quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Não sei se falamos do erro ou do pecado

"É fundamental considerar a abordagem comportamental
e humanista dos erros para se obter um mundo melhor.”
Senders & Moray, 1991, 57.

“Em regra, relatamos casos (…) que correm bem.
Por vergonha, não contamos os que correm mal e,
muito menos, os descrevemos.”

Salgado & Henriques, 2002, 69.

A atenção que no último meio século a epistemologia e a ergonomia têm dedicado ao erro na acção humana tem contribuído para o encararmos, de modo cada vez mais firme, como um factor de progresso do conhecimento e de aperfeiçoamento das práticas profissionais.

Ainda assim, percebemos que, com frequência, ele se rodeia de uma auréola depreciativa que lhe imprime uma valência fortemente negativa, conferindo, não raras vezes, a quem se afigura como responsável pela sua ocorrência, uma imagem desfavorável.

Trata-se duma imagem até certo ponto compreensível, pois certos erros podem afectar de maneira significativa a segurança, a saúde e o bem-estar, justificando-se, nessa medida, referirmo-nos ao erro, no seu sentido mais lato, como faz Lentin (1994, 7), num tom depreciativo: “esse sub-produto um pouco nauseabundo”; ou como faz Lobo Antunes (1996, 77), num tom circunspecto: “tema cinzento na cor, sinistro no perfil e amargo no travo”.

Errar não é, pois, em princípio, uma experiência que deixe os profissionais, independentemente da área laboral em que se situem, indiferentes, e tanto mais assim é quanto mais empenhamento e responsabilidade imprimirem às funções que exercem. De facto, o desconforto face à ideia de errar e ao erro em si, sobressai como uma impressão amplamente partilhada. Impressão que se tem de aprender a superar, pelo menos em parte, para se poder direccionar convenientemente a atenção para a prevenção e detecção de erros, bem como para a sua identificação, remediação e/ou recuperação.

No caso de profissões que implicam uma relação próxima e o cuidado com aos outros, como a medicina ou o ensino, os sentimentos e emoções, jogam um papel relevante. A este propósito, o sociólogo Philippe Perrenoud (1993, 180) refere que tais profissões “para além das competências, mobilizam fundamentalmente a pessoa que intervém (…). Para fazer frente ao fracasso, à incerteza, ao conflito, à angústia (…) é preciso coragem, lucidez, perseverança, generosidade, descentração, serenidade e mil e uma outras qualidades psicológicas e virtudes morais”.

É preciso também perceber que a crença de que se é capaz de enfrentar e resolver, de modo exemplar, todo e qualquer problema profissional, por mais complicado que ela se apresente, não passa de uma crença ingénua e irrealista. Ainda assim, enraizada que no nosso modo de pensar, desencadeia em muitos profissionais que experienciam o erro, como autores e/ou actores, sentimentos de incompetência, inferioridade, vergonha e, mais acentuadamente, culpa. Pode também ser responsável por sentimentos contrários a estes, como a atribuição de responsabilidade a outrem, a justificação assente no escrupuloso cumprimento de directrizes e, também, mais vulgarmente, a desculpabilização. Independentemente do pólo em que os sentimentos se situem, originam, no entender de Andy Hargreaves (1998, 172), o “processo do perfeccionismo” que não depende, apenas de factores intrínsecos, relacionados com a maneira de ser de cada um, mas também de factores históricos e contextuais que os sugerem ou reforçam.

Relativamente a estes factores, Karl Popper (1999) lembrou estar ainda muito presente no ocidente, a antiga ética das profissões intelectuais, que sustenta a autoridade do especialista, assim designada por se acreditar que o profissional possui um saber total, definitivo e absolutamente certo. Sendo verdade que esse saber não passa de um mito, um desejo, pois, no fundo, todos sabemos como somos falíveis, facilmente provoca efeitos contrários aos pretendidos, a saber: atitudes de intolerância e de desonestidade. Se não, vejamos: por um lado, “proíbe que se cometam erros (…) o erro é absolutamente interdito” sendo, nessa medida, fortemente censurados e, por outro lado, o facto de os erros não poderem “ser confessados”, conduz ao seu encobrimento individual ou corporativo.

Rauterberg (1996) evidencia esta mesma ideia da influência da nossa cultura no entendimento clássico do erro, atribuindo-lhe um carácter acentuadamente negativo e, mais, tornando-o num assunto tabu. Não falar dos erros e apresentar-se da maneira mais intocável possível é o objectivo de qualquer profissional, ainda que reconheça essa estratégia incorrecta em termos morais, sociais e de aprendizagem.

Como resultado deste modus vivendi não é apenas a pessoa que descobre um erro no seu desempenho que procura, por todos os meios, “ocultar, dissimular, a sua falibilidade e proteger-se da crítica, oculta, dissimula também a falibilidade dos colegas que se encontram nas mesmas circunstâncias, protege-os da crítica, esperando, claro está, que estes a protejam a si (Popper, 1992, 181). “Poder-se-ia considerar isto como uma espécie de conspiração, (…) mas ninguém o admite de bom grado” (Popper, 1999, 97).

Orlindo Gouveia Pereira vai um pouco mais longe neste raciocínio, lembrando que sendo a nossa cultura fortemente influenciada por princípios teológicos de inspiração judaico-cristã, com facilidade se associa à noção de pecado ao erro. Este autor retém, aliás, de uma das comunicações a que assistiu num encontro internacional sobre o erro de desempenho profissional, uma frase da lavra de Sheridan (1983, citado por Pereira, 1983, 309) que, na sua simplicidade, ilustra esta ideia: “não sei bem se estamos aqui para falar do erro ou do pecado”.

Senders & Moray (1991, 33) acrescentam um outro factor que contribui, certamente, para o reforço dos sentimentos adversos que se ligam ao erro. Fazem eles notar que “vivemos em sociedades que são litigiosas e implacáveis e que, além disso, tendem a atribuir involuntária ou malevolamente, a culpa a alguém por qualquer evento indesejável” pois, de alguma forma, isso satisfaz um desejo de vingança e de expiação. Nestas sociedades, resta aos sujeitos individuais e mesmo, às instituições, resguardarem-se de olhares externos e defenderem-se das suas investidas. Reconhecer um erro e/ou procurar corrigi-lo pode ser um acto prejudicial ou muitíssimo prejudicial para quem decide fazê-lo, tanto no plano da imagem que dá se si e da classe a que pertence, como no plano financeiro e de segurança laboral, como, ainda, no plano das relações interpessoais. É certo que esta norma tem excepções, mas são raros os sectores, as instituições e os profissionais que se revelam excepcionais.

Partindo do princípio que a crença no desempenho irrepreensível aliada aos factores de carácter histórico e contextual que referimos, estão infiltrados na nossa tradição de pensamento, de uma forma ou de outra, acabam por se espelhar no quotidiano laboral, preservando as atitudes antes referidas, levando a que cada um de nós as evoque sempre que pensa no erro ou nos vemos confrontados com a sua ocorrência. Opções indesejáveis como a negação, o encobrimento, a dissimulação, a fuga das consequências, a tentativa de esquecimento, a apresentação dos insucessos como sucessos, a recusa da responsabilidade e, talvez mais grave, a imputação a outrem, não são, pois, de estranhar.

Trata-se de atitudes que Popper, em diversos passos da sua vasta obra, considera, estas sim, como verdadeiros "pecados intelectuais", pois ao contribuírem para a confusão entre o verdadeiro e o falso, o real e o imaginário, ameaçam a objectividade e a rectidão que deve guiar a acção profissional. Nesta linha de pensamento, não são só os erros concretos que nos devem preocupar mas também, e talvez sobretudo, as atitudes face ao erro, pois são elas que impedem ou perturbam a antecipação e o tratamento de erros.

É esta preocupação que temos de encarar, ainda que não se trate de uma tarefa simples, envoltos que estamos numa cultura que tende a encarar o erro com reserva, diplomacia, circunspecção, ocultação… Trata-se de uma tendência justificável sob o ponto de vista da ideia que construímos para nós próprios e que queremos proporcionar aos outros, mas que se revela altamente enganosa, mistificadora e lesiva para o avanço do conhecimento e para a resposta profissional que se espera de nós. Efectivamente, “o erro parece inevitável”, “todos devem entender que mesmo quando tudo é feito segundo as regras o erro pode acontecer” (Fragata & Martins, 2004, 24) e, nessa medida, precisamos de encontrar recursos afectivos e cognitivos para aceitar a sua existência na nossa vida e, sobretudo, para lidar com a sua eventualidade e ocorrência concreta.

Referências:
Fragata, J. & Martins, L. (2004). O erro em medicina: perspectivas do indivíduo, da organização e da sociedade. Coimbra: Almedina.
Hargreaves, A. (1998). Os professores em tempo de mudança: trabalho e cultura dos professores na idade pós-moderna. Lisboa: Mc Graw-Hill.
Lentin, J. P. (1994). Je pense donc je me tromp. Les erreurs de la science de Pythagore au Big Bang. Paris: Albin Michel.
Lobo Antunes, J. (2002). Memória de Nova Iorque e outros ensaios. Lisboa: Gradiva.
Pereira, O. G. (1983). Erro humano: uma conferência internacional. Análise Psicológica, vol. III, n.º 3, 309-326.
Perrenoud, P. (1993). Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote.
Popper, K. (1999). O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70.
Rauterberg, M. (1996). Why and what can we learn from human errors? A. F. Özok & G.Salvendy (Eds). pp. 827-830. Advances in applied ergonomics. West Lafayette: USA Publishing Corporation, 1996.
Salgado, M. & Henriques, R. (2002). Um caso inesquecível. Saúde Infantil, 69-77.
Senders, J. W. & Moray, N. P. (1991). Human Error: cause, prediction and reduction. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.

3 comentários:

Américo Oliveira disse...

A propósito de erros e do modo como os enfrentamos aqui deixo esta carta curiosa do duque de Wellington ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em Londres, enviada durante as campanhas ibéricas contra Napoleão:

"Exmºs Senhores:
Enquanto marchámos de Portugal para uma posição que domina a aproximação a Madrid e das forças Francesas, os meus Oficiais têm cumprido diligentemente os vossos pedidos, enviados no navio de Sua Magestade, de Londres para Lisboa e daí, por estafeta a cavalo ao nosso quartel general.
Enumerámos as nossas selas, rédeas, tendas e respectivas estacas e todos os «itens» pelos quais o Governo de Sua Magestade me considera responsável. Enviei relatórios sobre o carácter, capacidade e índole de todos os Oficiais.
Foram prestadas contas de todos os «itens» e todos os tostões, com duas lamentáveis excepções para as quais peço a vossa indulgência.
Infelizmente não nos é possível responder pela soma de 1 xelim e nove dinheiros, do fundo para o pagamento de pequenas despesas de um batalhão de infantaria, e houve uma lamentável confusão quanto ao número de frascos de compota de framboesa entregues a um regimento de cavalaria, durante uma tempestade de areia no oeste de Espanha.
Este descuido censurável pode ser relacionado com a pressão das circunstâncias, uma vez que estamos em guerra com a França, facto que poderá parecer-vos, senhores, em Whitegall, um pouco surpreendente.
Isto traz-me ao meu objectivo actual, que consiste em pedir ao Governo de Sua Magestade instruções sobre a minha missão, de modo a que eu possa compreender melhor a razão porque estou a arrastar um exército por estas planícies estéreis. Suponho que, necessariamente, deve ser uma das duas missões alternativas, como abaixo indico.
Prosseguirei qualquer delas, com o melhor da minha capacidade, mas não posso executar as duas:

1. Treinar um exército de escriturários britânicos para benefício dos contabilistas e moços de recados de Londres, ou, talvez:
2. Providenciar no sentido de as forças de Napoleão serem expulsas de Espanha.
Assinado
O vosso mais obediente servo
Wellington"

Anónimo disse...

Na minha adolescência quando eu ainda sonhava com a faculdade (mesmo não conseguindo sair do ensino médio), pretendia seguir o mesmo rumo publicitário do meu irmão, e tive o prazer de devorar um livro de Roy H. Williams chamado "Fórmulas secretas do Mago da Publicidade", e viajando entre paginas fui ao encontro com uma frase de Jim Abrams, não sei muito bem se foi um Economista ou um Publicitário, mas ele disse bem assim:
" Um homem de negócios inteligente é aquele que comete erros, aprende com eles e nunca volta a cometê-los. Um homem de negócios sábio é aquele que encontra um homem de negócios inteligente e aprende com ele a evitar os erros que ele cometeu"

Esse método de Jim não serve apenas para os negócios, e foi desde ai que comecei a me interessar pelo erro, pois é mais simples partir de erros para poder encontrar o que verdadeiramente é o certo, pois assim você consegue fixar os erros, restando apenas o que é certo. Então este conceito passou a fazer parte da minha vida, aprendi que o caminho da cura, muitas vezes é através da doença, dedicando mais atenção aos erros, do que aos acertos propriamente dito, e fiquei sabendo que já estar disponível o Popper em português, vou fazer o possível para poder dar uma bisbilhotada na obra, pois como se sabe "a humanidade reina graças à ousadia dos seus erros.

Hugo D.Perpétuo

Anónimo disse...

A propósito de Popper!
Segue texto cheio de dúvidas, e talvez, erros!,

Com a emergência da cibercultura os jovens libertar-se-ão? Estarão a criar um mundo próprio?
Vivemos em períodos de evolução rápida, como o actual em que a existência da humanidade depende da sua capacidade de se adaptar e de criar um mundo novo (Szent-Gyorgyi, 1976:89).
Nesta perspectiva, da possibilidade emergente de uma nova era, os símbolos míticos e arquétipos comuns entre culturas e civilizações de Jung, serão a memória permanente de Lashley e Popper? Estarão situados no córtex cerebral? Irão manifestar-se na cibercultura política?
Jung diz-nos como a humanidade tem avançado numa rápida unidade simbólica (Maltez, 2002). De facto, no domínio das ciências cognitivas as informações parecem ser transmitidas, ocasionalmente, por meios que ultrapassam o mundo da percepção sensorial, do espaço e tempo, nas culturas, nos seres humanos, nos povos primitivos, nas sociedades modernas e mesmos nas disciplinas científicas (Laszlo, 1997). Deste modo, nas ciências cognitivas torna-se pertinente o estudo dos canais de comunicação, nomeadamente a cibernética e a telemática do ponto de vista da cultura política, entre o cérebro e o mundo, canais que poderiam conduzir a outros cérebros ou mesmos a outras culturas (Laszlo, 1997). De facto, e seguindo esta sequência de pensamento, a sincronicidade prevê outras relações que não são causais para os eventos do universo (http://pt.wikipedia.org/wiki/Pensamento_sist%C3%AAmico, em 9/7/09) e, ao dar voz à cidadania, a cibercultura política não entende fidelidade sem autonomia, ou seja, a homogeneidade de culturas, os costumes massificados e globalizados.

Cumpts,
Madalena Madeira