terça-feira, 30 de maio de 2023

Alguém espera o poema

Alguém espera o poema

Para molestar o homem.

E o poema é como o chão

Onde todas as flores se somem.

A DIFÍCIL ARTE DE ADMIRAR

Por Eugénio Lisboa
Aquele que deseja a rosa deve respeitar o seu espinho
André Gide 

A admiração é algo de nobre, mas esconde compartimentos sombrios. Num deles, habitam, encafuados, a inveja e o ciúme, que precedem a frustração e o rancor. A admiração pode ser ou parecer que é motor de arranque para uma emulação construtiva. 

É, por exemplo, o caso do grito dado muito cedo por Victor Hugo: “Quero ser Chateaubriand ou nada!” Isso levou-o aos píncaros de ser Victor Hugo, o maior poeta da língua francesa. 

Mas o querer ser alguém que se admira pode implicar uma alquimia produtora de vinagre ou mesmo de veneno. Admirar está cheio de armadilhas. A pior é a do amor supostamente não correspondido.

O “Quero ser Chateaubriand ou nada” descamba, não raro, no ódio vesgo a Chateaubriand. Não foi o caso de Hugo, ou o de Barrès ou o de Montherlant, que terão tido esse sonho: porque, tinham eles próprios, génio de sobra. Mas foi, no século passado, nos anos trinta, quarenta, cinquenta, o caso do “Eu quero ser Régio”, anseio de tantos jovens que, depois, não se cansaram de denegri-lo, de persegui-lo, de odiá-lo… de invejá-lo, tanto mais e tanto mais zangadamente, quanto mais ele se mostrava insubornável e admiravelmente independente. 

Que os novos acrescentadores de poesia ou de ficção se crispassem e o farpeassem – merece uma certa compreensão e atenuante: os que lavram o mesmo território, tendem a não se verem com particular carinho uns aos outros. Wilde, com a finíssima perspicácia que o caracterizava, observou que os deuses, ao correrem nas suas carroças, fazem tanta poeira para os lados, que se não conseguem ver uns aos outros.

Claudel não via Gide, Gide não via Proust, Tolstoi não via Shakespeare e o sereno, ponderado e objectivo Martin du Gard não via Balzac (este, felizmente, viu Stendhal). 

Isto diz respeito aos que metem a mão na massa, isto é, aos criadores de arte. Mas que, por essa mesma altura, críticos, ensaístas encartados, professores, gente a quem compete outra objectividade, outra capacidade de perspectiva, gente que devia ver-se como verdadeiros guardiães do património, que gente desta sacudisse para o caixote do lixo uma grande e invulgar figura como o autor de MAS DEUS É GRANDE, de O PRÍNCIPE COM ORELHAS DE BURRO, de A CHAGA DO LADO, de JACOB E O ANJO, de HISTÓRIAS DE MULHERES, de A VELHA CASA, de EM TORNO DA EXPRESSÃO ARTÍSTICA, de ENSAIOS DE INTERPRETAÇÃO CRÍTICA, que um autor de uma obra vasta e de invulgar quilate fosse assim levianamente descartado, como imprestável, pergunto: que país é este? Que clercs são estes? Somos assim tão ricos que possamos dar-nos ao luxo de desprezar pepitas destas? 

Dizia Malraux que “uma das mais altas qualidades de um homem que não é um animal é ser capaz de admirar”. Infelizmente, entre nós, a capacidade de admirar merece sério escrutínio: quem se admira, como se admira por que se admira e por que se deixa de admirar, para passar a desprezar e atacar. Observava um não muito conhecido escritor francês que “há no homem, quase sempre, duas vozes que falam simultaneamente: a admiração e a inveja”. À mínima suspeita de amor mal correspondido, a primeira torna-se na segunda, com particular rancor incluído…

Vi isso acontecer, em muitos casos, com o grande escritor de Vila do Conde e de Portalegre. Jovens escritores, ambiciosos e gulosos de glória, cedo concluíam que o sóbrio e muito ocupado escritor, professor, jornalista, colecionador de antiguidades e cuidadoso e muito requisitado epistológrafo, além de assíduo frequentador de salas de cinema, não tinha disponível, para eles e para a promoção deles, todo o tempo e energia a que se julgavam com direito: receita infalível para o amor se transformar em azedume de má catadura. 

Vi, quando, na casa do escritor, em Vila do Conde, passei a pente fino as cartas que religiosamente guardara, a adulação ali manuscrita pela mão de jovens e empertigados autores que, depois, se passaram, com armas e bagagens, par o outro lado: o do denegrimento. A admiração que visa ser escada de acesso a uma promoção do admirador não traz felicidade. Os poetas, às vezes, dizem-no melhor e de maneira mais curta: “O segredo da felicidade reside em admirar sem desejar” (Carl Sandburg, poeta americano). 

Eugénio Lisboa

segunda-feira, 29 de maio de 2023

A NORMALIZAÇÃO DA QUEIXA (TAMBÉM) NO ENSINO SUPERIOR

Por Maria Helena Damião e Isaltina Martins

Extractos de um texto assinado por Raquel Varela, professora universitária, e publicado no facebook
(...) o que temia está a generalizar-se: a expropriação da autonomia do professor universitário, como antes do secundário. Os alunos a fazer queixa de professores, incluindo do conteúdo leccionado, e os directores a chamar professores a justificar-se (...). 
Um colega meu foi "acusado" pelo aluno de ensinar um antropólogo altamente complexo, o aluno escreveu ao director um resumo ridículo, dizendo que não sabia porque aquilo era ensinado, o director em vez de o mandar tomar um banho gelado aceitou e deu procedência ao email pedindo ao professor para se justificar!; noutro caso um colega meu usou a palavra "miúdas" na turma como só tinha mulheres, seguiu para queixa; e noutro a mãe fez queixa do professor demasiado exigente com o filho com mais de 20 anos, ao que esse meu colega respondeu que iria chamar a mãe, com mais de 70 anos, para responder! (...). 
(...) uma parte dos alunos e pais, minoritários felizmente, mas o suficiente para criarem problemas, se consideram não alunos mas "clientes" que querem receber um certificado o mais rápido e com a melhor nota possível. Essa é a noção que têm alguns de Universidade. 
Recordei-me com orgulho da primeira vez no ISCTE ainda como aluna, há mais de 20 anos que me entregaram um papel anónimo para preencher e "avaliar" os meus professores e eu, em voz alta, perante toda a turma, disse que não avaliava professores, muito menos de forma anónima (...) 
E se não regressa a democracia às universidades o caminho vai ser dramático. Sairão de lá alunos daqui a uns anos depois de ver 500 vídeos, não ler um livro, prontos para irem para o mercado de trabalho apertar botões e obedecer. 
O assédio contra os professores universitários, em tempos de transformação digital e ensino-máquina, está aí. Estão a retirar-nos a liberdade de ensino para "adaptar a Universidade ao mercado de trabalho". 
Não, o mais grave na Universidade não é o poder dos catedráticos, é a destruição em curso da autonomia de ensino (...). Certamente com gestores-directores, a dar procedência a queixas que não são mais do que assédio contra professores (...). 
Por "milagre" já se sabe os melhores professores, apaixonados por ensinar, críticos, exigentes, receberão mais queixas, os piores, que odeiam alunos, chegarão rapidamente ao topo da direcção onde exercerão o poder usando as queixas como arma."

Sobre a "nova" convivência no ensino superior deixámos várias notas, por exemplo, aqui e aqui

domingo, 28 de maio de 2023

UM DUPLO E FELIZ ANIVERSÁRIO

Coincidência captada na fotografia abaixo reproduzida (daqui): o nonagésimo terceiro aniversário do nosso companheiro de blogue, Eugénio Lisboa, e da Feira do Livro de Lisboa. Lateralmente, o Presidente da República e o editor da Guerra e Paz. Justificados sorrisos.

COMO AS MÁQUINAS "INTELIGENTES" REDOBRAM A URGÊNCIA DA EDUCAÇÃO

Texto pedido a Carlos Fernandes Maia
Professor de Filosofia e Ética

1. As máquinas 'inteligentes' recentemente apresentadas ao mundo, na sua promissora/assustadora capacidade “generativa”, só têm abertura e alcance em função dos parâmetros que os seus fabricantes determinam: são eles que determinam aquilo que elas podem "determinar"… E, até ao momento, o que eles conseguem determinar é o seu funcionamento instrumental. 

2. De entre essas máquinas, há umas que são elogiadas e recomendadas para uso escolar ao mesmo tempo que são temidas e proibidas nesse mesmo contexto. Há a dizer delas que uma coisa é o seu sistema que faz remissões sobre obras e teorias, que armazena o inimaginável, que compõe e recompõe, que escreve textos e cria imagens, que “dialoga” com humanos, etc. – admirável, sem dúvida, à luz do engenho tecnológico –; mas, outra coisa é pensar. 

3. Quando o psicólogo Jean Piaget definiu a filosofia como uma “tomada de posição raciocinada em relação à totalidade do real”, incluiu o compromisso da “tomada de posição” em saber, em aspiração, em vontade. Incluiu o raciocínio – que pode ser aberto, e daí surge o incriado – e a possibilidade, dado que o real inclui o existente mas também o possível. 

4. Os sistemas ditos de 'inteligência artificial' usam uma linguagem que, desavisadamente, parece humana, mas não o é porque ela não permite o querer, o aspirar, o ter vontade de encontrar a verdade, como o incentivo a modos humanos melhores ou, até, como construção utópica. 

5. A linguagem em que esses sistemas foram programados recorre a palavras que o ser humano inventou e alinha-as segundo regras da racionalidade técnica. A fé, a esperança, o medo, a coragem, a cobardia, a traição, a solidariedade, a fruição, a honra, a indiferença, o ódio, o asco à indignidade, a paixão e muitas outras particularidades humanas manifestam-se de forma muito diversa e, não raras vezes, subtil. 

6. Esta manifestação pode acontecer por meio de palavras mas pode, igualmente, dispensá-las, e podem as palavras ter um sentido contrário à intenção ou serem consonantes com ela. Não deixa, contudo, de parte a dignificação ou a depravação da pessoa e da espécie.

7. Não consigo imaginar uma máquina 'inteligente' a criar um novo movimento artístico, fruto da rebelião contra o instituído, nem a “dar a vida”, com dor extrema e saudade infinita, por alguém querido, ou por um ideal.

8. Que a máquina esteja preparada para destruir ou construir, e, até, para se destruir ou conservar isso não depende da sua decisão, mas da decisão do seu programador. E mesmo que este tudo faça para evitar uma catástrofe no sistema de comunicação, segurança, etc. não pode descartar um descontrolo.

9. Confiar cegamente na máquina, porque (já) a colocámos num patamar sobre-humano, transcendental, é descurar o (tão-só) humano que a programa. Depositar nela o conhecimento, descurando outros modos de o guardar, até com a preocupação de poupar papel, faz correr o risco de perder a cultura tantas vezes produzida com sofrimento, fome, solidão e morte.

10. As novas tecnologias, como todas as tecnologias que as precederam, contribuirão para o bem ou para o mal, conforme o paradigma com que sejam construídas e usadas. Como os pesticidas, a energia laser ou nuclear, a manipulação dos vírus ou a engenharia genética, a 'inteligência artificial' fará o que lhe 'ensinarem' e permitirem.

11. Entendo que a inteligência aberta só está ao alcance do Homem, que, por sua iniciativa e se for bem 'ensinado' – ou, melhor, educado –, é capaz de agir com propósito, de se aperfeiçoar nas faculdades que são próprias dessa inteligência. É com isso que, se somos educadores, nos devemos preocupar.

12. E, bem o sabemos, só uma educação abrangente, profunda e bem situada axiologicamente poderá encaminhar a humanidade para um destino que se possa dizer humano. 
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Nota: O primeiro texto de carácter académico do autor, integrado em livro de atas de um congresso realizado em Vila Real (29-31 de Maio de 1989) tinha como título Homens e/ou máquinas. Os problemas essenciais no que toca à Educação colocados à altura, continuam por resolver.

sábado, 27 de maio de 2023

POETA DA ÁGUA

À memória de Glória de Sant’Anna 
Bela poetisa, que viveu no norte de Moçambique, 
face à esplendorosa baía de Pemba


Eras discreta e boa ouvinte,
sabias ouvir a dor e o mar.
Era com um sossegado requinte,
que tu conseguias auscultar.

Eras curiosamente daltónica,
não distinguias o branco do preto.
Tua arte era suave, mas tónica,
dando ânimo aos que estavam num gueto.

O silêncio azul da tua água
continha em si vozes bem profundas,
capazes de acolher tanta mágoa!

Com tua água transparente,
afundas tanto ódio e tanto preconceito,
deixando o malfeitor desafeito!

Eugénio Lisboa

MIÚDOS AGARRADOS A UM ECRÃ E A ESCORREGAR PELA PAREDE

Em 2017, uma escola de Santa Maria da Feira (Escola EB 2/3 António Alves Amorim) proibiu o uso de telemóveis no seu recinto. Foi notícia na altura (ver, por exemplo, Uma escola portuguesa sem telemóveis), apareceu com alguma regularidade nas notícias e volta agora a ser destacada. Hoje, a Agência Lusa informa, no essencial, o seguinte (ver, por exemplo, aquiaqui):
Teria sido um professor a solicitar a restrição do uso de telemóveis.
Esse professor foi ouvido pela direcção.
O conselho pedagógico, os professores e o conselho geral (onde estão representados os encarregados de educação) estiveram a favor. Os miúdos acabaram por concordar.
Percebe-se aqui uma vontade partilhada... Mas também se percebe que medidas óbvias, razoáveis, comuns, afigurando-se "pedagogicamente" impopulares, requerem um escrutínio alargado.

Feitas as contas, a actual directora diz que a restrição foi "a melhor coisa" que aconteceu na escola:
- O recreio escolar readquiriu a animação característica desse espaço, os miúdos passaram a fazer o que os miúdos costumam fazer quando não usam telemóvel;
- Os miúdos dizem que gostam de fazer os que os miúdos costumam fazer quando não usam telemóvel;
- Sem usarem telemóvel, dizem os professores auscultados, desenvolvem capacidades de socialização e comunicação, desenvoltura argumentativa;
- Dizem também que o 'bullying' online diminui (nomeadamente, a difusão nas redes sociais de imagens e de vídeos captados nas aula, em situações de agressão, etc).
Nada de extraordinário! Medidas educativas tendem a traduzir-se em resultados educativos.

Destaco o comentário clarividente de uma professora de Matemática e Ciências:
"Venho de uma escola onde os miúdos, mal saíam das aulas, escorregavam pela parede abaixo com o telemóvel e ficavam ali agarrados àquilo. Não havia convívio como há aqui e por isso é que achei isto magnífico. Todas as escolas deviam seguir este exemplo (...) Estamos na era das comunicações, mas a nossa sociedade está a ficar doente por causa da falta de comunicação física, presencial. Acho esta medida importantíssima, pela saúde dos nossos filhos - principalmente a mental".

O tom que dei a este texto parece dar a entender que não valorizo por aí além a medida em causa. Na verdade, reconheço-lhe grande valor. Apenas sublinho que se trata de uma medida que, por isso mesmo, deveria ser a regra e não a excepção; deveria ser o normal e não o estranho.

Sobre a questão dos telemóveis em contexto escolar escrevi aquiaquiaquiaquiaquiaqui

quinta-feira, 25 de maio de 2023

quarta-feira, 24 de maio de 2023

FAZER UM BOM USO DO ROUBO

Por Eugénio Lisboa

O grande T. S. Eliot dizia que os poetas imaturos imitam, mas os poetas maduros roubam. Foi o que ele fez a Dante, como Camões a Virgílio e Racine a Eurípedes. Fernando Pessoa também não esteve com meias medidas e foi buscar o seu "A minha pátria é a língua portuguesa" ao Rivarol que, no século XVIII, fugindo da França do Terror, para um exílio sem retorno, escreveu, como quem se salva: "A minha pátria é a língua francesa."

Petrarca foi alimento do Camões lírico. E o grande Goethe dizia que, a ele, até os poetas de segunda ou terceira categoria lhe serviam, quando estes se apercebiam de coisas que a ele lhe tinham escapado. 

Eça, que dizia, a propósito de uma carta longa que escrevera, não lhe ter chegado o tempo para a fazer mais curta, foi buscar esta pérola ao Padre António Vieira. Contemporâneo de Vieira, Pascal disse a mesma coisa. Coincidência?

O chamado "plágio" era antigamente tido como uma homenagem ao "plagiado", uma amistosa chapelada. O que é bom é para usar e divulgar. A apropriação é uma forma de amor e até de autoria cúmplice.

Quantas vezes dizemos: "Quem me dera ter escrito ou dito isto!" Não é inveja, é admiração.

Oscar Wilde, que tinha espírito para dar e vender, não se lhe dava de se apropriar de um "bon mot" de terceiros. Um dia, numa reunião de amigos, em que estava também o seu grande rival, em matéria de espírito aguçado, o pintor Whistler, um dos presentes teve uma saída brilhante e Wilde logo observou: "Quem me dera ter dito isso!", ao que Whistler repondeu: "Hás de dizê-lo, Oscar, hás-de dizê-lo..."

Eugénio Lisboa 
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Nota: Espero que este texto não dê conforto aos que plagiam a torto e a direito nos trabalhos escolares. Aí é grave por se tratar de actos académicos que devem demonstrar a consistência e originalidade de pensamento de futuros investigadores ou profissionais. A apropriação, neste caso, é batota. Mas a apropriação feita com graça, esbelteza e criatividade faz parte da alegria de viver... Mel Brooks numa deliciosa cena passada num parque põe um pássaro a caganitar em cima da cabeça do protagonista, numa clara alusão faceira ao filme OS PÁSSAROS, de Hitchcock! Isto não é plágio, é "citação" velada e homenagem.

terça-feira, 23 de maio de 2023

TERMINOLOGIAS INTRIGANTES

Por Eugénio Lisboa

No actual duelo crispadíssimo entre os sociais democratas e os socialistas, mas também, de uma maneira geral, nos confrontos entre estes dois partido, anda-se a dar como assente que se trata de uma confrontação entre a direita e a esquerda.

Isto deixa-me profundamente intrigado, porque o próprio líder do PSD se assume como parte dessa direita, embora, ambiguamente, apenas rejeite aliar-se à extrema direita. Em primeiro lugar, não me parece que um partido que se intitula “social democrata” se possa ter como de direita. Em seguida, um dos fundadores ainda vivo, o Dr. Pinto Balsemão, há bem pouco tempo sublinhou bem claramente que o PSD era um partido do centro-esquerda.

Pergunto: o Dr. Luís Montenegro revê-se nisto? Sá-Carneiro considerava o seu partido como sendo de centro-esquerda e, num cartaz eleitoral, não há muito publicado por Pacheco Pereira, o PSD de Sá-Carneiro ia até ao ponto de se considerar “socialista”. O Dr. Luís Montenegro revê-se nisto? A qualificação de “social-democrata” causa-lhe desconforto? Se causa, por que não propõe mudar-lhe o nome? Ou a ambiguidade é um modo de vida?

Seria muito importante que, antes das próximas eleições legislativas, os eleitores ficassem a saber, sem quaisquer dúvidas, se o PSD é o partido de centro-esquerda de Balsemão e Sá-Carneiro ou o partido aparentemente de direita de Luís Montenegro. A zanga, o desprezo e o acinte com que alguns gurus do PSD, incluindo o seu líder, se referem aos socialistas (como se estes tivessem lepra), leva-me a crer, com sólido fundamento, que o seu universo é de direita e mesmo de uma direita não particularmente moderada. E, seguramente, nada tranquila.

Seja como for, é importante que as palavras sejam utilizadas com todo o peso que têm e eu nunca tive conhecimento de uma social democracia que fosse de direita. A claridade de escrita não deve ser a boa fé só dos filósofos. Também fica bem aos políticos.

NOTA FINAL: Não sou nem nunca fui filiado em partido nenhum. Mas se tivesse de escolher entre o de Sá-Carneiro e o de Montenegro, não hesitaria. Montenegro não dá qualquer garantia de se poder vir a preocupar com o bem estar dos portugueses. Torna-se óbvio que está apenas interessado na felicidade de ALGUNS portugueses. 

Eugénio Lisboa

"TEMOS DE LUTAR CONTRA ISSO"

O escritor Salman Rushdie disse num recente discurso público, o primeiro após o último ataque físico que sofreu:
"A liberdade de expressão nunca esteve, em todo o meu tempo de vida, tão ameaçada nos países ocidentais" (...) "tenho de olhar para o extraordinário ataque às bibliotecas e aos livros para crianças nas escolas. O ataque à ideia das próprias bibliotecas. É extremamente alarmante e temos de estar muito atentos e lutar muito contra isso".
Os editores devem permitir que os livros "cheguem até nós do seu tempo e sejam do seu tempo. E se isso for difícil de aceitar, não o leiam, leiam outro livro".
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Recolhi esta informação através da Agência Lusa e aqui e aqui.

domingo, 21 de maio de 2023

O QUE FICA POR DIZER

Um homem é mais homem por aquilo 
que cala do que por aquilo que diz. 
Albert Camus 

Os grandes escritores dizem muito mas calam mais do que dizem. É contra o pano de fundo do seu obstinado silêncio, que se destaca melhor o cintilar inquietante das palavras ditas. O que dizem pressupõe, com estremecimento, o que ficou por dizer.

Régio – e não só ele – passou a vida a confessar-se e a sugerir, sibilinamente, que calava mais e melhor do que aquilo que ousava dizer. Que o que dizia era apenas a ponta visível de um enorme iceberg. Que o que dizia era sobretudo um modo de esconder o que não dizia. Nada mais de desconfiar do que uma confissão, mesmo ardente.

Quem se confessa também se esconde. É neste cache-cache que se movimenta – e secretamente se diverte – o instinto criador. Declarar que vai “dizer tudo” é um truque do departamento de publicidade que o escritor traz consigo. E é talvez um modo enviesado e pérfido de dar a entender que vai esconder muito mais do que vai dizer.

Homero avisava que os poetas mentem muito. A mentira é um seu essencial utensílio de trabalho. Tenta penetrar no que não digo e analisa com cuidado o que digo. 

Tolstoi pregava freneticamente a castidade, enquanto assaltava sexualmente a mulher, com uma repetida gula que a importunava. A sua célebre e panfletária SONATA A KREUTZER (título roubado a Beethoven) é para ser lida sob suspeita.

Os versos de Régio, colhidos, curiosamente, num livro intitulado BIOGRAFIA – “Que eu vivo a expor minh’alma nas estradas / Com chagas inventadas retocadas / Para esconder bem fundo as verdadeiras” – estão longe de denunciar apenas o percurso singular do autor de HISTÓRIAS DE MULHERES. Elas aplicam-se igualmente e talvez paradoxalmente, a todos os grandes confessados da literatura universal, não excluindo nem Santo Agostinho nem o turbulento Jean-Jacques Rousseau. As entrelinhas das grandes confissões estarão prodigiosamente ricas de surpresas. 

Eugénio Lisboa

sábado, 20 de maio de 2023

O FIM DO MUNDO

O mundo pode acabar amanhã 
ou durar ainda biliões de anos.
Quer seja cortesã quer sacristã,
serão perfeitamente iguais os danos,

se esmagadas por imenso asteroide,
ou qualquer uma das cinco maneiras
de destruir esbelto ou mongoloide,
perdidos em poeiras ou fogueiras.

O mundo acabar amanhã, não chega
para nos dar tempo de cogitar.
E biliões de anos aconchega,

porque nos diz que não vamos lá estar. 
Que interessa então o fim do mundo,
irmos ou não irmos, com ele, ao fundo?

Eugénio Lisboa

PALAVRAS PARA UM APOCALIPSE

Escreve as coisas que tens
visto e as que são e as que, 
depois destas, hão de acontecer.
Apocalipse 

A terra está cansada de rodar,
está doente, de tão conspurcada,
está ciosa de se purificar,
de se lavar, depois de violada.

Foi desventrada e foi infectada,
poluíram-lhe os rios e os mares,
fizeram-na lixeira envenenada
e nem sequer lhe pouparam os ares.

Mas quem a conspurcou morre com ela,
por não ter para onde se mudar:
afocinhando na infecta gamela,

num inútil e tosco chapinhar.
Morrer no esterco, sem elegância,
pagando a factura da ganância!

Eugénio Lisboa

Quem me amar, afastar-se-á do mundo

Quem me amar, afastar-se-á do mundo.

Olhar-me-á o peito

Como se o peito tivesse fundo.

“Deixem-me decidir aquilo que me ofende e aquilo que não me ofende”, disse Tom Hanks

A razão e a razoabilidade nem sempre vencem, isto para não dizer que, por si mesmas, tendem a não vencer, sobretudo se atentam contra as nossas crenças mais profundas e forem veiculadas por pessoas a quem não reconhecemos crédito. Já o maior disparate, caso encaixe nessas crenças e seja veiculado por pessoas que admiramos, tem tudo para vencer.

Se razão e a razoabilidade marcarem o discurso de pessoas que admiramos, talvez tenham alguma possibilidade de vingar. Por isso, Tom Hanks veio a público (em entrevista à  “BBC Radio 4”) manifestar-se contra as tristíssimas “guerras culturais” que, sobretudo nos países anglo-saxónicos, já são uma tragédia para a cultura e a arte em geral, para a educação, e para as relações sociais. Afirmou o actor que não lerá livros que sejam reescritos com a intenção de não ofender “sensibilidades modernas”
“Somos todos adultos e todos entendemos o tempo e o lugar em que estes livros foram escritos”. “Não é difícil dizer: isto hoje não é aceitável. [Mas] há que ter fé nas nossas próprias sensibilidades, em vez de ter alguém a decidir aquilo que nos irá, ou não, ofender. (…) Deixem-me decidir aquilo que me ofende e aquilo que não me ofende. Sou contra a leitura de qualquer livro, de qualquer era, que tenha sido truncado” (In Expresso online, 12 de Maio de 2023)

VOLTANDO À DIGITALIZAÇÃO DE PROVAS E EXAMES NACIONAIS

Nesta contemporaneidade "líquida" ou, talvez seja melhor dizer, "gasosa", "superficial", "ligeira" e com tendências histérico-anémicas, o modo de pensar a educação escolar tem sido submetido ao modo de pensar social conhecido por "espuma dos dias", que lhe é mais abrangente. E faz-se também na praça pública, o mesmo é dizer na praça mediática. 

Fora desta praça parece não existir pensamento... se é que podemos chamar "pensamento" ao alarido, às opiniões desinformadas, às discussões inquinadas, sem esquecer as pressões e, naturalmente, as interrupções abruptas. Interrupções de que só damos conta quando certa ideia, prática, decisão, o que for, é retomada como se fosse nova. Volta-se, então, ao mesmo, chamam-se os mesmo "experts", ouvem-se os mesmos argumentos, cria-se a mesma animação. E, no final, tudo continua como previamente estava estabelecido que continuasse.

Imagem recolhida aqui
É exemplo disto a polémica sobre a digitalização de provas e exames nacionais, que ficou "entalada" entre denúncias, anónimas e assinadas, e casos político-policiais de mão cheia. Logo, com um passado tão próximo, já terá desaparecido da nossa "memória de trabalho". 

Entendendo que isso não deve, não pode acontecer, deixo aqui uma nota sobre tal polémica que me foi enviada. É o depoimento de um professor a um telejornal recente. As razões que invoca para justificar especial cautela na dita transição são conhecidas, mas aqui pugnam pela clareza e por um encadeamento bem conseguido, permitindo uma visão abrangente do todo.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

OPINAR NÃO É CONHECER

Ser iletrado é condição triste,
mas ser iletrado ressabiado,
de baba envenenada, em riste,
é pior do que ser só iletrado.

O raivoso tem só opiniões,
que dispara sem fundamento.
O fundamento pressupõe serões
de muito estudo e algum tormento:

só assim, valem as opiniões,
que melhor vivem sem ressentimento.
Contudo, os iletrados pimpões

dão pouca atenção ao conhecimento:
preferem eles opinar à toa,
propondo lixo que se amontoa!

Eugénio Lisboa

REPETINDO-ME...

Sabemos perfeitamente que o uso continuado de ecrãs e teclados em fases precoces de escolaridade prejudica a aprendizagem prevista para essas fases e para fases futuras. As próprias entidades que recomendam tal uso reconhecem (em paralelo e de modo paradoxal) os prejuízos. Mesmo assim, insiste-se na substituição do "papel e do lápis", não apenas no processo pedagógico-didáctico mas também na avaliação. Francisco Louçã, num texto publicado ontem no Expresso com o sugestivo título: "Prendam as crianças dentro do computador", diz o seguinte: 
A tendência para que as provas de avaliação nos diversos graus de ensino passem a ser feitas digitalmente está inscrita tanto no deslumbramento com o computador quanto na facilidade que os ministérios, as escolas e não poucos professores disso esperam obter. Nas faculdades, este entusiasmo relançou os testes por cruzes, que são corrigidos automaticamente, o que evita aos estudantes a maçada de elaborarem um pensamento e aos professores a arrelia de lerem tais prestações. 
A cultura do imediatismo parece, assim, convir a toda a gente, mesmo que alguns recalcitrantes ainda sugiram que as universidades foram criadas precisamente para contrariar tais banalizações. 
Desse modo, o ensino universitário desprepara os estudantes seja para a vida profissional, seja para a investigação científica, pois nem numa nem noutra jamais voltarão a encontrar o divertimento das cruzes (...).
Não fica por aqui a vertigem transformista da mudança do Ensino. Como seria de esperar, os adaptadores querem tudo ao mesmo tempo. Por isso, hoje iniciam uma experiência mais ambiciosa (...) as provas de aferição para o 2.º ano de escolaridade, ou seja, para crianças de sete anos, que deverão responder a questões de Português, Matemática e Estudo do Meio num teclado de computador (...) [É] colocar crianças que estão a aprender a escrever, que estão a formar a sua caligrafia e a começar a ler e a ampliar o seu vocabulário, perante um teclado (...) para se desembrulharem de tarefas complexas na resposta a perguntas do ecrã. 
(...) É uma escolha abominável do ponto de vista da educação. Sabendo que os computadores (...) constituem um mundo (...) que absorve as crianças (e os adultos), que a captação da sua atenção é hoje o princípio mercantil do mundo, fazer mergulhar as aprendizagens nesse ambiente sem lhes permitir o menor esboço de uma alternativa é desproteger os mais jovens (...). 
Que o computador seja a sua divindade, o lugar misterioso que olha para uma criança e sete anos e classifica o seu conhecimento, torna-se uma praxe social cuja violência é somente mal disfarçada pela boa vontade e proteção que as professoras e professores conseguem imprimir no ambiente escolar. O que o Ministério está desta forma a impor, porventura sob a presunção de modernidade, é (...): desde a tua primeira letra, habitua-te a que a máquina seja a tua aprendizagem e a tua sociabilidade, a tua vida depende dela. Big Brother, Big Teacher, Big Friend, tu és nada.
Como sociedade precisamos de tomar consciência do mal que estamos a fazer aos mais jovens, mal que Francisco Louçã aqui bem refere. Isto quando deveríamos protegê-los, ensiná-los e, de modo mais abrangente, educá-los. São eles, os agora jovens, que vão ficar no mundo quando partirmos. Por isso, temos de pensar no mundo que deixamos para o futuro.

O leitor que frequenta este blogue dirá que me repito. É verdade. Mas é preciso repetir, repetir, repetir...

terça-feira, 16 de maio de 2023

CIÊNCIA E RELIGIÃO: A PERSPECTIVA DE UM FÍSICO

Meu texto na revista Fórum Teológico XX, vol V, Ano VI (2023) , Revista do Seminário Episcopal de Angra:

Num passo do seu livro A Noite do Confessor [1], o padre checo Tomáš Halík, teólogo, filósofo e sociólogo, conta a história de um físico, católico e simpático, que foi convidado por um grupo de padres a fazer uma palestra sobre Física Moderna num retiro clerical, na qual deveria contar as últimas descobertas da ciência a respeito do Cosmos, designadamente o Big Bang e a Física de Partículas, que inclui o bosão de Higgs, também chamada “partícula de Deus”. Halík conta que os seus colegas sacerdotes estavam à espera de que o físico lhes dissesse alguma coisa que os ajudasse na sua fé. Mas eles ficaram no final da palestra muito desconsolados, por não terem experimentado qualquer reforço da crença. O físico também ficou desconsolado por não ter correspondido às expectativas: não tinha conseguido transmitir nada de relevante para a fé deles.

 Quem estava equivocado, diz Halík, eram os padres – eles nunca poderiam, numa palestra dada por um físico, mesmo católico e simpático, aprender algo que fosse fazer qualquer diferença na sua crença em Deus. E afirma de um modo muito claro: “O pedido feito pelos sacerdotes de uma prova minúscula [de que Deus existe] não indica apenas uma incompetência possivelmente desculpável, mas também, de forma mais deprimente, uma incompetência teológica bastante menos desculpável e, em particular, uma fé fraca e doentia.” Julgo que estas palavras de um teólogo contemporâneo ajudam a clarificar a relação entre ciência e religião. 

Halík cita Santo Agostinho: “Se há alguma coisa sobre a qual você tem ‘uma opinião firme’, então pode ter a certeza de que isso não é Deus” [2]. Porque sou físico, várias vezes me têm feito a pergunta, designadamente em encontros ligados à Igreja, sobre o que existia antes do Big Bang. Dou sempre a mesma resposta:  “Não sei.” E acrescento: “não faço a mínima ideia do que é que havia antes, se é que de todo se pode falar de um antes.” Não sei e, se bem percebo, nunca ninguém virá a saber. Houve no início uma concentração tão grande de energia que não haverá meio nenhum de ter acesso a qualquer tipo de informação sobre o tempo mais primitivo de todos e, por maioria de razão, ao eventual tempo antes desse tempo primitivo sobre o qual alguns falam. Claro que se pode colocar a questão de saber o que existiria antes: podemos colocar as perguntas todas, mas não temos, na ciência, de responder a todas elas. O Génesis contém um relato mítico da Criação e, quando surgiu a teoria do Big Bang, não admira que tivesse havido uma tentativa por parte da Igreja de colar essa teoria ao relato bíblico. Não faltou mesmo quem, nos círculos mais altos da Igreja, afirmasse, com alguma satisfação: “Ora aqui está, finalmente, a prova científica do Génesis.” Contudo, a teoria do Big Bang não constitui uma prova científica do Génesis. Quem pensa assim ainda vive nos tempos pré‑galilaicos. É um erro tanto científico como teológico misturar dessa maneira ciência e religião. O padre e físico belga Georges Lemaître, contemporâneo do famoso físico suíço e norte‑americano Albert Einstein, tentou dissuadir o Papa Pio XII de prosseguir no mesmo registo após ele ter afirmado em 1952: “Parece que a ciência moderna, remontando a milhões de séculos, foi bem‑sucedida em testemunhar o Fiat Lux primordial, quando, juntamente com a matéria, explode do nada um mar de luz e radiação, quando as partículas dos elementos químicos se separam e reúnem em milhões de galáxias. (…) A ciência moderna… seguiu o curso e a direção dos acontecimentos cósmicos, e tal como indicou o seu desfecho fatal, também indicou o seu início no tempo num período de há cerca de cinco mil milhões de anos, confirmando com a concretização de provas físicas a contingência do Universo e a dedução bem fundamentada que, por essa altura, o cosmos surgiu das mãos do Criador. Por isso, a Criação ocorreu no tempo, e, por isso, existe um Criador.” [3] Lemaître respondeu “Nunca será possível reduzir o Ser Supremo a uma hipótese científica.” [4] E o certo é que o Papa passou a ser mais contido a esse respeito.

Na relação entre ciência e religião tem havido um grande quid pro quo relativamente à questão da causalidade. Na procura, motivada por uma formação estritamente determinista, de uma cadeia de causas e efeitos, não falta quem pretenda remontar tudo às causas primeiras: é, por isso, frequente ouvir dizer‑se que a “causa primeira” é Deus. Contudo, por esse caminho alegadamente lógico, não se consegue provar a existência de Deus, pela simples razão de que a fé está para além da razão. Têm sido ensaiadas, ao longo do tempo, numerosas maneiras para provar a existência de Deus através de argumentos do tipo lógico‑filosófico ou mesmo científico. Pode dar‑se um curso inteiro sobre a história das “provas da existência de Deus” e a conclusão é – pelo menos até agora, não sendo previsível qualquer alteração –, que não se pode provar essa existência. Nem a inexistência, acrescente‑se desde já. A existência de Deus não é, pura e simplesmente, uma questão do domínio da ciência. Deus não aparece no fundo de um telescópio, de um microscópio ou de um acelerador de partículas. Não serão argumentos da Física ou, mais em geral, da ciência que irão permitir que alguém ganhe fé ou, em oposição, perca a fé que tinha.

 O cerne da religião é a fé, que é um mistério sem explicação. Santo Agostinho dizia: “Se compreendeis, não é Deus.” [5] Deus está “para lá” de tudo e de todos, está para lá daquilo que é normal e compreensível. A fé religiosa vai para lá daquilo que compreendemos. 

Se usamos palavras diferentes, «ciência» e «religião», é porque são atividades diferentes, afirmação sobre a qual não haverá discussão: os seus objetivos são diferentes e os seus métodos são diferentes. A ciência procura descobrir o mundo natural, estando o ser humano obviamente incluído nesse mundo. A religião, por seu lado, vai além desse mundo. Mas, se concordamos que existem diferenças substantivas entre ciência e religião, podemos também acrescentar que têm algo em comum, o que significa que são possíveis pontes entre elas. E, na minha visão, o que têm em comum é maior do que normalmente se julga, uma vez que elas são muitas vezes dadas como antagónicas. Se considerarmos que não ocupam o mesmo território, então há espaço para as duas, podendo as duas dialogar percorrendo as referidas pontes. Começo com o mais essencial, que é óbvio: ambas são dimensões do ser humano, correspondem a necessidades do homem. O homem precisa da ciência, uma actividade realizada pelo ser humano em benefício dos seres humanos: o seu resultado pertence – ou deve pertencer – a todos os seres humanos. Apesar de ser realizada apenas por uma pequena parte da Humanidade, a ciência é de toda a Humanidade. Por sua vez, a religião também é uma atitude humana, que foi e é assumida pelo ser humano e que também assenta na partilha pelos humanos. Ela baseia‑se na formação de uma comunidade – aliás, religião significa etimologicamente “ligação”. Então, ambas as actividades são do homem e para o homem. 

Mas há um segundo denominador comum: ambas tentam fornecer sentido ao ser humano. Trata‑se de sentidos diferentes, bem entendido. Dito de uma outra maneira: ambas tentam penetrar em mistérios, embora sejam obviamente mistérios diferentes, uns mais profundos do que os outros. Somos todos seres humanos à procura... Ciência e religião são expressões da incompletude do ser humano, um ser que é, pela sua própria natureza, inquieto, desassossegado, desejoso  de “mais além”. E, como esse anseio é comum, ele realiza‑se em comunidade, em partilha, ou, se quisermos usar um termo do léxico religioso, em comunhão.

 O físico austríaco Erwin Schrödinger, um dos autores da teoria quântica, escreveu que toda a ciência é uma resposta ao imperativo que estava colocada diante do templo de Apolo em Delfos, na Antiga Grécia: gnothi seauton, conhece‑te a ti mesmo6. Quem somos nós? Que mundo é este onde somos? As respostas a estas questões têm sido procuradas e transmitidas em comunidade. 

Do ponto de vista histórico, não há dúvida de que a religião precedeu a ciência. A ciência moderna, que usa o método experimental baseado na observação, na experiência e na razão matemática, surgiu só nos séculos XVI e XVII. Com certeza que a ciência é filha da curiosidade e que a curiosidade existe desde que o homem existe à superfície do planeta: em formas embrionárias e rudimentares, é bastante mais antiga do que a ciência moderna. É bem conhecida a história infeliz do físico italiano Galileu Galilei, no início do século XVII, uma história que marcou durante muito tempo as relações entre ciência e religião. A ciência aparece hoje, muitas vezes, em oposição à religião muito por causa desse caso.

O que é que aconteceu no tempo de Galileu? A busca de sentido, o decifrar do mistério, dava‑se antes do sábio italiano num território que estava inteiramente unificado e não compartimentado como está hoje. Ciência e religião confundiam‑se em larga medida. O sentido só podia ser um e o mesmo, sendo dado pelas autoridades da Igreja. São Tomás de Aquino tinha feito a “quadratura do círculo” ao cristianizar a filosofia de Aristóteles e as ideias sobre o mundo estavam bem arrumadas. Com Galileu deu‑se uma disputa de território. Ele procurou, usando o método científico que ele próprio desenvolveu, um sentido para o mundo material, que era diverso daquele do que então era corrente. Mas o mundo encontrava‑se descrito nas Sagradas Escrituras. No Antigo Testamento está escrito, numa passagem muito clara, que o Sol anda à volta da Terra. Há um milagre, o milagre de Josué, que consiste na imobilização, por vontade de Deus, do Sol numa batalha travada pelo povo judeu [7]. Quando Galileu veio dizer, corroborando Copérnico, um astrónomo que tinha feito votos religiosos e que de resto dedicou a sua obra maior ao papa Paulo III, [8] que a realidade é precisamente ao contrário, ou seja, que a Terra anda à volta do Sol, enquanto o Sol permanece imóvel, ele estava a afirmar a existência de uma espécie de milagre permanente, ou melhor, que afinal não tinha havido aquele milagre. Quer dizer, o mundo não era como estava nas Escrituras. Mas quem era Galileu para ler as Escrituras melhor do que os altos dignitários de um tribunal eclesiástico? 

Ocorreu então uma rutura. Não significa isto que, anteriormente, não tivessem já ressaltado diferenças entre a Bíblia e as observações empíricas. Por exemplo, já se sabia, na época de Galileu, que a Terra era redonda. No entanto, há passagens bíblicas que apontam para uma Terra plana. No século XVII era bem conhecida a estrutura do cosmos apresentada na Divina Comédia de Dante na qual o Céu ficava por cima e o Inferno no interior da Terra: mas esta era esférica! Portanto, acreditava‑se não só que a Terra era esférica, mas também que o lugar final dos pecadores se situava no centro dessa esfera9. No entanto, a questão de a Terra ser ou não esférica  nunca tinha suscitado qualquer polémica. Em contraste, a tese do movimento relativo do Sol e da Terra constituiu no tempo de Galileu um aceso pomo de discórdia. 

A questão era, afinal, de autoridade: quem é que podia fazer as interpretações correctas, ou verdadeiras, do texto bíblico? A resposta da Igreja era muito clara: Galileu não tinha o direito de dizer as coisas da Bíblia de uma maneira diferente daquela que estava na letra do texto sagrado. Já tinha sido advertido pelo tribunal eclesiástico, num primeiro julgamento em 1621, de que não podia ensinar as ideias de Copérnico. E, em 1633, após ter desrespeitado essa determinação,10 acabou por ser condenado a prisão domiciliária. Galileu negou as suas convicções, uma posição compreensível num humano que teme pela vida. Passados 359  anos ele foi, como se sabe, reabilitado pelo Papa João Paulo II [11]: a respeito do movimento da Terra, a razão assistia a Galileu e a Bíblia não podia ser levada à letra em matérias científicas, até porque não é um livro de ciência. 

Hoje é muito claro para nós aquilo que já era claro nessa época para Galileu. Galileu não só era católico como era também um homem de profunda fé; curiosamente, a fé dele não foi abalada pelas provações a que foi submetido no Tribunal do Santo Ofício. Teve uma fé suficientemente forte para resistir àquela dolorosa experiência, uma vez que ciência e religião estavam muito bem arrumadas na cabeça dele. Galileu dizia que a Bíblia, ou melhor, o Espírito Santo ensina «como é que se vai para o Céu, mas não ensina como é que vai o céu». E essa interpretação de Galileu é também a nossa interpretação hoje: é também a interpretação da Igreja. 

No seu livro Breve História da Alma,[12] o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, que dirige o Conselho Pontifício da   Cultura do Vaticano, escreveu que a principal questão era a de saber quem é que diz o quê sobre o quê. Escreve Ravasi:

«Tinha razão Galileu – que, neste caso, se revelava melhor teólogo do que os seus opositores teólogos –, quando escrevia ao abade beneditino Benedetto Castelli palavras esclarecedoras (que depois haveria de repetir à grã‑duquesa Cristina de Lorena): “A autoridade do Espírito Santo teve em mira persuadir os homens sobre aquelas verdades que, sendo necessárias à sua salvação e superando todo o humano discurso, não podiam por outra ciência nem por outro meio ser conhecidas a não ser por boca do mesmo Espírito Santo”. «

Quer dizer, há certas coisas que se podem estudar, através de determinado método, usando por exemplo um telescópio, e há outras que tem de ser o próprio Espírito Santo a falar no interior de cada um. E, para Galileu, as duas abordagens podiam coexistir perfeitamente, sem azo a quaisquer dúvidas [13]. Para os seus juízes, elas não podiam coexistir. A questão está hoje bem resolvida. Por exemplo, em 2009, nos 400 anos das primeiras observações do céu por Galileu, o Vaticano organizou uma grande exposição sobre Galileu [14]. 

O físico inglês Isaac Newton, o anglicano profundamente teísta que sucedeu a Galileu, não colocava em questão que Deus tivesse criado todo o mundo num momento inicial: todo o mundo era inequivocamente obra de Deus. Mas dizia mais: que Deus, continuando presente na atualidade, poderia intervir, fazendo milagres. E era mesmo necessário que interviesse, não apenas em assuntos humanos, mas também em assuntos astronómicos, como, por exemplo, alterando o movimento das estrelas. Se a força de gravitação universal atrai todas as estrelas umas para as outras, a certa altura elas deveriam chocar umas com as outras. O que é poderia impedir esses choques? Pois apenas uma intervenção divina.  Portanto, os milagres não só eram permitidos, como eram necessários, no entender de Newton. O sábio passou de resto uma boa parte da sua vida a fazer interpretações da Bíblia, que deixou na gaveta (uma atitude prudente, pois muitas dessas posições eram heterodoxas).

Algumas ideias newtonianas originaram uma grande polémica. O físico e filósofo alemão Gottfried Leibniz, um dos opositores de Newton, afirmou que a referida posição newtoniana não fazia sentido. Ele não podia conceber a existência de um Deus que corrige continuamente a sua obra, um Deus que, no início, não criou o mundo de maneira perfeita e que tinha, por isso, de vir arranjar alguma coisa quando era preciso [15]. Para Leibniz, Deus tinha de ter criado um mundo perfeito, só lhe restando descansar eternamente na contemplação da Sua obra. Não tinha de fazer mais nada, pois, na Criação, tinha ficado tudo feito. Ao que Newton respondeu, por interposta pessoa, de uma maneira que coloco em linguagem coloquial: “Mas isso é uma heresia! Então está a dizer que Deus não faz actualmente absolutamente nada? Que Deus não está presente no mundo e é, portanto, inútil?” Esta foi uma das maiores discussões filosóficas do século XVII. Nessa época, a distinção entre ciência e religião, que estava bem organizada na mente de Galileu, não tinha ainda sido interiorizada por muitos dos seus seguidores. Havia, entre os cientistas, usando a retórica da ciência, disputas teológicas sobre o papel de Deus no mundo. A separação que hoje existe entre ciência e religião estava por surgir. 

No século XIX, deflagrou uma outra grande questão, que veio reavivar o debate ciência‑religião: a teoria da evolução de Darwin. De certo modo, o debate anterior tinha sido decidido no sentido indicado por Leibniz: a organização do mundo dispensava a intervenção constante de Deus, os tais milagres de que Newton falava não eram precisos, pois o Demiurgo  tinha criado uma obra perfeita. O astrónomo francês Pierre de Laplace disse a Napoleão quando ele lhe perguntou por Deus: “Sir, não tive necessidade dessa hipótese.” O mundo seria uma máquina perfeita, um relógio mecânico, e, quando muito, precisaria de Deus apenas no papel do relojoeiro construtor do mecanismo. Esta visão em que a ciência prevalecia sobre a religião na descrição e interpretação do mundo, que marcou todo o Século das Luzes, foi bastante abalada com o debate sobre a evolução das espécies, incluindo nestas o ser humano. 

A origem da Origem das Espécies do naturalista inglês Charles Darwin [16], sendo complexa, pode colocar‑se de um modo simples: Depois de ter realizado a sua viagem à volta do mundo a bordo do Beagle, Darwin chegou à conclusão de que todo o variado e exuberante mundo vivo, existente ou já desaparecido, podia ser visto metaforicamente como uma grande árvore: há um tronco comum, uns ramos maiores, outros mais pequenos, não passando a nossa espécie de um pequeno ramo, relativamente recente, dessa árvore. Existiram ramos dessa árvore anteriores aos que vemos atualmente. Darwin, que passou pela ilha Terceira, nos Açores, no seu regresso a Inglaterra, não sabia nada de ADN, nem de genoma, que conhecemos hoje e cujas raízes de devem a um trabalho durante muito tempo ignorado de um frade agostiniano (o checo Gregor Mendel, no mosteiro de Brno), mas percebeu, com uma intuição admirável, que existia uma unidade fundamental no mundo vivo, uma unidade que hoje está bem comprovada pela genética. A teoria da evolução, que hoje, nos seus traços gerais, não oferece dúvidas (existem muitas dúvidas apenas em aspectos particulares), gerou calorosos debates logo que emergiu, por parecer colidir com posições religiosas. Qual seria o papel de Deus na criação do homem se este era descendente de espécies anteriores? Darwin era uma pessoa com uma formação religiosa: estudou Teologia em Cambridge, tendo faltado pouco para ser ordenado pastor! Não tendo ele querido intervir neste debate, que foi muito vivo no seio da Igreja Anglicana, teve pessoas que o fizeram por ele, como o naturalista inglês Thomas Huxley. É conhecida a famosa controvérsia em Oxford entre Huxley, que foi chamado “cão de guarda” de Darwin, e um famoso bispo anglicano, Samuel Wilberforce, na qual, a dada altura, este pergunta: “O senhor acha que descende do macaco? Então, se descende do macaco, acha que é pelo lado do seu avô ou pelo lado da sua avó?” [17] A resposta de Huxley ficou famosa: “Se a questão é descender do macaco ou de uma pessoa que até tem bastantes dotes intelectuais, mas que se serve desse género de argumentos para distorcer, num assomo de autoridade, o que é, ou não, matéria de verdade numa discussão livre, então eu prefiro descender do macaco.” 

A discussão à volta da evolução persiste até aos dias de hoje, de forma muito nítida nalguns segmentos do protestantismo, principalmente em certas regiões mais conservadoras dos Estados Unidos. Mas há nesse país uma posição mais difusa que não se inclina para o naturalismo darwinista: quando se pergunta a um cidadão comum desse país se a teoria da evolução explica a origem do homem, ele responderá negativamente por razões de ordem religiosa. Para o homem comum, o homem é obra de Deus: se houve evolução, tratou‑se de uma evolução sempre com acompanhamento divino. O embate entre ciência e religião a propósito da evolução evoluiu, mas não muito: ainda hoje suscita dúvidas em muitas mentes. 

Apesar disso, o século XIX parece‑nos hoje distante. Foi nesse século que surgiram o positivismo e o cientismo, que foram por muita gente vistos, com alguma ingenuidade, como o triunfo da ciência sobre a religião. De facto, hoje ninguém leva a sério nem o positivismo nem o cientismo. A ciência triunfou, de facto, mas a religião continua a ter um papel assaz relevante no mundo. Apesar do crescimento da secularização nas sociedades ocidentais, é enorme a influência  das Igrejas no mundo de hoje. A maior parte da população mundial é religiosa: embora exista uma pluralidade de religiões, o fenómeno religioso é verdadeiramente universal 

Tendo falado de tensões históricas entre ciência e religião, devo acrescentar, para que fique claro, que as duas podem não só coexistir como até entender‑se. Os casos de Galileu, de Newton e de tantos outros (incluindo físicos do século XX como os alemães Max Planck e Werner Heisenberg  [18]) mostram que é possível uma coexistência pacífica entre as duas dimensões humanas. Devia ser pacífica. Tem de ser pacífica, num mundo onde a nossa vida é largamente dominada pela ciência e onde a nossa acção é fortemente dominada pela crença.

 É São Paulo que fala do “escândalo” da fé [19]. A fé, de algum modo, é um escândalo, no sentido em que alguns a têm e outros a não têm. São Paulo não a tinha e passou a tê‑la. Santo Agostinho não a tinha e passou a tê‑la. Claro que a existência de fé tem muito que ver com o ambiente e com a educação, mas conhecemos muitos contraexemplos: gente que ganhou fé em ambiente hostil a ela ou que a perdeu em ambiente favorável. O Padre Halík converteu‑se em jovem num ambiente marcado pelo ateísmo comunista. A ciência pode ser feita por crentes, como o Padre Lemaître, ou por não crentes, alguns declaradamente ateus, como o biólogo inglês Richard Dawkins. O conjunto de objectivos que a ciência persegue e o conjunto de metodologias que usa são hoje completamente independentes da religião. Podemos, como fez o biólogo norte‑americano Stephen Jay Gould, falar de “dois magistérios que não se sobrepõem”.[20] 

Há hoje bastantes cientistas agnósticos e ateus, mas também há, na população em geral, pessoas com dúvidas sobre Deus ou que negam a sua existência. Alguns ateus exprimem o seu ateísmo de forma exagerada, como por exemplo Dawkins [ 21]. Ele ajudou a promover um anúncio do Movimento Ateísta nos autocarros no Reino Unido que apregoava: “Provavelmente Deus não existe. Deixa de te preocupar e vive a tua vida!” [22] Esse movimento contra a religião já foi chamado “cruzada”, um nome curioso… Para Dawkins a religião não só é inútil, m[as] também é prejudicial. O discurso dele parece‑me demasiado radical, embora ache interessante ler os seus escritos.

 A Graça não será inata, mas é inerente ao indivíduo que a possui, no sentido de que este responde a uma voz interior que o apela. Na estrada de Damasco, Saulo passou a Paulo ao ouvir o chamamento de Deus: “Saulo, Saulo, porque me persegues?”[23] A fé não é definitiva: há pessoas que a perderam, como é o caso de Darwin. A fé do autor da teoria da evolução foi‑se erodindo de uma forma lenta e gradual, não querendo ele causar escândalo com essa sua transição interior. Apenas exprimiu as suas dúvidas numas notas autobiográficas que escondeu numa gaveta e que só foram publicadas postumamente [24]. A sua mulher, que era bastante religiosa, terá sentido a certa altura que o marido já não era o mesmo. Quando se apercebeu das dúvidas do marido, ficou perplexa. Ela tinha jurado ficar com ele até que a morte os separasse, mas queria decerto permanecer unida a ele também após a morte. 

O que é acreditar ou não acreditar? Uma pessoa acredita sempre em qualquer coisa. Há a crença em Deus e há, com certeza, outros tipos de crença, que podem mesmo recorrer à palavra “fé”. É evidente que toda a gente acredita nalguma  Ciência e Religião coisa. Pode‑se não acreditar no transcendente divino, mas toda a gente tem crenças mais ou menos arreigadas, acredita nalguma coisa. Um cientista acredita, por exemplo, no primado da realidade: ao estudar um certo aspecto, necessariamente limitado, começa por acreditar numa hipótese, mas essa crença inicial pode, quando confrontada com a realidade, revelar‑se injustificada após a aplicação do método científico, a combinação de observação, experiência e razão matemática. Por seu lado, uma pessoa religiosa, que até pode ser cientista, poderá aduzir alguma razão ou razões para a sua fé, pois esta não é completamente irracional.

Sobre a crença e a descrença, o padre Halík diz em O Tempo das Igrejas Vazias [25] que a distinção não é fácil, “pois a ‘fé’ e a ‘dúvida’ estão entrelaçadas de uma maneira complexa nas atitudes e nas mentes de muitas pessoas de hoje.” Tendo a concordar: quem é crente, terá sempre alguma descrença, e quem é descrente, terá sempre alguma crença. Segundo ele, “entre a fé e o cepticismo pode haver uma valiosa ‘permuta de dons’ ”. E, mais adiante, no mesmo livro, sustenta que há um fundo de espiritualidade na população do seu país: “A sociedade checa é fortemente ‘desigreijada,’ mas não é ateísta. O maior número de pessoas que não pertencem à Igreja são os “apateístas” (pessoas indiferentes à religião como a imaginam ou como a conheceram) e ainda os ‘buscadores espirituais’, os que creem ‘à sua maneira’ ” [26].

 O livro Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo [27] contém um diálogo muito interessante entre um filósofo italiano ateu, o italiano Paolo Flores d`Arcais, e um eminente teólogo católico, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, antes de se tornar Papa sob o nome de Bento XVI, no qual, a certa altura, o moderador pergunta a d’Arcais: “Então, você  não acredita em nada?” E o filósofo responde: “Quanto à pergunta que me fez – ‘será possível viver sem fé?’ – falta apenas pormo‑nos de acordo sobre a palavra fé. Se, por fé, se entender qualquer paixão existencial profunda por alguns valores, que justamente façam da existência própria algo de sensato, e da nossa relação com os outros algo de significativo, não, não se pode viver sem fé; mas esta seria, na realidade, uma definição de fé incrivelmente genérica.” Com certeza que os seres humanos partilham valores humanos. Toda a gente partilha valores, embora não necessariamente coincidentes, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, etc. Para mim, essa destrinça não é exclusiva de nenhuma religião. Julgo que apartar a ética da religião é um passo no bom sentido. A religião pode dar contributos para a ética, mas não pode ser a única fonte dela. 

Albert Einstein disse isso mesmo de uma forma muito clara: “Não há nada de divino na moralidade; é uma questão puramente humana” [28]. Ele considerava‑se uma pessoa religiosa, mas não no sentido de acreditar num Deus pessoal, no Deus do Antigo Testamento, o Deus dos judeus e dos cristãos, o Deus que se revela aos homens e que fala com os homens, o Deus cujo filho morreu na cruz [29]. Para Einstein, o “Deus pessoal” não fazia sentido, mas já fazia sentido considerar transcendente a harmonia do mundo, expressa nas leis fundamentais da Física. É, convenhamos, uma visão um pouco panteísta, na linha de Bento Espinosa, o judeu herético holandês de origem portuguesa. Einstein tinha uma tal ligação interior a essa harmonia do mundo, que a considerava algo de religioso. Era o “Mistério”, com maiúsculas. E Einstein não se importava de descrever a reverência que sentia perante esse Mistério como uma forma de religião.  Forçoso é reconhecer que essa ligação ao transcendente pode não ser acessível a toda a gente. É como se Einstein fosse crente de uma Igreja com um só membro que era apenas ele próprio e isso não é, de facto, uma religião. Um Deus pessoal é bem mais acessível à maioria das pessoas. Para quem não conseguisse aceder a esta ligação profunda entre o cérebro e a harmonia do mundo físico, Einstein considerava útil a ligação a alguma das religiões, digamos “convencionais”, do leque das várias religiões professadas e ensinadas. O sábio nasceu, na Alemanha, de uma família judaica, mas aprendeu também o catecismo católico. Contudo, na adolescência, largou as formas convencionais de religião: nunca entrou, por exemplo, numa sinagoga para rezar. Ele reconhecia que a religião, no sentido comum do termo, era algo de natural no ser humano, algo útil na organização social, mas não sentia necessidade dela. 

Julgo que Einstein teria estado de acordo com Paolo Flores d’Arcais quando ele afirmou no seu diálogo com Ratzinger: “Se, por fé, se entender uma crença religiosa, respondo tranquilamente que sim, é possível viver sem fé; a fé não é necessária para dar sentido à própria existência. Pode‑se conferir sentido à existência de muitas formas.”[30] 

É interessante a resposta de Ratzinger: “Creio que pode haver convicções fundamentais sobre os valores que dão sentido à vida e que tornam possível uma convivência digna neste mundo. E aqui podemos militar juntos. Eu diria: lutar contra a intolerância, contra todo o tipo de fanatismo, que sempre retornam. E também o compromisso a favor da dignidade do homem, em prol da liberdade, da generosidade para com os pobres, para com os necessitados.” [31] 

Num mundo em que ciência e religião estão separadas, por que razão o diálogo entre as duas é não apenas útil, mas também necessário? Estou em crer que cientistas e teólogos– ambos seres humanos, que vivem em sociedade – ganham em saírem das respetivas esferas e de se interrogarem sobre aquilo que, da sua própria experiência, pode e deve ser partilhado pelos outros. Não é difícil encontrar valores comuns: tolerância, liberdade, dignidade, generosidade. 

As contribuições da ciência a respeito do mundo natural são muito úteis, por vezes mesmo indispensáveis, como vemos com a pandemia que nos aflige. Se estamos a falar de problemas de base científica – por exemplo, hoje colocam‑se as questões da manipulação genética, da inteligência artificial, das alterações climáticas, etc. –, a ciência faz afirmações relevantes, diz como se faz ou como se pode fazer. Não compete aos cientistas, ou pelo menos não compete só a eles (sendo cientistas, são também cidadãos), dizer o que se deve fazer com as possibilidades que a ciência oferece. “Saber é poder” – disse o jurista e filósofo inglês Francis Bacon, {32] contemporâneo de Galileu –, mas julgo que seria perigoso entregar o governo aos cientistas. A ciência fornece aos humanos conhecimentos, mas não fornece os valores humanos. Quando entramos na questão dos valores, da ética, com certeza que a religião tem contribuições a dar. Os teólogos, as pessoas que estudam religião e que tentam interpretá‑la, têm coisas a dizer sobre a Humanidade que vão além do domínio estrito da sua religião. E a questão das orientações a dar à nossa vida conjunta é algo que nos deve envolver a todos. Se ciência e religião são características do ser humano, que podem surgir na mesma pessoa (já referi o Padre Georges Lemaître, um dos autores da teoria do Big Bang, mas posso acrescentar o jesuíta italiano Guy Consolgmano, director do Observatório Astronómico do Vaticano, [33] entre  outros), a conjugação das duas pode ser por vezes necessária, designadamente quando é o futuro do ser humano que está em causa. E dou um exemplo actual: a sobrevivência da espécie humana num planeta ameaçado pelas alterações climáticas. Constituímos a maior ameaça para a Terra, que é como quem diz para nós próprios. Hoje, quando estamos a discutir essa ameaça, as contribuições da Igreja Católica, transmitidas, entre outros sítios, pela encíclica Laudato Sì, [34] do Papa Francisco, revelam‑se preciosas. Escreveu o Papa nesse documento: “Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós”. A Terra, vista ao longe, é um “ponto azul‑claro” – mas é nesse ponto onde se criaram extraordinárias teorias científicas, portentosas filosofias, espantosas obras de arte e onde também se travaram horríveis guerras mundiais. Vista ao longe, nada disso se vê! Somos todos habitantes deste minúsculo ponto. De um ponto de vista cósmico, o nosso planeta não passa de um pontinho. Podemos comparar a Terra no espaço com as ilhas açorianas, muito pequenas no vasto mar atlântico, embora se trate de uma metáfora com as suas limitações… 

Qual é o futuro da Terra? Todos os habitantes da Terra têm responsabilidade nesse futuro. Somos, tanto quanto sabemos, a única parte do mundo que percebe o vasto mundo no qual se situa a Terra. Não sabemos se há vida inteligente noutros lados, nem sequer sabemos se há vida tout court noutros lados. Mas nós, embora por vezes não pareça, somos inteligentes. A nossa espécie chama‑se Homo sapiens. Percebemos muitas coisas: percebemos, por exemplo, qual é a relação entre o Sol e a Terra e, nos seus traços gerais, como ocorreu a origem das espécies. Queremos perceber mais. E queremos viver melhor, o que significa desde logo viver em paz e fraternidade. Não  só para a nossa sobrevivência colectiva, mas para uma vida decente em conjunto, ciência e religião têm de falar uma com a outra. 

 Carl Sagan foi o astrofísico norte‑americano que cunhou a expressão “o ponto azul‑claro” [35] para designar a Terra vista ao longe. Ele gostava de ouvir os outros e de falar com os outros. Por isso, mesmo sendo agnóstico, procurou líderes religiosos para falar sobre o futuro da Terra, na altura ameaçada por um holocausto nuclear, por se viver em plena guerra fria. Ele dizia que todos somos precisos, no que toca ao futuro da espécie e do planeta. Hoje estamos perante uma crise global, a da pandemia, mas há outra maior, a das alterações climáticas, à qual temos de responder em conjunto. A nossa compreensão e a nossa acção poder‑nos‑ão valer uma vida futura com qualidade se soubermos reagir solidariamente, se formos movidos por valores comuns. 

O bem e o amor são, decerto, valores comuns, que nos podem unir. A relação com o próximo é uma relação que tem de ser construída dia a dia com base nesses valores. Sagan disse: “Se um ser humano discorda de vós, deixem‑no viver. Nos cem mil milhões de galáxias, não encontrarão outro”.36 E eu poderia acrescentar, parafraseando‑o, com uma inspiração obviamente cristã: “Ama o teu próximo. Num raio de muitos anos‑luz não encontrarás outro.” [36]

 Referências:

1 Tomáš Halík, A Noite do Confessor. Lisboa 2014, p. 109 e ss. 

2 Idem, p. 127.

3 Pio XII, «The Proofs for the Existence of God in the Light of Modern Natural Science» (1951): https://inters.org/pius‑xii‑speech- 1952- proofs‑god 

4 P.-de Felipe – P. Bourdon – E. P. & Riaza, (2015). «Georges Lemaître’s 1936 Lecture on Science and Faith», in Science & Christian Belief 27 (2015) 154-179. Ver meu artigo “O eclipse, Einstein e Deus” no portal Ponto SJ , https://pontosj.pt/opiniao/o- ‑eclipse‑einstein‑e‑deus/.

5 Tomáš Halík, ibidem, p. 112.

 6. Erwin Schroedinger, A Natureza e os Gregos e Ciência e Humanismo.Lisboa 1999, p. 99. Cf. Carlos Fiolhais, «Ciência e humanismo: avisão da ciência de Erwin Schrödinger”», in Biblos, Nova série, (2015) 127-151 (http://hdl.handle.net/10316/40714).

 7 Jos. 10,12. 

8 Nicolau Copérnico, Da Revolução dos Orbes Celestes, Lisboa 20143. 

9 Steven Weinberg, «Without God», New York Review of Books, 25/09/2008, https://www.nybooks.com/articles/2008/09/25/withoutgod/. 50

10 Galileu Galilei, Diálogo dos Grandes Sistemas (Primeira Jornada), Lisboa 1979. 

11 https://apnews.com/article/0f3faa3ef29f5784d137a0d8c399e29e . 

12 Gianfranco Ravasi, Breve História da Alma, Lisboa 2011, p. 228.

 13 Galileu Galilei, Ciência e Fé, 2.ª ed., Rio de Janeiro 2009.

14 Ileana Chinnici (ed.), Astrum 2008, Vaticano 2009.

15 Alexandre Koyré, Do mundo fechado ao Universo infinito, Lisboa 2001, Cap. XI: «O deus da Semana e o Deus do Sabá»

16 Charles Darwin, A Origem das Espécies. Lisboa 2011.

17 https://en.wikipedia.org/wiki/1860_Oxford_evolution_debate 

18 Carlos Fiolhais, «A Ciência e o Divino», in Anselmo Borges (coord.), Deus ainda tem futuro?, Lisboa 2014, 53-70. http://hdl.handle.net/10316/41138.

19 1 Cor. 1, 23. 

20 Stephen Jay Gould, Rocks of Ages: Science and Religion in the Fullness of Life, New York 2002.

21 Richard Dawkins, A Desilusão de Deus, Lisboa 2018.


22 https://en.wikipedia.org/wiki/Atheist_Bus_Campaign


23 Act. 9, 4.


24 Charles Darwin, Autobiografia, Lisboa 2004.

 25 Tomáš Halík, O Tempo das Igrejas Vazias, Lisboa 2021, p. 18. 

26 Idem, p. 19.  

27 Joseph Ratzinger – P. Flores d’Arcais, Existe Deus? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo, Lisboa 2009, p. 22.

28 Albert Einstein, Citações de Albert Einstein. A Coletânea Definitiva, Lisboa 2018, p. 338.


29 Max Jammer, Einstein e a Religião. Rio de Janeiro 2000. Cf. Carlos Fiolhais, «Einstein e a Religião», in Estudos, Nova série, 4 (2005) 323-329. 

30 Joseph Ratzinger – P. Flores d’Arcais, ibidem.

31 Idem, p. 24

32 Carlos Fiolhais, «Saber e poder ou a modernidade de Sir Francis Bacon», Actas dos 2.ºs Cursos Internacionais de Verão de Cascais (1996). Cascais 1997, vol. 2, 155-172, http://hdl.handle. net/10316/40922. 

 33 Guy Consolmagno, A Mecânica de Deus, Mem Martins 2009.  

34 Papa Francisco, Laudato Sì, Lisboa 2015.

35 Carl Sagan, O Ponto Azul‑claro, Lisboa 2011.

36 Carl Sagan, Cosmos, Lisboa 2001, p. 339. Cf. Carlos Fiolhais, «Em busca de sentido: Ciência e Religião», in Secretariado Diocesano de Evangelização e Catequese de Coimbra, Em busca de um sentido: ateísmo e crença na construção da pessoa que ama, Coimbra 2011, http://hdl.handle.net/10316/40693. 

segunda-feira, 15 de maio de 2023

GUERRA E PAZ NOS 14 ANOS DO ARTES

Minha contribuição para o número de aniversário da revista "As Artes entre as Letras", que está a fazer 14 anos:

A Nassalete Miranda – essa grande maestra do As Artes entre as Letras - pede-me, nos 14 anos da revista, um texto sobre a paz. Esse tema tornou-se ainda mais actual após a invasão da Ucrânia pela Rússia no ano passado. Se, na maior parte dos anos do tempo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, vivemos numa «guerra fria», o termo usado para designar uma paz imposta pelo equilíbrio de armas nucleares das duas maiores superpotências mundiais, os Estados Unidos e a União Soviética, o conflito na Ucrânia é uma «guerra quente» entre a Rússia e seus aliados, e não apenas a Ucrânia, mas o mundo ocidental, que inclui os Estados Unidos e a União Europeia. Embora seja inimaginável o uso dessas armas pelas consequências catastróficas que podem ter à escala global, voltámos infelizmente a ouvir falar delas.

O chamado «Relógio do Juízo Final» ou «Relógio do Apocalipse» é um relógio simbólico criado em 1947, dois anos depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki pelo Boletim dos Cientistas Atómicos, que começou a ser editado em Chicago. Esse relógio foi, no início, colocado a sete minutos para meia-noite. Em 2009, quando o Artes começou a ser publicado, estava em cinco minutos para a meia-noite (o mais longe que esteve da meia-noite foi em 1991 e anos seguintes, após a dissolução da União Soviética e os tratados de redução dos armamentos). No presente ano, precisamente por causa da eclosão da guerra da Ucrânia, foi colocado a apenas um minuto e meio da meia-noite. A avaliar pelas preocupações dos cientistas atómicos, nunca estivemos tão perto de uma grande catástrofe.

É bem conhecido o papel que as mulheres e os homens e de cultura têm tido na defesa da paz e, no quadro geral da cultura, o papel das mulheres e homens de ciência. A UNESCO.  Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, é a agência das Nações Unidas, fundada em Paris em 1945, com o objectivo de construir a paz e a segurança no mundo através da educação e das ciências (Portugal só entrou em 1965 para sair em 1971, reentrando em 1974). Nos anos do pós-guerra foram muito nítidos os esforços dos cientistas, infelizmente baldados, no quadro da UNESCO e fora dele, para convencer os governantes que deviam evitar a corrida ao armamento. 

O norte-americano Robert Oppenheimer, director científico do projecto Manhattan que concretizou a construção das bombas que caíram sobre o Japão, afirmou após essas explosões: «Nós, os físicos, conhecemos o pecado». O suíço e norte-americano Albert Einstein, Prémio Nobel da Física de 1921, que de certo modo tinha, na sua própria expressão, «carregado no botão» ao escrever uma carta ao presidente Franklim Roosevelt na qual chamava a atenção para a possibilidade de libertar a tremenda energia do núcleo atómico, fez tudo o que podia em prol da paz. 

É conhecido que escreveu o livro, de 1933 mas hoje ainda em circulação, Porquê a Guerra?, em colaboração com o médico austríaco Sigmund Freud, e que o último documento que assinou antes de morrer, em 1955, foi uma exortação pacifista, o chamado «Manifesto Russell-Einstein» (o primeiro nome é o de Bertrand Russell, a grande filósofo e matemático britânico, distinguido com Nobel da Literatura de 1950), que reuniu as assinaturas, entre outros, dos laureados com o Nobel da Física Max Born (alemão, fugido da Alemanha antes da Segunda Guerra Mundial), Frédéric Joliot-Curie (francês, genro de Madame Curie, que tinha combatido na Resistência Francesa), e Hideki Yukawa (japonês, que permaneceu no seu país durante a guerra)m e do laureado com os Prémios Nobel da Química e da Paz Linus Pauling (norte-americano, único a obter essa dupla distinção).

A corrida às armas de destruição maciça foi uma loucura. Um livro das Publicações Europa-América, saído entre nós em 1955, escassos dias depois do referido Manifesto, intitula-se precisamente A Loucura dos Homens, do francês Jules Moch, delegado da França na Comissão de Desarmamento das Nações Unidas. Foi prefaciado por Einstein, um dos seus últimos escritos, onde ele afirma: «Aquele que não creia na possibilidade de se conseguir uma paz duradoura e firme, ou não tenha a coragem de proceder em conformidade com essa esperança - esse está maduro para a ruína.»

A nossa única hipótese de evitar a ruída moral e material é, de facto, acreditar nessa possibilidade e de ter essa coragem. 

Muitos parabéns ao Artes, que se fosse um ser humano estava agora em plena adolescência, não só pelo seu aniversário, mas também por acreditar na paz e proceder activamente em favor dela, usando esse meio extraordinário que é a cultura nas suas múltiplas dimensões. Entre elas, a ciência, claro.

Cristina Luís - Ciência Cidadã

REIVINDICAR TÍTULOS. EM CLAVE DE SINDICATO RESPOSTA A UM PERSEGUIDOR DE ESTIMAÇÃO

Aos títulos, agarra-se só quem 
mais não possui a que se agarrar:
cada um contente-se com o que tem,
mesmo que isso não dê para brilhar.

Romancista, académico ou bispo,
qualquer um pode a isso chegar.
Com muitos amigos, a arcebispo,
também se chega, sem muito suar.

Professor impróprio para ensino,
sem conhecimentos nem vocação,
do orçamento, pífio concubino,

há, por aí, em grande profusão:
desprezados e muito ofendidos,
reivindicam títulos, com grasnidos!

Eugénio Lisboa

OPINAR EM EDUCAÇÃO

Recupero palavras de Eduardo Marçal Grilo, ex-Ministro da Educação, constantes na entrevista que deu ao Jornal de Letras, n.º 1370 (ano XLIII) de 5 a 18 de abril deste ano. A entrevista saiu com o título "O que está em jogo na Escola". Os destaques são meus.
"Politicamente [a educação] tornou-se um tema dominante na opinião pública, com cada um a emitir opiniões, umas muito refletidas, racionalizadas e construtivas, mas outras despidas de qualquer relevância por terem como único objetivo aumentar a confusão, a entropia e a desordem que, para alguns, é objetivo central que pretendem instalar, não apenas nas escolas, mas também em tudo o que possam ser serviços prestados pelo Estado, ou seja, serviços de saúde, transportes, segurança social, polícias, tribunais e forças armadas. 
Não tenhamos dúvida alguma. Estes movimentos semi-inorgânicos, que estão hoje espalhados por toda a Europa e que recentemente chegaram a Portugal, não têm quaisquer outros objetivos que não seja desmantelar e destruir o que existe, sem que, em alternativa, apresentem qualquer proposta exequível a não ser o caminho para o caos onde, então, poderão ditar as suas leis e impor os modelos".

domingo, 14 de maio de 2023

ELOGIO DA CLARIDADE

Um mundo de claridade e rigor,
onde cada palavra é pesada
e onde se rejeita, com vigor,
a obscuridade tão venerada!

Com claridade, rompemos a névoa,
a claridade apunhala o obscuro.
A claridade exibe a coroa
de um reino que afasta o impuro.

A claridade ilumina os recantos,
onde se anicha o falso pensamento
e dá a todos os nossos espantos

a luz tão necessária ao seu alento.
A claridade agarra o rei das trevas
e arranca-o às tontices medievas!

Eugénio Lisboa 
_____________________
Explicação: Para atazanar os obscuros, os obscurantistas e os que gostam de se esconder no escuro… Tudo gente geralmente muito apreciada no meio literário, muito louvada, premiada, condecorada e utilizada nos manuais e, ocasionalmente, aclamada nas universidades, onde se tornam matéria-prima privilegiada de mestrados, doutoramentos e até canonizações laicas. No obscuro, dizem, anicham-se grandes riquezas – a serem realmente descobertas, como devem, dentro de duas ou três gerações ou até num futuro galacticamente distante. Gente muito bebida em Bandarra e seus discípulos da Filosofia Sibilina. Gente que cultiva uma literatura que não é feita para ser lida, mas, sim, decifrada e, uma ou outra vez, arremessada.

"O TRABALHO DE HISTORIADORES E FILÓSOFOS (...) É APONTAR OS PERIGOS"

Com a reprodução de um quadro de Jan Saenredam que retrata a “Alegoria da Caverna de Platão” (1604), o Expresso desta semana republicou, na tradução de Joana Henriques, um artigo de Yuval Noah Harari, antes saído no The Economistsobre a (eventual) reconfiguração do ser humano (e da humanidade) em virtude do assombroso desenvolvimento dos mecanismos de Inteligência Artificial.

Independentemente de concordarmos com as interpretações e posições teóricas do historiador, a verdade é que se trata de alguém bem informado na sua disciplina e noutras que lhe são conexas, como a filosofia, a antropologia. Isso deve levar-nos a ler com cuidado o que escreve sobre o assunto. 

Tomo, por isso, a liberdade de transcrever algumas passagens desse artigo.
"O receio em relação à inteligência artificial (IA) tem assombrado a Humanidade desde o início da era dos computadores (...) mas ao longo dos últimos dois anos surgiram novas ferramentas que ameaçam a sobrevivência da civilização humana vindas de onde menos se esperava. A IA ganhou algumas habilidades notáveis para manipular e gerar linguagem, seja com palavras, sons ou imagens. A IA pirateou o sistema operacional da nossa civilização. 
A língua é o material sobre o qual quase toda a cultura humana se baseia (...). O que poderá acontecer quando uma inteligência não humana se torna melhor do que o ser humano médio a contar histórias, compor melodias, desenhar imagens e escrever leis? 
Quando pensamos sobre (...) novas ferramentas de IA, pensamos em exemplos como o dos alunos que usam a IA para escrever os seus trabalhos da escola (...). Mas esse tipo de pergunta não abrange o panorama geral (...). Pensem nas próximas eleições presidenciais americanas, em 2024, e tentem imaginar o impacto das ferramentas de IA, que podem ser criadas para produzir conteúdo político em massa, histórias de notícias falsas e escrituras para novos cultos. 
(...) O culto QAnon une-se em torno de mensagens online anónimas, conhecidas como “q drops”. Os seguidores recolhem, veneram e interpretam estes “q drops” como se fossem um texto sagrado. Até agora, tanto quanto sabemos, todos os “q drops” eram criados por humanos e os bots simplesmente ajudaram a disseminá-los, no futuro podemos assistir aos primeiros cultos da história cujos textos sagrados foram escritos por uma inteligência não humana.
As religiões ao longo da história reivindicaram uma fonte não humana para os seus livros sagrados. Em breve isso pode ser uma realidade. 
Num nível mais prosaico, em pouco tempo podemos estar a manter longas discussões online sobre o aborto, alterações climáticas ou a invasão russa da Ucrânia com entidades que pensamos serem humanos, mas são, na realidade, IA. O problema é que é absolutamente inútil gastarmos o nosso tempo a tentar mudar as opiniões declaradas de um bot uma vez que a IA poderá aprimorar as suas mensagens de forma tão precisa que existe a possibilidade de nos influenciar (...).
Embora não haja nenhuma indicação de que a IA tenha qualquer tipo de consciência ou sentimentos, o promover uma intimidade falsa com os seres humanos é suficiente, se fizer com que se sintam emocionalmente ligados a si (...). Numa batalha política para conquistar mentes e corações, a intimidade é a arma mais eficiente e a IA acaba de ganhar a capacidade de criar, em massa, relações íntimas com milhões de pessoas. 
Todos sabemos que ao longo da última década as redes sociais se tornaram um campo de batalha para controlar a atenção humana. Com a nova geração de IA, a frente de batalha está a passar da atenção para a intimidade. 
O que acontecerá com a sociedade e psicologia humanas à medida que as diferentes IA lutam entre si para conseguir formar falsas relações íntimas connosco, que podem depois ser usadas para nos levar a votar em políticos específicos ou comprar produtos específicos? 
Mesmo sem criar uma “intimidade falsa”, as novas ferramentas de AI teriam uma imensa influência nas nossas opiniões e visões de mundo. As pessoas podem passar a consultar apenas uma IA como um oráculo único e omnisciente. Não admira que a Google esteja apavorada. Para que é que me vou dar ao trabalho de pesquisar, se posso simplesmente perguntar ao oráculo? As empresas de comunicação social e publicidade também devem estar aterrorizadas. Para quê ler um jornal se posso apenas pedir ao oráculo para me contar as últimas notícias? E para que servem os anúncios, se posso simplesmente pedir ao oráculo para me dizer o que comprar? E mesmo estes cenários imaginários não captam verdadeiramente o panorama geral. 
Aquilo de que estamos a falar é, potencialmente, do fim da história da humanidade (...) o fim da sua parte dominada pelo homem. A história é a interação entre biologia e cultura; entre as nossas necessidades biológicas, e desejos por coisas como comida e sexo, e as nossas criações culturais, como religiões e leis (...).
O que acontecerá com o rumo da história quando a IA tomar conta da cultura e começar a produzir histórias, melodias, leis e religiões? Ferramentas anteriores, como a imprensa gráfica e a rádio, ajudaram a espalhar as ideias culturais dos seres humanos, mas nunca criaram novas ideias culturais próprias. A IA é fundamentalmente diferente, pode criar ideias completamente novas, uma cultura completamente nova. 
No início, a IA provavelmente imitará os protótipos humanos em que foi treinada na sua infância. Mas a cada ano que passa (...) vai corajosamente até onde nenhum ser humano já foi. Há milénios que os seres humanos vivem dentro dos sonhos de outros seres humanos. Nas próximas décadas podemos dar por nós a viver dentro dos sonhos de uma inteligência alienígena. 
O medo da IA assombra a humanidade há apenas algumas décadas, mas durante milhares de anos os seres humanos foram assombrados por um medo muito mais profundo (...) desde os tempos antigos, os humanos temeram estar presos num mundo de ilusões (...). Na Grécia antiga, Platão contou a famosa alegoria da Caverna, na qual um grupo de pessoas estão acorrentadas dentro de uma caverna durante toda a sua vida, de frente para uma parede em branco. Um ecrã. Nesse ecrã veem várias sombras projetadas. Os prisioneiros confundem as ilusões que ali veem com a realidade (...). 
Se não tivermos cuidado, podemos ficar presos atrás de uma cortina de ilusões, que não conseguimos rasgar nem mesmo perceber que ali está. Claro que o novo poder da IA também poderia ser usado para o bem. 
Não vou refletir sobre isso, porque as pessoas que desenvolvem a IA já o fizeram que chegue. O trabalho de historiadores e filósofos como eu é apontar os perigos. 
Certamente que a IA pode ajudar-nos de inúmeras maneiras, desde encontrar novas curas para o cancro até descobrir soluções para a crise ecológica. A pergunta que enfrentamos é como garantir que as novas ferramentas de IA são usadas para o bem e não para o mal. 
Para tal, primeiro precisamos compreender as verdadeiras capacidades dessas ferramentas.
Desde 1945 que sabemos que a tecnologia nuclear poderia gerar energia barata para o benefício dos seres humanos, mas também poderia destruir fisicamente a civilização humana. Por conseguinte, reformulámos toda a ordem internacional para proteger a humanidade e para garantir que a tecnologia nuclear fosse utilizada principalmente para o bem (...). 
Ainda vamos a tempo de regular as novas ferramentas de IA, mas temos de agir rapidamente. Enquanto as bombas atómicas não conseguem inventar bombas atómicas mais poderosas, a IA consegue criar uma IA exponencialmente mais poderosa. O primeiro passo essencial é exigir verificações de segurança rigorosas antes das poderosas ferramentas de IA serem lançadas para o domínio público (...). Precisamos de um equivalente da Food and Drug Administration para novas tecnologias e precisamos dele para ontem (...). 
A implementação de IA não regulamentada criaria o caos social, que beneficiaria os autocratas e arruinaria as democracias. A democracia é um diálogo e os diálogos dependem da linguagem. Quando a IA modifica a linguagem, pode destruir a nossa capacidade de ter diálogos importantes, destruindo assim a democracia. 
Acabámos de encontrar uma inteligência alienígena, aqui na Terra (...). Devíamos pôr um travão à [sua] implementação irresponsável (...) antes que seja ela a regulamentar-nos a nós. E o primeiro regulamento que gostaria de sugerir é que seja obrigatório uma IA dizer que é uma IA. Se estou a conversar com alguém e não consigo perceber se é um ser humano ou uma IA, esse é o fim da democracia."

50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL: UM DEPOIMENTO PESSOAL

 Meu artigo no último As Artes entre as Letras (no foto minha no Verão de 1975 quando participei no Youth Science Fortnight em Londres; esto...