domingo, 28 de maio de 2023

COMO AS MÁQUINAS "INTELIGENTES" REDOBRAM A URGÊNCIA DA EDUCAÇÃO

Texto pedido a Carlos Fernandes Maia
Professor de Filosofia e Ética

1. As máquinas 'inteligentes' recentemente apresentadas ao mundo, na sua promissora/assustadora capacidade “generativa”, só têm abertura e alcance em função dos parâmetros que os seus fabricantes determinam: são eles que determinam aquilo que elas podem "determinar"… E, até ao momento, o que eles conseguem determinar é o seu funcionamento instrumental. 

2. De entre essas máquinas, há umas que são elogiadas e recomendadas para uso escolar ao mesmo tempo que são temidas e proibidas nesse mesmo contexto. Há a dizer delas que uma coisa é o seu sistema que faz remissões sobre obras e teorias, que armazena o inimaginável, que compõe e recompõe, que escreve textos e cria imagens, que “dialoga” com humanos, etc. – admirável, sem dúvida, à luz do engenho tecnológico –; mas, outra coisa é pensar. 

3. Quando o psicólogo Jean Piaget definiu a filosofia como uma “tomada de posição raciocinada em relação à totalidade do real”, incluiu o compromisso da “tomada de posição” em saber, em aspiração, em vontade. Incluiu o raciocínio – que pode ser aberto, e daí surge o incriado – e a possibilidade, dado que o real inclui o existente mas também o possível. 

4. Os sistemas ditos de 'inteligência artificial' usam uma linguagem que, desavisadamente, parece humana, mas não o é porque ela não permite o querer, o aspirar, o ter vontade de encontrar a verdade, como o incentivo a modos humanos melhores ou, até, como construção utópica. 

5. A linguagem em que esses sistemas foram programados recorre a palavras que o ser humano inventou e alinha-as segundo regras da racionalidade técnica. A fé, a esperança, o medo, a coragem, a cobardia, a traição, a solidariedade, a fruição, a honra, a indiferença, o ódio, o asco à indignidade, a paixão e muitas outras particularidades humanas manifestam-se de forma muito diversa e, não raras vezes, subtil. 

6. Esta manifestação pode acontecer por meio de palavras mas pode, igualmente, dispensá-las, e podem as palavras ter um sentido contrário à intenção ou serem consonantes com ela. Não deixa, contudo, de parte a dignificação ou a depravação da pessoa e da espécie.

7. Não consigo imaginar uma máquina 'inteligente' a criar um novo movimento artístico, fruto da rebelião contra o instituído, nem a “dar a vida”, com dor extrema e saudade infinita, por alguém querido, ou por um ideal.

8. Que a máquina esteja preparada para destruir ou construir, e, até, para se destruir ou conservar isso não depende da sua decisão, mas da decisão do seu programador. E mesmo que este tudo faça para evitar uma catástrofe no sistema de comunicação, segurança, etc. não pode descartar um descontrolo.

9. Confiar cegamente na máquina, porque (já) a colocámos num patamar sobre-humano, transcendental, é descurar o (tão-só) humano que a programa. Depositar nela o conhecimento, descurando outros modos de o guardar, até com a preocupação de poupar papel, faz correr o risco de perder a cultura tantas vezes produzida com sofrimento, fome, solidão e morte.

10. As novas tecnologias, como todas as tecnologias que as precederam, contribuirão para o bem ou para o mal, conforme o paradigma com que sejam construídas e usadas. Como os pesticidas, a energia laser ou nuclear, a manipulação dos vírus ou a engenharia genética, a 'inteligência artificial' fará o que lhe 'ensinarem' e permitirem.

11. Entendo que a inteligência aberta só está ao alcance do Homem, que, por sua iniciativa e se for bem 'ensinado' – ou, melhor, educado –, é capaz de agir com propósito, de se aperfeiçoar nas faculdades que são próprias dessa inteligência. É com isso que, se somos educadores, nos devemos preocupar.

12. E, bem o sabemos, só uma educação abrangente, profunda e bem situada axiologicamente poderá encaminhar a humanidade para um destino que se possa dizer humano. 
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Nota: O primeiro texto de carácter académico do autor, integrado em livro de atas de um congresso realizado em Vila Real (29-31 de Maio de 1989) tinha como título Homens e/ou máquinas. Os problemas essenciais no que toca à Educação colocados à altura, continuam por resolver.

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