confessados”, conduz ao seu encobrimento individual ou corporativo.

Rauterberg (1996) evidencia esta mesma ideia da influência da nossa cultura no entendimento clássico do erro, atribuindo-lhe um carácter acentuadamente negativo e, mais, tornando-o num assunto tabu. Não falar dos erros e apresentar-se da maneira mais intocável possível é o objectivo de qualquer profissional, ainda que reconheça essa estratégia incorrecta em termos morais, sociais e de aprendizagem.

Como resultado deste modus vivendi não é apenas a pessoa que descobre um erro no seu desempenho que procura, por todos os meios, “ocultar, dissimular, a sua falibilidade e proteger-se da crítica, oculta, dissimula também a falibilidade dos colegas que se encontram nas mesmas circunstâncias, protege-os da crítica, esperando, claro está, que estes a protejam a si (Popper, 1992, 181). “Poder-se-ia considerar isto como uma espécie de conspiração, (…) mas ninguém o admite de bom grado” (Popper, 1999, 97).

Orlindo Gouveia Pereira vai um pouco mais longe neste raciocínio, lembrando que sendo a nossa cultura fortemente influenciada por princípios teológicos de inspiração judaico-cristã, com facilidade se associa à noção de pecado ao erro. Este autor retém, aliás, de uma das comunicações a que assistiu num encontro internacional sobre o erro de desempenho profissional, uma frase da lavra de Sheridan (1983, citado por Pereira, 1983, 309) que, na sua simplicidade, ilustra esta ideia: “não sei bem se estamos aqui para falar do erro ou do pecado”.

Senders & Moray (1991, 33) acrescentam um outro factor que contribui, certamente, para o reforço dos sentimentos adversos que se ligam ao erro. Fazem eles notar que “vivemos em sociedades que são litigiosas e implacáveis e que, além disso, tendem a atribuir involuntária ou malevolamente, a culpa a alguém por qualquer evento indesejável” pois, de alguma forma, isso satisfaz um desejo de vingança e de expiação. Nestas sociedades, resta aos sujeitos individuais e mesmo, às instituições, resguardarem-se de olhares externos e defenderem-se das suas investidas. Reconhecer um erro e/ou procurar corrigi-lo pode ser um acto prejudicial ou muitíssimo prejudicial para quem decide fazê-lo, tanto no plano da imagem que dá se si e da classe a que pertence, como no plano financeiro e de segurança laboral, como, ainda, no plano das relações interpessoais. É certo que esta norma tem excepções, mas são raros os sectores, as instituições e os profissionais que se revelam excepcionais.

Partindo do princípio que a crença no desempenho irrepreensível aliada aos factores de carácter histórico e contextual que referimos, estão infiltrados na nossa tradição de pensamento, de uma forma ou de outra, acabam por se espelhar no quotidiano laboral, preservando as atitudes antes referidas, levando a que cada um de nós as evoque sempre que pensa no erro ou nos vemos confrontados com a sua ocorrência. Opções indesejáveis como a negação, o encobrimento, a dissimulação, a fuga das consequências, a tentativa de esquecimento, a apresentação dos insucessos como sucessos, a recusa da responsabilidade e, talvez mais grave, a imputação a outrem, não são, pois, de estranhar.

Trata-se de atitudes que Popper, em diversos passos da sua vasta obra, considera, estas sim, como verdadeiros "pecados intelectuais", pois ao contribuírem para a confusão entre o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário, ameaçam a objectividade e a rectidão que deve guiar a acção profissional. Nesta linha de pensamento, não são só os erros concretos que nos devem preocupar mas também, e talvez sobretudo, as atitudes face ao erro, pois são elas que impedem ou perturbam a antecipação e o tratamento de erros.

É esta preocupação que temos de encarar, ainda que não se trate de uma tarefa simples, envoltos que estamos numa cultura que tende a encarar o erro com reserva, diplomacia, circunspecção, ocultação… Trata-se de uma tendência justificável sob o ponto de vista da ideia que construímos para nós próprios e que queremos proporcionar aos outros, mas que se revela altamente enganosa, mistificadora e lesiva para o avanço do conhecimento e para a resposta profissional que se espera de nós. Efectivamente, “o erro parece inevitável”, “todos devem entender que mesmo quando tudo é feito segundo as regras o erro pode acontecer” (Fragata & Martins, 2004, 24) e, nessa medida, precisamos de encontrar recursos afectivos e cognitivos para aceitar a sua existência na nossa vida e, sobretudo, para lidar com a sua eventualidade e ocorrência concreta.

Referências:
Fragata, J. & Martins, L. (2004). O erro em medicina: perspectivas do indivíduo, da organização e da sociedade. Coimbra: Almedina.
Hargreaves, A. (1998). Os professores em tempo de mudança: trabalho e cultura dos professores na idade pós-moderna. Lisboa: Mc Graw-Hill.
Lentin, J. P. (1994). Je pense donc je me tromp. Les erreurs de la science de Pythagore au Big Bang. Paris: Albin Michel.
Lobo Antunes, J. (2002). Memória de Nova Iorque e outros ensaios. Lisboa: Gradiva.
Pereira, O. G. (1983). Erro humano: uma conferência internacional. Análise Psicológica, vol. III, n.º 3, 309-326.
Perrenoud, P. (1993). Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote.
Popper, K. (1999). O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70.
Rauterberg, M. (1996). Why and what can we learn from human errors? A. F. Özok & G.Salvendy (Eds). pp. 827-830. Advances in applied ergonomics. West Lafayette: USA Publishing Corporation, 1996.
Salgado, M. & Henriques, R. (2002). Um caso inesquecível. Saúde Infantil, 69-77.
Senders, J. W. & Moray, N. P. (1991). Human Error: cause, prediction and reduction. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

"Ser bom não chega"

Atul Gawande é médico-cirurgião, um dos melhores à escala mundial. Estudou nas mais prestigiadas universidades europeias, foi bolseiro de elite, venceu prémios que distinguem a excelência, é professor catedrático de Cirurgia em Harvard. E, ainda, redactor e colunista.

Não obstante este currículo que fala por si, e talvez por causa dele, interessa-se por esse “esse sub-produto um pouco nauseabundo” (Lentin, 1994, 7), esse “tema cinzento na cor, sinistro no perfil e amargo no travo” (Lobo Antunes, 1996, 77): o erro de desempenho profissional.

Depois de ter escrito A mão que nos opera (2007), livro de divulgação, publicou, neste ano, Ser bom não chega (2009) com o mesmo teor. A Lua de Papel, editora de ambas as obras, apresenta-o como “um médico, que apesar dos erros luta todos os dias para ser (ainda) melhor.”

A propósito deste último livro, deu uma entrevista à revista Sábado da qual transcrevo a seguinte passagem, pela relevância que me parece ter para todos os profissionais que têm responsabilidades na vida dos outros, grupo onde também os professores e educadores se incluem.

Porque é que os médicos continuam a ser, muitas vezes vistos como deuses?
Tentamos ignorar o erro porque pensamos que, se o reconhecermos, as pessoas já não acreditam em nós. Mas, hoje, os doentes têm consciência que os médicos erram. Não somos perfeitos, mas procuramos essa perfeição. Daí que o nome do meu livro seja Better e não Best, porque é isso mesmo que podemos ser: melhores.

Qual foi o seu pior erro?
Foram tantos! Faço 300 a 400 operações por ano e as complicações atingem os 3 ou 4% o que significa que prejudico gravemente 10 a 12 pessoas em vez de as ajudar. Quando olho para trás, vejo que, em pelo menos metade dos casos, podia ter feito algo de diferente. Tento sempre tirar alguma conclusão de forma a que na próxima vez não prejudique ninguém.

Os erros deviam ser sempre punidos?
Não. Somos responsáveis pelos erros, mas também por remediar a situação. O problema dos erros não é dos maus médicos: o pior é que eles acontecem aos bons.

Em que sentido?
Qualquer cirurgião de renome falha. Vou dar um exemplo. Há dois meses publiquei um estudo, em conjunto com a Organização Mundial de Saúde, sobre as mais-valias de haver uma lista na sala de operações para evitar infecções e outras complicações. A lista, aparentemente simples, tem pontos como dar sempre um antibiótico ao paciente entes do primeiro corte, certificarmo-nos de que toda a gente dentro da sala de operações sabe o nome da restante equipa para que não haja qualquer complicação na hora de se chamar a pessoa que se precisa, etc. Usámo-la em vários hospitais e reduziram-se as mortes em cerca de um terço. Os cirurgiões têm de assumir que são falíveis e socorrem-se de pequenas técnicas que os ajudam.

Interfere no trabalho de outros médicos?
A toda a hora! Se vejo um colega a fazer um mau diagnóstico já com uma cirurgia marcada não lhe vou dizer “és um idiota”! Olha o que estás a fazer!”, porque sei que posso ser eu o próximo idiota! O que faço é explicar-lhe que acho que deixámos passar alguma coisa e tentar resolver os problemas.”

Entrevista à revista Sábado de 25 de Junho de 2009 “Se os médicos lavarem as mão evitam milhões de mortes”, 36-38.

domingo, 16 de março de 2008

Uma cultura de verdade e qualidade

Post convidado de José Fragata, cirurgião cardíaco e professor na Universidade de Lisboa. A par do exercício da medicina, da investigação e do ensino nesta área, tem-se interessado pela avaliação do desempenho profissional, em particular pela análise dos erros humanos e sua gestão.

A declaração do Luxemburgo de 5 de Abril de 2005 consagra o direito dos doentes no espaço europeu, à segurança nos cuidados de saúde. Com efeito, aos pilares fundamentais da qualidade descritos por Donabedian, que eram a estrutura, o processo e os resultados, foram acrescentadas outros, como o acesso, a reputação, a accountability e, não menos importante, a redução do risco, ou seja, a segurança dos doentes. O risco clínico depende, por um lado, da dificuldade do procedimento e, por outro lado, da performance de quem executa, que é determinada em função da dificuldade. Tomemos o exemplo do salto em barreiras, todos teremos uma boa performance no salto em barreiras, se a altura das barreiras for suficientemente baixa.

Em saúde, há que contar, portanto, com eventos adversos que podem resultar em danos que não são causados pela doença mas por actos dos profissionais. Esses eventos podem ser acidentes ou incidentes, conforme o resultado final fique ou não comprometido. Há algumas trajectórias de acidente que são recuperáveis a tempo e, portanto, não chegam a traduzir-se em acidentes: são os chamados near miss.

Antes de avançar, há que esclarecer duas coisas: a identificação do erro está sempre ligada à existência de um plano e à incapacidade não propositada de o conseguir; e que há erros que são cometidos por pessoas honestas – os erros honestos –, que podem ter uma componente humana ou de organização; e há erros que decorrem da violação das boas regras de fazer - erros por negligência ou violação.

Os eventos adversos em saúde têm grande impacto em custos económicos e sociais e, naturalmente, em reputação. O Harvard Medical Practice Study, publicado pelo National Academy Press do ano 2000, com o título To Err is Human: Building a Safer Health System veio sugerir que entre 44 a 98 mil americanos morreriam por ano devido a erros no sistema de saúde. Mas esta dimensão é mal conhecida e assemelha-se muito a um iceberg: por um lado, os erros são muito mais frequentes que os acidentes e, por outro lado, os quase-acidentes ocorrem numa proporção de 100 para 7, em relação aos acidentes; por outro lado ainda, temos uma tradição de esconder e de não reportar, pelo que se sabe, em cada 20 ocorrências só uma acaba por ser conhecida. Em resumo, 10 a 15% de eventos adversos podem ocorrer em cada admissão hospitalar e há que ter em conta que muitos deles não são reportados. Alguns desses eventos têm consequências muito graves, como danos permanentes ou, mesmo, a morte. Mas o mais importante é que mais de 50% dos eventos adversos seriam evitáveis.

Os erros percorrem todas as especialidades médicas, desde a medicação ao trabalho de laboratório, dos serviços de transfusão, aos cuidados primários, da anestesia, aos cuidados intensivos, mas envolvem muito as cirurgias de alta tecnologia, numa relação directa com a dificuldade do procedimento.

Falando de complexidade de risco e de performance, podemos dizer que a complexidade é constante e que o risco é variável. Assim um factor de risco está associado a um mau resultado, um factor de complexidade está só potencialmente associado a um mau resultado e depende da performance de quem a executa. Grosseiramente podemos dizer que: Performance = Resultado x Complexidade e que esta fórmula permite medir a performance de cada um de nós.

Tomemos por exemplo a mortalidade na Cirurgia Cardíaca Pediátrica, em que o Risco x Sobrevida = Performance. Se o score de risco dos meus doentes for, suponhamos, de 7 pontos e a taxa de sobrevida de 97%, ou seja, a mortalidade de 3%, a minha performance será 7 x 0,97 = 6,8 pontos de performance, o que me permitirá comparar a minha performance com a de outros cirurgiões de outros centros.

A medicina é, como dizia Osler “a ciência do incerto e a arte da probabilidade” e, portanto, há que contar sempre com um grau de risco que tem a ver com a doença, mas também com o seu tratamento. Existem inúmeros índices baseados na complexidade, nas co-morbilidades e nas dificuldades técnicas dos procedimentos, como o índice de Aristotle para a Cirurgia Pediátrica ou o euroScore para a Cirurgia Cardíaca nos adultos. São índices que contemplam a idade, as co-morbilidades, o tipo de doença e a dificuldade técnica do procedimento e aos quais um determinado score está associada uma determinada mortalidade. Assim, o risco clínico será função da complexidade das co-morbilidades e da performance, ou da falta desta, e a falta desta são os erros, os near-misses e os acidentes deles decorrentes.

Porque é que erramos e como é que erramos?

Edgar Morin afirmava, no seu Paradigma Perdido, que a tentativa e o erro permitia à espécie desenvolver-se, estando, assim, indissociavelmente ligada à nossa humanidade. De qualquer maneira, no quadro técnico, os erros implicam sempre a existência de um plano detalhado que implica as fases de planear, armazenar e executar e é, fundamentalmente, nesse plano que se deve pressupor a evitabilidade.

Estima-se que, quando ocorre um determinado erro exista uma componente de acção individual, por actos honestos ou por negligência, que corresponde a cerca de 60-65% das causas de acidente e uma componente institucional (desenho da estrutura física ou organizacional), que corresponde a cerca de 35% dessas causas. Há aqui um pilar intermédio, a equipa de trabalho (o seu contexto, a comunicação, as hierarquias, a liderança) que inclui uma componente individual e uma componente organizacional.

A performance humana é sempre algo imprevisível, uma vez que depende da destreza, da aplicação certa de regras, do conhecimento, da capacidade de decisão. Mas é preciso termos consciência de que todo o erro implica ou deve implicar compensação. Deste modo, quando erramos e reconhecemos que erramos há um balanço de utilização de conhecimentos e de exploração de novas soluções, e é dessa utilização balanceada, que resulta a capacidade de recuperação do erro.

Se, como dissemos, a performance não depende só do factor humano, mas também da instituição, o seu papel é fundamental na prevenção e recuperação dos erros. Assim, deve ser dada particular atenção ao desenho do sistema, aos turnos, à distribuição de tarefas, ao hardware, às instalações, aos protocolos e normas, à liderança, à monitorização de controlo de qualidade, à própria política de gestão de erro, etc. Todo o sistema deve evoluir no sentido da simplificação, da veiculação de informação, da definição de tarefas, da redução de passos de transmissão humana, da existência de check-lists, isto tudo com vista a agilizar a performance, e tornar-se mais seguro. Como disse James Reason “se não podemos mudar a condição humana, podemos mudar as condições sob as quais os humanos trabalham”.

Para compreender melhor este aspecto, recorro à teoria deste autor, que descreve a existência nos sistemas de falhas activas, ou actos pouco seguros, lapsos, enganos ou violações e falhas latentes ou patogénios residentes que são as decisões superiores, a inexistência de normas e a ausência de defesas mais ou menos eficazes. Quando alguns “buracos” surgem e se alinham numa trajectória então, acontece um acidente que, em geral, é causado por factores humanos aliados a factores organizacionais.

Será possível prevenir os acidentes na área da saúde?

Pensa-se que as leis de funcionamento das equipas de saúde, a interacção homem-máquina, a doença, são de natureza complexa e têm muito a ver com a geometria fractal descrita por Benoit Mendelbrot. Correspondem a uma forma de organização do caos que, neste momento, nos escapa, que tem a ver com a associação de pequenos elementos numa determinada ordem, dependendo de auto-organização e de feedbacks positivos e negativos, que fazem com que, para pequenas variações iniciais, os resultados ou outcomes possam ser muito distintos. Isto faz com que um determinado procedimento possa conduzir a resultados muito diferentes dependendo das interacções dos diferentes prestadores

Como é que se monitoriza a segurança?

A resposta é: basicamente, declarando, de modo voluntário ou compulsivo, anónimo ou identificado, os eventos nefastos; e, ainda, recorrendo a auditorias internas e externas. Idealmente, o sistema de relato de eventos deve ser não punitivo, confidencial, independente, analisado por peritos, orientado para o sistema, respondendo a orientações exteriores. É preciso evitar, a todo o custo, o que se chama de ciclo do medo, que resulta do receio de punição de quem é acusado, e que conduz a uma retracção na declaração de eventos futuros. Este ciclo só se abole quando tal relato for despenalizado em termos individuais ou, então, quando for colocada ênfase, não tanto nos eventos adversos, mas na monitorização da performance, isto é, quando não for pensado sobretudo na identificação dos que são out-liers de um determinado sistema, mas nos que são os melhores nesse sistema.

Além disso, é importante dar atenção à tendência do erro: se estivermos vigilantes aos near-miss, percebemos que numa cirurgia podem existir eventos major que põem em risco imediatamente a vida do doente, mas são, em geral, compensados de imediato, porque são facilmente notados. Se a capacidade de recuperação for boa, os doentes não vêm a falecer. Mas há três ou quatro vezes mais eventos minor, que fazem parte do ruído de fundo do sistema, aos quais não damos importância, e esses sim, com efeito multiplicativo e de associação forte com a morte ou acidentes graves.

Como poderemos melhorar a segurança?

A prestação de cuidados de saúde é uma actividade de risco e a estratificação do risco clínico é crucial. Melhora-se a segurança, tomando, por exemplo, as lições da aeronáutica que criaram uma gestão de risco baseada em relato de near-miss e acidentes, no treino do staff em equipa, na realização de check lists que permitem anotar os pontos críticos necessários à recuperação, na análise das causas e trajectórias dos erros, nas tendências para o acidente, colocando ênfase na não culpabilização individual mas sim na declaração, preferencialmente voluntária, de eventos adversos. Em suma, numa cultura de verdade e de qualidade assumida pelos médicos e restante pessoal de saúde.

Figura retirada de:
http://www.2020brasil.com.br/publisher/1203/img/mundo/1504.jpg

domingo, 9 de dezembro de 2007

A “Lei de Murphy” é excepção

Na sequência do texto do De Rerum Natura, deste 7 de Dezembro, a propósito do livro Passeio aleatório pela ciência do dia-a-dia, de Nuno Crato, lembrei-me que, além da física, também a ergonomia pode dar algumas achegas para a discussão sobre a tão célebre quanto satírica Lei de Murphy.

A ergonomia é uma disciplina científica que, já há algumas décadas, se dedica a investigar a adaptação dos profissionais às condições físicas, psicológicas e sociais dos contextos laborais, de forma a melhorar essa adaptação.

Entre os muitos e diversos temas interessantes que investiga, contam-se os erros humanos. Neste particular, podemos dizer que chegou, entre outras, a duas conclusões interessantes: uma (mais) pessimista e outra (mais) optimista. A (mais) pessimista é que “não é possível não errar” e a outra (mais) optimista é que “os erros tem uma reduzida intervenção na acção profissional”.

Aparentemente estas duas conclusões são contraditórias, mas, na verdade, são complementares. Vejamos, então:

Não é possível não errar
Os autores que se interessam pelo erro concordam em que não existe garantia prévia de a acção profissional ser isenta desse fenómeno: o risco da sua interferência pode ser ínfimo, mas não é nulo (Pereira, 1983). É preciso, portanto, ter lucidez para pensar que, por melhor que se conheçam os factores potenciadores dos erros e por mais sofisticados que sejam os modos de controlo disponibilizados, eles podem surgir em qualquer momento, em qualquer tarefa, com qualquer pessoa. Nesta medida, devemos reconhecer os erros como parte integrante do desempenho, afinal, “são o preço inevitável e, até, aceitável, que temos de pagar pela nossa notável capacidade para enfrentar rápida e eficazmente tarefas que envolvem informação complexa” (Reason, 1994, 148).
Este reconhecimento de que “toda a gente comete um erro de tempos a tempos” (Senders & Moray, 1991, 79), não deve, no entanto, conduzir ao descuido da sua vigilância. Efectivamente, os erros podem ter consequências graves ou muito graves, constituindo, por isso, um dever ético-prático dos profissionais fazer tudo o que estiver ao seu alcance para os evitar (Popper, 1992). Mas só isso não basta: é também seu dever estarem em permanente alerta para detectarem, repararem e recuperarem o maior número possível de erros que, inadvertidamente, tenham cometido.

Os erros têm uma reduzida intervenção na acção profissional
Na sequência desta reflexão e sem entrar em contradição, James Reason (1994), nome incontornável neste assunto, defende que os erros têm uma reduzida intervenção no desempenho profissional, uma vez que habitualmente se situam numa sequência ou num pequeno número de sequências das muitas que constituem o plano de acção pelo qual se optou. Na realidade, e hipoteticamente falando, para concretizar uma determinada tarefa não existe um só plano possível, mas vários, sendo que cada um deles é composto por diversas sequências, cada uma das quais proporciona múltiplas possibilidades de acção inapropriada, as quais, por sua vez, poderão assumir uma infinita variedade de formas. Felizmente, na maior parte das circunstâncias, a maioria dessas possibilidades não se concretiza.
Nesta linha de raciocínio, e ainda segundo o referido autor, é possível afirmar que as sequências dos desempenhos profissionais onde surgem erros, quando comparadas com as sequências adequadas, são pouco numerosas e, além disso, os erros assumem um número limitado de formas.

Em suma
Em vez de lei – uma lei cumpre-se sempre –, a Lei de Murphy é excepção, ainda que tenhamos tendência a invocá-la quando detectamos um erro. Caso a Lei de Murphy fosse mesmo lei, os Egípcios não teriam construído as magníficas pirâmides, Fernão de Magalhães não teria feito a viagem de circum-navegação, Miguel Ângelo não nos teria deixado o tecto da Capela Sistina, Marie e Pierre Curie não teriam isolado o radium e o polonium, a NASA não teria conseguido alunar a sua primeira nave…
Pensando bem, o conhecimento, como construção humana que é, constitui uma prova substancial da luta constante e, em grande medida, conseguida da falível humanidade contra o erro. Se tudo aquilo que pudesse correr mal, corresse mal, viveríamos (ainda) em plena barbárie e não em civilização.

Referências bibliográficas:
- Pereira, O. G. (1983). Erro humano: uma conferência internacional. Análise Psicológica, vol. III, n.º 3, 309-326.
- Popper, K. (1992). Em busca de um mundo melhor. Lisboa: Fragmentos.
- Reason, J. T. (1994). Human error. Cambridge: Cambridge University.
- Senders, J. W. & Moray, N. P. (1991). Human Error: cause, prediction and reduction. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.

Imagem retirada de:
http://www.diariodetrasosmontes.com/images/noticias/ciskei205.jpg

SOBRE O GRANITO E A SUA ORIGEM, NUMA CONVERSA TERRA-A-TERRA.

Por A. Galopim de Carvalho Paisagem granítica na Serra da Gardunha. Já dissemos que não há um, mas sim, vários tipos de rochas a que o vulgo...