terça-feira, 18 de agosto de 2009

A “Book-Season”

Comentários dos leitores do De Rerum Natura ao meu texto Os livros são feitos para serem vendidos fizeram-me lembrar o Capítulo II do livro Cartas de Inglaterra, de Eça de Queiroz, que tem por título Acerca dos Livros (Edição de Lello e Irmão, 1951, páginas 17-30).

Livros sobrantes, livros a mais, livros que ocupam espaço e só isso, livros a que não sabemos que destino dar parece ser um cenário que, a avaliar pelo final do dito capítulo, Eça não teria imaginado para o nosso país.

"Outubro chegou, e com este mês, em que as folhas caem, começam aqui a aparecer os livros, folhas às vezes tão efémeras como as das árvores, e não tendo como elas o encanto verde, do murmúrio e da sombra.
Estamos, com efeito, em plena Book-Season, a estação dos livros.
(…)
Isto não quer dizer que fora desta estação (Outubro a Março) se não publiquem livros em Inglaterra – longe disso, Santo Deus! (…) Significa simplesmente que as grandes casas editoras de Londres e de Edimburgo reservam para as lançar nesta época as suas grandes novidades. Um livro de Darwin, um estudo de Matthew Arnold, um poema de Tennyson, um romance de George Meredith serão evidentemente guardados para a estação. De resto, durante todo o ano não se interrompe, não cessa essa publicidade fenomenal, essa vasta, ruidosa, inundante torrente de livros, alastrando-se, fazendo pouco a pouco sobre a crosta da terra vegetal do globo uma outra crosta de papel impresso em inglês.

Não sei se é possível calcular o número de volumes publicados anualmente em Inglaterra. Não me espantaria que se pudessem contar por dezenas de milhares. Aqui tenho eu diante de mim, no número de ontem do Spectator, a lista dos livros lançados esta semana: NOVENTA E TRÊS OBRAS! E isto é apenas a lista do Spectator. Apenas o que se chama aqui Literatura geral... Não se contam as reimpressões; nem as edições dos clássicos, em todos os formatos, desde o infólio, que só um Hércules pode erguer, ao volume-miniatura, cujo tipo reclama microscópio, e em todos os preços, desde a edição que custa 50 libras até à que custa 50 réis: não se contam as traduções de livros estrangeiros, sobretudo as literaturas da antiguidade; não se conta, enfim, essa incessante produção das Universidades, essoutra levada de gregos e latinos, de comentários, de glossários, de infólios, que lançam de si, aos caixões, as imprensas de Clarendon.

Há nesta literatura geral uma espécie de que o Inglês não se farta – a literatura de viagens. Já não falo nos romances: isso não constitui hoje uma produção literária, é uma fabricação industrial.

Na vida doméstica inglesa, a novela tornou-se um objecto de primeira necessidade, como a flanela ou as fazendas de algodão: e, portanto, toda uma população de romancistas se emprega em manufacturar este artigo por grosso e tão depressa quanto a pena pode escrever, arremessando para o mercado as páginas mal secas no ansioso conflito da concorrência.

Mas a gula, a gulodice de livros de viagem é também considerável, e de resto bem explicável numa raça expansiva e peregrinante, com esquadras em todos os mares, colónias em todos os continentes, feitorias em todas as praias, missionários entre todos os bárbaros, e no fundo da alma o sonho eterno, o sonho amado de refazer o Império Romano. Isto produziu um outro industrial – o prosador viajante.

Antigamente contava-se a viagem quando casualmente se tinha viajado: o homem que visitava países longínquos, se achava em aventuras pitorescas, à volta, repousando ao canto do seu lume, tomava a pena e ia revivendo esses dias numa agradável rememoração de impressões e paisagens. Hoje, não. Hoje empreende-se a viagem unicamente - para se escrever o livro. Abre-se o mapa, escolhe-se um ponto do universo bem selvagem, bem exótico, e parte-se para lá com uma resma de papel e um dicionário. E toda a questão está (como a concorrência é grande) em saber qual é o recanto da Terra sobre que ainda se não publicou livro! Ou, quando o pais é já toleravelmente conhecido, se não terá ainda alguma aldeola, algum afastado riacho sobre que se possam produzir trezentas páginas de prosa...

Quem hoje encontrar, em algum intrincado ponto do globo, um sujeito de capacete de cortiça, lápis na mão, binóculo a tiracolo, não pense que é um explorador, um missionário, um sábio coligindo floras raras – é um prosador inglês preparando o seu volume.

Nada elucida como um exemplo. Aqui está a lista dos livros de viagens publicados em Londres nestas duas últimas semanas.

É claro que eu não os li, nem sequer os enxerguei. Copio os títulos, somente, da lista de dois jornais de crítica: o Atheneum e a Academy. Note-se que estes livros são quase sempre bem estudados: dão o traço e a linha que pinta, a paisagem com a sua cor e luz, a cidade com o seu movimento e feições; são gráficos e são críticos; têm a geografia e têm a observação; e mais ou menos fazem reviver com o detalhe característico o povo visitado, na sua vida doméstica, a sua religião, a sua agricultura, o seu desporto, os seus vícios, a sua arte, se a tem. Calcule-se, pois, a importância desta literatura, que se toma assim um inquérito sagaz, paciente, correcto, feito ao universo inteiro (…).
Ainda há outros, ainda há muitos – e em quinze dias!

Seria curioso dar paralelamente a lista de poemas, livros de poesias, odes, baladas, tragédias, anunciados ou já publicados na primeira quinzena da estação – mas não tenho paciência em revolver todo esse lirismo. Há uma «grande sensação»: o livro de Dante Rosseti, um dos mestres modernos: o resto é apenas um bando amoroso e triste de rouxinóis.

Não menos espessas, nem menos compactas, são as listas dos livros de teologia, controvérsia, exegese, etc. – exalando de si uma melancolia de cemitério. Em metafísica há o costumado sortimento – maciço e vago, como diria Herbert Spencer. Em história, biografia, crítica, as listas bibliográficas vêm riquíssimas... Enfim, ao que parece, é uma formidável e grandiosa estação de livros. Aos romances, nem aludo: montões, montanhas – e monturos!

Uma pastora meio selvagem das Ardenas, que nunca vira outro espectáculo mais grato ao seu coração do que as cabras que guardava, foi um dia trazida das suas serranias a Paris, quando no bulevar passava, com a tricolor ao vento, um regimento em marcha. A pobre donzela fez-se branca como a cera, e só pôde murmurar numa beatitude suprema:
– Jesus!, tanto homem!
Eu sei que estou aqui fazendo o papel ridículo desta pastora, e balbuciando, com a boca aberta, como se chegasse também das Ardenas:
– Jesus!, tanto livro!
Mas não é este grito, como o da pastora, natural?
O beduíno do deserto do Oeste que, passando a Serrania Líbica, avista pela primeira vez, imenso, lento, enchendo um vale, o rio Nilo, exclama espantado:
– Alá!, tanta água!
A água é a sua preocupação: todas as tristezas das areias que habita vêm da falta da água: mais que ninguém sente as maravilhas que a água produz; e no seu grito há uma tímida repreensão a Alá! «Tanta água aqui e tão pouca lá donde eu venho!...». Assim eu venho... Mas o resto da comparação complete-a, antes, o leitor astuto."

1 comentário:

Américo Oliveira disse...

Assim eu venho... Mas deixemos falar Ramalho Ortigão, em prosa datada de Novembro de 1872:
"Fogo em um prédio a Buenos Aires. Socorros prontos. Prémio à bomba número tal. Grande inteligência e acerto em todas as medidas tomadas por parte da direcção técnica do serviço dos incêndios. Extraordinária dedicação. Prodígios de valor. Falta de água. Dois bombeiros feridos e um quase morto.
Resultado: ardeu tudo.
Pouco tempo antes, no Aterro, outro incêndio. Inspecção, bombas, o ministério, o comandante da guarda municipal, e Sua Magestade El-Rei no lugar do sinistro. Inexcedível bravura. Devoção infatigável. Completa ordem. Exemplar disciplina. Falta de água. Três bombeiros no hospital. O inspector ferido.
Resultado: ardeu tudo.
As duas notícias precedentes são o molde e a norma geral de todas as notícias de todos os incêndios de todos os bairros de Lisboa.
Ocorre, naturalmente, advertir uma coisa:
Que, sendo o resultado final e definitivo de todos os esforços, de toda a ciência, de toda a coragem, de toda a filantropia, de toda a disciplina, de todos os bombeiros estropiados e mortos - o arder tudo -, seria mais natural, mais lógico, mais filantrópico, mais humano e porventura mesmo mais producente, que ao darem as torres sinal de incêndio começassem os socorros por ficarem em suas casas. As chamas ver-se-iam prodigiosamente embaraçadas se, depois de terem devorado tudo, quisessem ainda, só pelo facto de estarem ausentes os socorros, devorar mais alguma coisa! Demaisacha-se hoje exuberantemente provado pelas mais repetidas experiências que o expediente até agora empregado de lançar aos incêndios alguns bombeiros é insuficiente para dominar o fogo. Actualmente, está na convicção de todas as pessoas que têm presenciado incêndios que eles têm o capricho indomável de se não apagarem senão com água.
Ora, nem a Companhia das Águas nem a Câmara Municipal têm a condescendência de servir a Lisboa a água suficiente para inundar um prédio. Estamos nesta contingência: que se apagamos os incêndios não temos com que lavar a cara. É sério e é respeitável; somente não nos parece que a razão de não haver água para lançar a um incêndio obrigue absolutamente a lançar-lhes bombeiros.
Por consequência:
Que se continue a lavar a cara e a deixar os prédios - como até aqui. Mas que se isolem os bombeiros!
Se os socorros persisatem na teima inconcebível de acudirem aos incêndios, se a Câmara não puser termo a esse abuso, arrisca-se muito a um desastre que lhe está iminente, e é - arderem-lhe as bombas!"

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