quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A Física e a Matemática


Em 2000, Ano Internacional da Matemática, escrevi este texto sobre as relações da Física com a Matemática. Talvez volte a ser actual neste Ano Internacional da Astronomia, em que se comemoram as primeiras observações astronómicas de Galileu (na imagem), se nos lembrarmos que foi Galileu quem firmou a aliança ainda hoje firme entre as duas ciências.

Há entre a Física e a Matemática uma relação de grande proximidade, pode-se mesmo dizer de grande intimidade. A Física — o conhecimento do mundo material — não se pode fazer sem a Matemática. A linguagem da Física é, sem qualquer dúvida, a Matemática. Segundo Galileu Galilei, “a Natureza está escrita em caracteres matemáticos” e, segundo Francis Bacon, o seu contemporâneo que teorizou o método científico, “à medida que a Física avança cada vez mais e desenvolve novos axiomas, ela exige uma ajuda pronta da Matemática”. Não há nada que possa iludir ou contrariar a relação íntima entre Física e Matemática: sem Matemática não há Física. Quem não souber Matemática não poderá apreciar verdadeiramente a Física, nem os seus princípios nem as suas conclusões. A maneira mais sucinta, clara e elegante de exprimir as leis físicas — os enunciados que descrevem o comportamento do mundo material — é a Matemática. Mas, além disso, a Matemática é também, por outro lado, a maneira de tirar, sem erros, as consequências dessas leis. Conforme afirmou há cerca de cem anos o alemão Wilhelm Roentgen, o primeiro prémio Nobel da Física: “O físico precisa de três coisas para o seu trabalho: matemática, matemática e matemática”.

Muitos dos físicos mais importantes ao longo da história foram também matemáticos. Alguns, mais raros, criaram a Matemática de que precisavam para a sua descrição do mundo. Por exemplo, o grande lsaac Newton inventou o cálculo diferencial para descrever o movimento dos corpos, fossem estes maçãs ou luas. Como disse Albert Einstein, uma autoridade sobre a mecânica de Newton a ponto de a ter alterado (sem necessidade de matemática nova), “a equação diferencial entrou como criada de servir e ficou até se tornar a amante”. Não uma amante, mas a amante … De facto há, mais do que uma promiscuidade ocasional, uma autêntica e permanente concubinagem entre Matemática e Física. Trata-se de comunhão não só de cama como de mesa e roupa. Se há físicos que foram matemáticos, há também muitos matemáticos que gostam de ser físicos. Segundo o matemático alemão David Hilbert, contemporâneo de Einstein, “a Física é demasiado difícil para ser deixada apenas aos físicos …

O físico Eugene Wigner explicitou a conexão profunda, entre matemática e o mundo real, declarando em 1960:

“A linguagem da matemática revela-se desrazoavelmente eficaz nas ciências naturais. É um presente misterioso que nem compreendemos nem merecemos. Devemos estar agradecidos por ele e esperamos que continue a ser válido na investigação futura e que até mesmo se estenda, para o melhor e para o pior, para nosso prazer e apesar talvez da nossa admiração, a ramos mais vastos do conhecimento”.

Wigner não foi original. Já Einstein tinha escrito antes dele: “Há um enigma que desde sempre tem perturbado as mentes. Como pode a Matemática, ao fim e ao cabo um produto do pensamento humano independente da experiência, ser tão admiravelmente apropriada aos objectos da realidade?”

Há numerosos exemplos dessa apropriação: o cálculo diferencial e a mecânica newtoniana, a teoria da relatividade geral e a geometria diferencial, a análise funcional e a mecânica quântica, a teoria dos grupos e as partículas elementares. Porquê? Penso que ninguém tem uma resposta definitiva para este enigma.

Se a Física não dispensa a Matemática, já é controverso que a Matemática possa dispensar a Física. Pode a Matemática existir sem a Física? Para o matemático inglês deste século G. H. Hardy, que escreveu uma famosa Apologia da Matemática, não só pode como existe. Para muitos matemáticos, o seu trabalho, monótono, contínuo e ilimitado, pode ser feito interiormente, sem olhar à volta para ver o mundo. Haverá um certo prazer solitário nesse trabalho isolado. Mas será difícil negar que a Física acrescenta à Matemática um certo picante, um tempero, uma excitação adicional. Ganha-se alguma coisa se se olhar para fora e encontrar alguma correspondência com aquilo que se vê cá dentro. Pode até ganhar-se juízo! A seguinte frase é demolidora de algumas concepções da Matemática. Para o físico norte-americano Joshua Willard Gibbs, também contemporâneo de Einstein: “Um matemático pode dizer o que quiser, mas um físico tem de ter alguma sanidade mental”.

Decerto que a Física e a Matemática usam metodologias diferentes. Na Física, a intuição vence a dedução de um modo claro. O conhecimento do mundo processa-se por adivinhação baseada no conhecimento anterior. O exercício criativo da imaginação é domesticado por esse conhecimento.Richard Feynman, em O Que É uma Lei Física (Gradiva, 1989), faz a apologia da intuição dos físicos contrastando-a com a dedução dos matemáticos: “Quando sabemos do que estamos a falar, quando sabemos que alguns símbolos representam forças, outros massas, etc., podemos utilizar o senso comum, o sentido intuitivo do mundo. Vimos algumas coisas e sabemos mais ou menos como é que algum fenómeno se vai passar. Todavia, o pobre matemático traduz tudo em equações e, como os símbolos não têm para ele qualquer significado, não dispõe de nenhuma orientação, a não ser o rigor matemático e o cuidado na argumentação. O físico, que sabe mais ou menos qual vai ser a resposta, pode adivinhar uma parte e, assim, progredir mais rapidamente. O rigor matemático não é muito útil em Física”.

A Matemática avança mais por dedução, uma vez fixos certos princípios abstractos. Em contraste com Feynman, G. H. Hardy, um matemático puro (“um verdadeiro matemático”, segundo o físico e romancista C. P. Snow no prefácio de A Mathematical’s Apology), dispensa o “sentido intuitivo do mundo”.

Mas Hardy revela-se de uma pureza radical: “É bastante comum, por exemplo, que um astrónomo ou um físico pretenda que descobriu uma prova matemática de que o universo físico se tem de comportar de uma determinada maneira. Essas pretensões, se levadas à letra, são um completo disparate, não pode ser possível provar matematicamente que haverá um eclipse amanhã, uma vez que eclipses e outros fenómenos físicos não formam parte do mundo abstracto das Matemática”.

Hardy não só diz que a ocorrência de eclipses não se prova matematicamente como que nunca se poderá provar. Por outro lado, para um físico que prevê eclipses, estes sempre ocorreram quando as equações os previram. Por que razão haveriam estas de falhar amanhã? Os físicos prevêem os eclipses baseados na Matemática, na qual confiam ilimitadamente. Mas têm uma confiança igualmente ilimitada no seu “sentido intuitivo do mundo” e sabem que o mundo é irremediavelmente matemático.

A posição de Hardy é incompreendida pela maioria dos físicos. Nomeadamente, eles sabem que Hardy se enganou quando, a certa altura do seu livro, escreveu que a relatividade e a mecânica quântica — as duas traves-mestra da Física deste século — não têm qualquer utilidade: os sistemas de posicionamento geográfico (GPS) usam correcções relativistas e os lasers e os transístores, hoje correntes por todo o lado, são produtos da relatividade e da mecânica quântica.

De facto, os matemáticos também usam a intuição como os físicos (tal como estes, por seu lado, usam a dedução). A grande diferença entre os dois estilos de trabalho é o primado que os físicos dão à experiência, enquanto os matemáticos preferem dar o primado à lógica. Estão os dois no seu direito!

Há uma cultura própria da Matemática e uma cultura própria da Física. A cultura passa sempre pela sua expressão por uma linguagem. Por exemplo, um matemático tem uma linguagem muito própria, inconfundível. Às vezes entender a linguagem é entender tudo. Um matemático a quem peçam para contar a história da carochinha não dirá que o lobo comeu a avó, mas sim que a avó ficou um subconjunto do lobo … Se soubermos teoria dos conjuntos percebemos logo a história. Um físico experimental, por seu lado, vai autopsiar o lobo para perceber a história.

As duas culturas — a dos físicos e a dos matemáticos — não são as duas culturas desavindas de Snow mas são, ao fim e ao cabo, subculturas de uma das culturas de Snow, a cultura científica. São culturas próximas, aparentadas (e de modo nenhum inimigas da outra cultura de Snow, a literária). Mas, por serem parte de uma cultura comum, há espaço para uma maior interculturalidade, para um maior encontro de culturas, pois é nesses interfaces culturais, nesses choques de culturas, que se encontram hoje as fontes mais prolixas de criatividade.

É no convívio fecundo das duas culturas — a dos físicos e a dos matemáticos — que as ciências básicas têm sido cultivadas desde que existem e é nesse convívio que elas, com benefícios mútuos, devem ser continuadas e alargadas.

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