terça-feira, 11 de agosto de 2009

ESPINOSA E URIEL DA COSTA

O último número especial do "Nouvel Observateur" é inteiramente dedicado a Espinosa. O judeu português Uriel da Costa é referido no artigo "Juifs d' Amsterdam" de Gabriel Albiac, e a sorte trágica de Uriel da Costa, que se suicidou com um tiro em 1640, é relatada em caixa através da tradução em francês do "Espelho da Vida Humana" de Uriel. Eis a tradução portuguesa do excerto escolhido (o original é em latim):

"Entrei na Sinagoga, que estava cheia de homens e de mulheres, e quando foi tempo, subi ao taburno de madeira que está no meio da Sinagoga para o serviço dos sermões e demais actos do culto; li em voz alta o escrito, redigido por eles, em que eu confessava que merecia morrer mil vezes pelos pecados por mim cometidos, convém a saber: não ter guardado o sábado, ter violado a fé a ponto de chegar a aconselhar os mais a que não viessem para o judaísmo; e que em satisfação de tais culpas eu queria obedecer ao que me ordenassem e cumprir as penas que me impusessem, prometendo não tornar a cair de futuro em semelhantes iniquidades e malfeitorias. Acabada a leitura, desci do taburno e acercou-se de mim o venerando presidente, dizendo-me ao ouvido que fosse para um outro canto da Sinagoga. Assim fiz; então o porteiro ordenou-me que me despisse. Despi-me até à cintura, atei um lenço à cabeça, descalcei os sapatos e ergui os braços, pondo as mãos em uma espécie de coluna. Chegou-se a mim o porteiro e atou-me as mãos à coluna com uma faxa. Depois vem o precentor e, pegando de um couro, deu-me trinta e nove tagantes conformemente à prática tradicional — a Lei prescreve que não sejam mais de quarenta, e sendo estes varões tão escrupulosos observadores das leis, guardam-se de cair em pecar por excesso Durante a flagelação cantava-se um salmo. No fim assentei-me no chão, e o grão-rabino — que ridículas que são as cousas do género humano! —chegando-se à minha beira, levantou-me a excomunhão; destarte já me estava aberta a porta do Céu, que antes disto, de valentemente trancada, me impedia de entrar. Depois tornei a vestir-me e fui para a entrada da Sinagoga. Prostrei-me no chão, amparando-me o guarda a cabeça. Então todos quantos desciam, passavam por cima de mim, quero dizer, levantando um pé, passavam para além junto da parte inferior das minhas pernas. Isto praticavam todos, moços e velhos — não há bugios que possam apresentar a olhos humanos nem actos mais desentoados, nem gestos mais ridículos. No fim, quando já não restava mais ninguém, ergui-me, e tendo-me limpado do pó, com ajuda daquele que estava ao meu lado — ninguém diga que eles não me honraram, pois, se me atagantavam, em todo o caso, choravam e afagavam-me a cabeça — voltei para casa. Ah gente, a mais desfaçada do mundo! Ah padres execrandos, de quem, dizeis, eu não devia temer que me fosse dado mau trato! «Espancarmos-te? Longe tal pensamento!» Avalie agora quem isto ouvir, que cena era aquela; um velho, nada baixo de condição, por natureza sobremodo envergonhado, em uma assembleia pública, despido na presença de toda a gente, homens, mulheres, crianças, e açoutado de ordem de juízes, e de juízes destes, que são mais escravos abjectos do que juízes; considere que dor não seria cair aos pés de inimigos encarniçadíssimos. de quem lhe tinham vindo tantos males, tantos agravos, e prostrar-se para ser pisado; pense-o que ainda mais é, e pode com razão chamar-se caso fora do natural, monstruosidade horrenda, de cuja vista hedionda a gente foge arrepiada — que meus irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, criados juntos na mesma casa, trabalharam afincadamente para isto, esquecendo o afecto que eu lhes tinha — que tal sentimento era feição distintiva da minha índole e esquecendo os muitos favores que por minha intervenção haviam recebido na sua vida e que me foram pagos com ignomínias, perdas, calamidades, fealdades e abominações, tantas, que uma pessoa se corre de referi-las."

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