Bernard Houot era um engenheiro bem sucedido, com um salário acima da média e várias outras regalias que não estão ao alcance dos professores. Porém, quando se encontrava na casa dos quarenta, resolveu mudar de profissão e ir… para o ensino.
A descoberta do modo como o sistema educativo e a escola funcionam e do modo como professores, alunos e pais convivem é relatado num livro intitulado Coeur de Prof, publicado em França, em 1991, e que a editora ASA traduziu para português dois anos mais tarde, designando-o por Esta vida de professor…
A escrita bem disposta e aparentemente leve de Houot remete-nos para questões sérias e profundas que permanecem actuais entre nós. Uma delas é a do sucesso/insucesso dos alunos, em relação à qual mais uma vez, por vias de notícias recentes, nos interrogamos neste tempo que ainda é de férias escolares.
De entre as várias passagens que remetem para o assunto escolhi a que se segue (páginas 90-92):
“Sentimo-nos por vezes excedidos, como um médico de hospital, pela diversidade dos casos que se apresentam à consulta. Para recuperar a confiança, consolamo-nos com os sucessos da medicina. Porque não os terá também a pedagogia?
O nosso problema, infelizmente, não é tão simples como o de um médico. Antes de mais os pacientes não se apresentam à razão de trinta e cinco de cada vez. Embora cada um tenha as suas particularidades, temos de tratar todos os casos ao mesmo tempo. Além dos nove ou dez alunos muito lentos pelos quais simplificaríamos de boa vontade a matemática, há vinte alunos médios que parecem acompanhar muito bem e dois ou três cracks capazes de terminar uma demonstração antes de nós. Todos esperam com impaciência que nos ocupemos dos seus casos pessoais.
Um médico vulgar não hesita em mandar os seus pacientes para um especialista quando não tem a certeza do seu diagnóstico ou do tratamento a prescrever. Na educação não ocorreria a ninguém pensar que as nossas competências não são universais. Aí está outra diferença relativamente à profissão de médico: nós só podemos contar connosco para tratar seja o que for.
Esta última exigência parece-nos bastante normal no momento em que abordamos pela primeira vez a profissão de professor. Estamos convictos que sabemos obter bom aproveitamento de todos os alunos, sem excepção, graças apenas ao nosso trabalho (…).
E toca a meter mãos à obra, de fronte erguida. Quando os alunos começam a patinar tomamos a coisa como uma ofensa pessoal. Redobramos os esforços. Estamos persuadidos que os nossos fracassos se devem apenas à falta de tempo, de experiência ou de quantidade de trabalho. Somos obnubilados por um orgulhos insensato que nos remete a um trabalho solitário. Tentamos sempre fazer mais e melhor a ponto de arriscar uma depressão nervosa.
É preciso algum tempo e muita modéstia para finalmente reconhecer a evidência: há alunos que não conseguiremos salvar. A nossa incapacidade relativamente a eles nada tem a ver com falta de trabalho, de formação ou de experiência. Está antes ligada à nossa personalidade, ao nosso ritmo, aos nossos métodos, aos nosso defeitos e às nossas qualidades. Ou então relaciona-se com o meio e as condições em que temos de ensinar. Esses alunos não funcionam como nós. Eles não aderem à nossa pedagogia. Eles não têm a nossa maneira de abordar a questão. Ou então não entram nos moldes que lhes propõe o estabelecimento onde ensinamos (…).
Quando os alunos não têm sucesso, declara-se de bom grado que têm dificuldades. Poucas pessoas se iludem com sobre este eufemismo. São, antes de mais, os professores e os estabelecimentos que estão em dificuldades.
Porque se atribui tão facilmente a responsabilidade pelo fracasso aos alunos e não ao sistema escolar? Será que os professores tiram daí alguma vantagem? Não creio. Embora a linguagem pareça desculpá-los, eles sabem que têm uma parte de responsabilidade (…). Muitos até se consideram mais culpados do que realmente são. Persuadidos de que só devem contar com eles próprios, vivem o sucesso ou fracasso dos seus alunos como uma coisa privada pessoal. Daí a sua vergonha em reconhecerem-se inaptos para tratar os casos de certos alunos, a sua hesitação em recorrer a outras pessoas, a sua recusa de alertar o estabelecimento quando se acham em dificuldades. Toda a declaração de impotência se lhe afigura uma espécie de demissão relativamente à elevada ideia que têm da sua responsabilidade.
Ninguém, no seio da Educação Nacional, irá dizer-lhe que devem preocupar-se unicamente, da forma mais séria e aberta possível, com o sucesso dos seus alunos e não pretenderem fazer tudo sozinhos. Ninguém os convida a advertir a direcção do seu estabelecimento, caso experimentem dificuldades".
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2 comentários:
Escrevi um comentário a este post, mas cometi o erro de o escrever primeiro no Word e verifico agora que não dá para colar. Sucede que tenho mais do que fazer do que voltar a escrever o que acabei de escrever agora mesmo.
Estas restrições que o De Rerum Natura agora tem relativamente à escrita e à publicação de comentários fazem-me lembrar um velho de professor de História (salazarista até à caricatura) do liceu Camões (que conheci quando lá fiz o estágio) que defendia o seguinte:
a única maneira de impedir que os alunos fiquem com os livros da Biblioteca Escolar é não os deixar levar os livros para casa e apenas permitir a sua consulta na escola.
Sublinho que o referido senhor defendia essa política em relação a todos os livros e não apenas em relação a alguns livros mais raros ou frágeis.
Não lhe ocorria que fazer isso era anular aquilo que dá sentido à existência de bibliotecas escolares.
Os meritórios autores do blogue De Rerum Natura terão já reflectido o suficiente acerca do que dá sentido a um blogue?
Com os melhores cumprimentos.
Vou colocar as coisas assim: o problema é que 8 em cada 10 portugueses são aldrabões. O que é válido para os professores, para os médicos, para os canalizadores e mecânicos, para os ricos e pobres. Perante tão tenebrosa e fatalista estatística, acho importante percebermos que quanto mais poder temos, mais responsáveis somos pelo Devir.
Parece-me que a corajosa opção de Bernard Houot poderá, também, estar relacionada com o que acabei de dizer.
Este autor, pelo que aqui li, focaliza a questão na complexa actividade do professor.
Aproveito a oportunidade para focalizar outra variante pouco equacionada nestas reflexões sobre o ensino, sugerindo um simples exercício de perspectiva: coloquemo-nos na pele dos alunos, esses seres abstractos que são parte importante do problema…
Eles (os alunos) são mal-educados, irreverentes (os adolescentes ou todos os que sofrem de problemas emocionais), desinteressados, irrequietos e rápidos (os mais novos), arrogantes e distantes (os mais velhos). Mas… experimentemos sentir, por breves momentos que seja, o peso nas costas da mochila cheia até à dor, os dedos gelados e o cérebro a fritar no calor sufocante de Setembro e Junho/Julho, as hormonas a correrem descontroladas nas veias - causa do mau-cheiro que tanto incomoda os pobres dos adultos-, o mau-cheiro por falta de asseio corporal e devido a má alimentação, as bichas intermináveis para tudo e mais alguma coisa em intervalos que não chegam para ir à casa-de-banho, as mesas apertadas em que o corpo não cabe, a carga horária interminável anunciando o fim do dia e a impossibilidade de conviver com os da mesma idade… e a insondável vontade de dançar (metaforicamente falando).
PS – Não li o livro de Bernard Houot, o meu comentário foi suscitado apenas pelo que li no De Rerum Natura.
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