quarta-feira, 3 de maio de 2023

"É por isso que uma boa educação - ou uma educação para o Bem - faz tanta falta"

Na continuação do texto de Cátia Delgado (ver aqui).

Tenho o jornalista Luís Pedro Nunes por bem pensante. Melhor: informado e criticamente pensante. Digo isto em função do que tenho lido e ouvido dele no respeitante, sobretudo, à educação. E, neste particular, entendo que constitui excepção. No dia 23 do mês passado publicou no semanário Expresso um artigo com o título "A inteligência artificial será Deus", que toca indirectamente a educação, devendo, por isso mesmo, ser lido por todos aqueles que se tenham na conta de educadores. No final deste "post" explico porquê. Antes, tomo a liberdade de reproduzir passagens do mencionado artigo que justificam o que acabo de dizer.
"Se não estivermos atentos, até parece que foi muito barulho para nada. O tal GPT-4, o modelo de inteligência artificial (IA) generativa, está por aí, faz umas brincadeiras com a escrita e imagens (...). Os nada dramáticos dizem que aquilo não é mais do que “autocorretor de texto em esteroides”. Os mais otimistas garantem que é “o momento iPhone da Inteligência Artificial”. Os mais pessimistas equivalem o ChatGPT ao Projeto Manhattan, que levou à criação da bomba atómica. Abriu-se a Caixa de Pandora e os decisores não sabem o que fazer. E estão com medo (...).
[A] União Europeia como um todo (...) quer garantir que a IA generativa não vai provocar um ataque aos “direitos dos cidadãos”. A UNESCO pediu aos governos que implementassem uma ética para a inteligência artificial. Nos EUA, o Congresso quer um “debate robusto” sobre os riscos da IA. No Canadá, há uma “investigação a decorrer” (...). 
Mas esse comboio já partiu. Como gostam de dizer: agora é parar o vento com as mãos. 
Parece um exagero que em quatro meses todo este pânico e deslumbramento se tenha gerado. [E] aquilo de que falamos agora já não é do que falávamos no início do ano (...). Não é uma evolução. É um salto que não se consegue descrever. As aplicações do modelo contam-se à centena por semana, algumas delas com implicações que vão muito além do mero “vais ficar sem emprego”. Isso é o evidente. Já se pode arranjar ferramentas um pouco para tudo (...) se quer ficar aterrorizado aceda ao futurpedia.io, um diretório com todas as ferramentas de IA lançadas diariamente e divididas em 58 categorias. 
É esta a questão: há o Bem e o Mal. O uso ‘devido’ da IA generativa terá em muito pouco tempo consequências na vida, nos empregos, na economia (...). É o uso ‘indevido’ desta tecnologia que somos incapazes de prever. 
Numa conferência de forças de segurança no Dubai, em março, já foi possível ver desde drones com software de reconhecimento facial, que automaticamente acompanham a pessoa e lhe entram no smartphone, a capacetes que analisam as ondas cerebrais e podem assim detetar se um indivíduo está a mentir. Sim, há uma empresa que promete um detetor de mentiras gerado por IA que vai revelar os nossos “pensamentos mais profundos” (...) o regime chinês já utiliza muitas destas aplicações que agora estão a ser melhoradas. 
Queremos acreditar? Não nos apetece. Estão em causa as mais básicas convenções éticas e democráticas. Daqui virá um novo tipo de autocracia, a IAcracia, que dominará os seus cidadãos (...). 
O problema destes apelos é que já foram feitos várias vezes por causa de outras novas tecnologias e é difícil mobilizar e captar a atenção para algo que parece tão pouco aterrorizador como um programa de computador que escreve uns textos surpreendentes, mas que sabemos não ser ‘inteligente’, antes um algoritmo que foi alimentado por milhões de textos, logo, não inteligente. 
Ian Hogarth, especialista de inteligência artificial formado em Cambridge (...) refere estarmos a caminhar para uma IA aparentada a deus (God Like AI): um supercomputador que aprende e se desenvolve autonomamente, compreende o seu ambiente sem necessidade de supervisão e pode transformar o mundo à sua volta. “Ainda não estamos aí. Mas dada a natureza da tecnologia, quando chegarmos lá, uma ‘IA Tipo Deus’ será uma força além do nosso controlo e da nossa compreensão, que pode acelerar a obsolescência ou destruição da raça humana.”
Uma das pessoas que mais prezo em termos académicos e a quem mais recorro quando tenho dúvidas em matéria de educação, Carlos Fernandes Maia, leu este texto e disse-me o seguinte:
Acho que, por enquanto, a IA só fará o que lhe permitirem. Dizia Einstein que a ciência nos diz o que as coisas são, mas não o que elas valem. E valor só os humanos conseguem atribuir, revelar e construir. A energia nuclear, o laser e tantas outras tecnologias derivadas do trabalho científico podem ser usadas para benefício ou malefício. É por isso que uma boa educação - ou uma educação para o Bem - faz tanta falta.

Se a educação - e em particular a educação escolar, com as suas eternas dificuldades, limitações e indecisões - é a única possibilidade de nos tornarmos humanos, estamos num momento em que precisamos de reafirmar o seu valor e os valores que a definem: a dignidade, a verdade, a honestidade são alguns deles. Falo, claro está, da educação que acontece na relação estruturante entre pessoas. 

Não podemos adiar - e muito menos ignorar - essa reafirmação, traduzindo-a em acção, de facto, educativa, que é como quem diz, construtiva do humano; a demora pode significar, como diz Luís Pedro Nunes, "a obsolescência ou destruição da raça humana". A nossa consciência, se a tivermos, há-de conduzir-nos a isso mesmo. Estou, bem sei, a tentar ser optimista... talvez muito pouco realista...

4 comentários:

Anónimo disse...

Posto nestes termos, o problema da educação, ameaçada esta que está pela Inteligência Artificial, não fará todo o sentido revisitarmos as velhas religiões monoteístas que encaminham o Homem para o Bem? Outra opção de salvação da escola, seguida com entusiasmo crescente pelo ministério da educação, é a realização de workshops em filosofia ubuntu, como meio de formar para O Bem, cognitivo e emocional, as novas gerações, que perderam imensas aprendizagens essenciais devido à pandemia COVID-19. A fórmula para O Bom Sucesso é tão simples como isto: eu sou; porque tu és! Aqui já não se trata de derrubar as paredes das prisões: temos de deitar abaixo as muros, as grades e as grelhas que, nas nossas escolas, impõem limites à expansão das emoções e criatividades naturais dos seres humanos que, todos os dias, lá interatuam entre si.
Tal como aconteceu com o imperador romano Constantino, não percamos a esperança de de que a IA, um dia, caia em si e também acabe por se converter ao Cristianismo.

Helena Damião disse...

Estimado Leitor não podemos confundir a Educação com a Religião, ainda que elas se toquem. E não podemos confundir a Educação com a filosofia (que não o é) ubuntu ou outra congénere, centradas nas "emoções". e afins. Também não podemos confundir a Educação com um programa político para a escolaridade. E, não, a Educação não pode ser direccionada para o sucesso (mercantil, individualista...). A criatividade não é natural, pelo que tem de ser educada...
Percebo que o seu comentário decorre da observação (realista) que faz da realidade, a que acrescenta um toque de ironia, mas ele pode desviar-nos do propósito que é inerente à Educação e não pode deixar de o ser sob pena de a negarmos. A Educação é a acção humana que nos permite tornarmo-nos e permanecermos humanos. Por isso mesmo, tem de ser vinculada ao Bem, àquilo que a Humanidade, no seu mais elevado raciocínio tem eleito como Bem. Não devemos abdicar disso.
Cumprimentos, MHDamião

Anónimo disse...


Podemos fazer perguntas?
"A criatividade não é natural, pelo que tem de ser educada..."
Com que fundamento, informação, ou credibilidade se pode dizer que a criatividade não é natural?! É um postulado?
E o que será o não-natural?
A criatividade tem de ser programada, formatada, controlada, vigiada, regulada e regulamentada, ..., especialmente, por ... não-criativos? A criatividade inane é um nado-morto; e isso não bastará?

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Anónimo (7 de maio de 2023 às 11:47)
Posso indicar-lhe os relatos e estudos acerca das "crianças selvagens". Ou seja, crianças que não foram criadas por humanos ou que tiveram escassos contactos com eles. As capacidades humanas que teriam à nascença não se desenvolveram (ou desenvolveram-se de modo muito limitado) mesmo com estimulação direccionada. As capacidades que se atribuem à inteligência (recordação, compreensão, análise, crítica.... e criatividade) são aprendidas a partir de uma estrutura de base. Educar a criatividade não é programá-la, nem formatá-la, nem regulá-la... é, precisamente, potenciá-la. Adianto que convém distinguir criatividade de espontaneidade.
Cumprimentos, MHDamião

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