Divulgo entrevista que dei ao Sol sobre fraudes académicas, da qual só dois breves extractos puderam ser publicados:
SOL – Em Portugal, fala-se da fraude académica cometida por estudantes. No entanto, não é tão abordada naquilo que diz respeito aos professores. Isto acontece porque aqueles que a cometem querem ocultá-la?
CF- Há, em Portugal, como em
todo o mundo, fraudes académicas, cometidas tanto por alunos como por
professores e investigadores. Naturalmente que, aqui como em todo o mundo, as
quebras de integridade são ocultadas por quem as comete. Não há muitos dados
quantitativos sobre esses casos, mas o universo dos estudantes é muito maior que o dos professores.
Mas alguns casos têm vindo a lume. As universidades e institutos de
investigação têm feito um caminho no sentido de definir códigos de ética a
seguir na academia ou no universo mais lato da investigação, mas muito pode e
deve ainda ser feito. Além de medidas de auto-regulação por parte de cada instituição, pode e deve
haver regulação elaborada pelo conjunto das universidades, politécnicos e
laboratórios associados e colaborativos, para não falar de medidas mais amplas,
do foro governamental ou legislativo.
A ética devia ser um tema de maior preocupação
do que é hoje. Parece-me que, entre nós, para além da ocultação, há alguma
cultura de permissividade, que é reflexo de uma cultura geral da sociedade
portuguesa. Nas melhores universidades estrangeiras uma quebra grave de ética
quer por estudantes quer por professores conduz ao afastamento puro e simples.
É, por exemplo, impensável que um aluno copie numa prova ou, pior ainda, porque
tem mais responsabilidade, que um professor plagie em qualquer um dos seus
trabalhos. No caso de plágio, que é um roubo intelectual condenado por lei, têm havido notícias de alguns casos em Portugal. É provável que haja mais, até bastantes mais, e
que só se veja a ponta do icebergue. Contudo, as instituições dispõem actualmente de
ferramentas informáticas que permitem detectar alguns plágios. Os plágios quer
em teses quer em artigos científicos são desonestidades que deviam conduzir à
anulação dos trabalhos: em geral, quando devidamente comprovadas têm conduzido. A
comunidade científica internacional, que funciona à escala global, tem regras
muito estritas para estes e outros casos de má conduta. O mundo académico é
humano e encontram-se lá todos os erros e «pecados» dos humanos, mas é também
um mundo onde as falhas graves, quando apanhadas, são devidamente castigadas. Em ciência pode-se
errar e erra-se muitas vezes involuntariamente – o erro faz parte do próprio
processo científico – mas um erro propositado, assim como mais em geral uma má conduta,
conduzem, na comunidade científica, ao descrédito e á expulsão da comunidade. A
comunidade científica é, ela própria, o melhor guardiã da integridade. Os
artigos contendo plágios ou falsidades são retractados pelas revistas sérias que possuem comités de avaliação e editores bem estabelecidos (há algumas que o não são, não
passando de comércio). Há sítios da
Internet que contêm listas de artigos retractados (há lá portugueses, por vezes nomes com casos repetidos) e há também listas de discussões sobre artigos
publicados, onde se podem fazer denúncias. Uma fraude num artigo científico
pode passar despercebida durante algum tempo, mas é raro que sobreviva muito tempo,
pois há muitos olhos a ver. Em suma, há casos de fraude em Portugal como no
mundo, não sendo grande o número de casos conhecidos. A comunidade académica
e científica, para velar pelo seu bom
nome, está organizada, mas pode e deve estar mais bem organizada. Devia
haver mais vigilância e, claro, menos tolerância para com os malfeitores.
SOL – “O único contributo que certos iluminados dão a
um estudo ou a um artigo é um nome e a linha de afiliação profissional”,
disse-nos uma fonte que prefere não revelar a identidade. Isto corresponde à
realidade?
CF- Essas denúncias podem ter
algum fundamento, mas são difíceis de comprovar. O fundamento é a ideia com que se fica perante listas de artigos que algumas pessoas não tiveram tempo de dar um
contributo razoável para o artigo que assinam. Este fenómeno acontece no mundo em geral e
Portugal não foge à regra. Deriva da cultura instalada na academia à escala
mundial de que o mais importante para progredir na carreira, obter
financiamentos e aumentar o prestígio é publicar mais e mais («publish or perish» é o
dito em inglês para o fenómeno). E deriva ainda de uma cultura, que existe mais
numas disciplinas do que noutras e mais nuns lugares do que noutros, de colocar
o nome dos dirigentes dos laboratórios ou semelhantes em muitos dos artigos que
de lá saem. Não penso que seja uma boa prática quando feita de forma
sistemática como é feito nalguns casos, mas é difícil de comprovar a falta de autoria real pois nada
impede que uma pessoa muito ocupada com cargos de gestão tenha dado alguma
contribuição a um artigo, quanto mais não seja uma ideia numa discussão ou um aperfeiçoamento da redacção do texto. Acontece que os cientistas seniores têm, em geral,
uma experiência que lhes permite em pouco tempo fazer aquilo que aos juniores
demoraria muito tempo. Mas obviamente não há milagres quanto à dilatação do tempo:
tem de dormir, têm de comer… Sei bem que
há «fábricas” montadas de fazer artigos, a maior parte deles irrelevantes pois
só servem para fazerem número, justificando novos financiamentos. A mim um artigo por semana parece-me demasiado,
e mais ainda se as pessoas em causam acumulam funções de direcção
administrativa ou política. As melhores revistas como a «Science» e a «Nature»
solicitam que explicitem a colaboração de cada autor: os autores seniores vêm
normalmente no fim, salientando o trabalho dos primeiros autores, muitas vezes
juniores.
O número de artigos não chega de modo nenhum
para avaliar a qualidade deles: usa-se normalmente o número de citações, isto é
o número de vezes que outros trabalhos citam aquele resultado (é preciso esperar
algum tempo para haver impacto). As listas como a da empresa Clarivate de
autores com mais impacto são muito mais ilustrativas da qualidade dos
investigadores do que o simples número de artigos. Há um factor, chamado factor h, que
conjuga o número de artigos com o número de citações. Um bom ranking das
universidades, que é o ranking de Xangai, leva em conta essas listas de
cientistas com mais impacto (isto é, mais citados) assim como os artigos na “Science” e
na “Nature” e os prémios Nobel. Portugal tem muitos poucos cientistas no
ranking da Clarivate, o que significa que a ciência portuguesa, medida pelo
impacto dos seus artigos, não tem qualidade de topo. Está até muito longe disso! No
entanto, publicam-se muitos artigos, mais do que seria de esperar atendendo ao
número de habitantes ou ao PIB ou à parcela do PIB devotada à ciência (que,
entre nós, é muito baixa: 1,7% em comparação com a média europeia de 2,3%).
Embora as citações não sejam tudo (e também aí pode haver fraudes, algumas
delas subtis como auto-citações e troca de citações com «amigos»), elas dão uma muito melhor ideia da qualidade do que o número total de artigos. Quase sempre,
os autores com muitos artigos têm números de citações baixas na esmagadora
maioria deles. É curioso ver os nomes dos cientistas portugueses de topo na
lista do Clarivate e reparar que não são em geral os nomes mais mediatizados.
Estou em crer que, sendo
a avaliação quantitativa útil, ela não pode ser tudo. Em particular nas
ciências sociais e humanas, que estão mal retratadas nos índices internacionais de
revistas, por haver muita produção nas línguas nacionais, que são relevantes para a
cultura e a identidade nacionais. Nas promoções, por exemplo, tem de haver uma
avaliação humana que leve em conta capacidades pedagógicas demonstradas, o número de
doutorados que formou, os projectos que promoveu, o trabalho de extensão à comunidade, etc.
De certo modo já se tenta fazer isso nos concursos académicos, mas desagrada-me
que, por causa de reclamações (muitas vezes apresentadas em tribunal), se tenha se exagerar
no uso de escalas quantitativas, expressas em folhas Excel. Os júris, devidamente escolhidos, com maioria de fora da instituição (para evitar a endogamia que
entre nós é gritante), deviam ser soberanos nas suas decisões, expressas por cada um de de forma qualitativa. Em todo o mundo começa-se a ter esta
preocupação, depois de se ter reparado que os números não são tudo. Não se podem
reduzir pessoas a números. Nem uma carreira académica ou científica pode ser
vista como uma prova de atletismo. O nosso país chega sempre um pouco atrasado
às tendências que se desenham no mundo.
Um dos nossos problemas é a falta de organização da comunidade científica: não há organismos nacionais de investigação como há em Espanha, França, Alemanha ou Estados Unidos, nem há academias de ciências fortes como por exemplo a Royal Society no Reino Unido, ou as Academias Nacionais dos Estados Unidos. Tudo está muito dependente do governo e da conjunctura. A FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, não só não é independente do governo como não tem suficiente representação da comunidade científica. Os cientistas da mesma disciplina muitas vezes em vez de cooperarem, lutando pela ciência que os une, competem uns com os outros por serem de universidades diferentes. O nosso sistema científico precisava, para além de ser mais financiado, de ser reestruturado dada, entre outras, a necessidade de redefinir a sua relação com universidades e politécnicos. O ministro José Mariano Gago, a quem muito devemos, montou um sistema de ciência largamente à margem do ensino superior e é a altura de o repensar. Não temos visto, com a sucessão de ministros da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, um pensamento estratégico nessa área. Nesse pensamento deviam estar claros os incentivos para o progresso do sistema.
SOL – Os estudantes e investigadores submetem-se a certas práticas para não aborrecerem os professores, orientadores, etc. e, assim,
tentarem progredir na carreira?
CF- Julgo que pergunta a
razão por que os cientistas juniores assinam artigos com a cientistas seniores.
Em primeiro lugar, é natural que assim aconteça, pelo menos até certo ponto. A
investigação científica aprende-se fazendo em conjunto com aqueles que já sabem
fazer: é como na relação aprendiz-mestre dos ofícios. Mas o doutoramento
significa a carta de alforria da investigação: a partir daí o investigador pode
e deve fazer o seu próprio caminho, devia por exemplo procurar outros lugares e outros
mentores. Na prática sabemos que há relações de poder e reverência que se
prolongam para lá daquilo que é lícito esperar. Por vezes são os autores
seniores que impõem a sua presença, partindo das suas posições de autoridade
académica e científica. E por vezes são os autores juniores que querem ter
autores seniores, porque isso aumenta a probabilidade de publicação (há até
quem acrescente por essa mesma razão nomes de universidades prestigiadas, na esperança
de impressionarem os revisores). Eu diria que aquilo que é uma boa prática de início
pode vir a tornar-se uma má prática ao fim de algum tempo. Mantêm-se dependências e
hierarquias, o que significa que a inovação, essencial na ciência, fica
bastante limitada.
SOL – Por outro lado, os “métodos existentes de
avaliação de desempenho para o aumento de produção e para o incremento do
prestígio profissional”, como referiu uma fonte, levam a que professores e
investigadores sustentem a sua investigação no trabalho de estudantes?
CF- . Existe, aqui como no mundo, o fenómeno de «extractivismo científico», que consiste no aproveitamento de mão de obra barata (estudantes de doutoramento, pós-docs, etc) por uma pessoa mais senior sem haver a devida citação ao trabalho alheio. Também é uma má prática, uma prática condenável. No trabalho intelectual a autoria tem de ser sempre devidamente reconhecida. Estamos, ainda que de forma camuflada, na presença de um plágio. Devem existir canais para o próprio se poder queixar e comités de ética que possam fazer a devida averiguação. Mas percebo que a própria pessoa espoliada se sinta limitada dadas as relações de poder instaladas. A sociedade tem relações de poder às quais dificilmente se pode escapar, mas os abusos de poder devem obviamente ser averiguados e penalizados, no caso de comprovação.
SOL – O que deve ser feito para que este panorama se altere?
CF- Em primeiro lugar, os académicos e os cientistas deviam reflectir sobre este assunto. Assim como as instituições,
sejam elas academias, institutos ou organismos estatais, através das respectivas estruturas. Toda a sociedade deveria
acompanhar a reflexão. Mais do que remediar importa prevenir. É possível, mas
não fácil, mudar a cultura de hipervalorização dos dados numéricos, mas uma das
dificuldades é que se trata de uma questão internacional, uma vez que a ciência é internacional. Não se muda todo o statu quo de um dia
para outro, mas sim e apenas lentamente. Os casos que têm surgido, como a «venda» de afiliação de um cientista (de facto, há mais do que um) espanhol, deviam
interpelar-nos para não corrermos atrás do prejuízo. Há danos de reputação que
são irreparáveis. Devemos aqui em Portugal estar mais atentos à discussão ética que vai pelo mundo. De facto, publicam-se cada vez mais artigos, mas a sua relevância média é cada vez menos. Há um
artigo recente da «Nature» que revela isso: a falta de inovação da ciência actual é
gritante. A ciência tem de continuar a
ser honesta, valorizando o seu verdadeiro
objectivo - alcançar novidades sobre o mundo e colocá-las ao serviço da Humanidade - em vez de servir interesses particulares. A ciência tem de ser feita com conciência,
com ética, respeitando valores partilhados pela comunidade. Disse François Rabelais no século XVI: «Ciência sem
consciência não passa de ruína de alma». E esse dito continua actual.
1 comentário:
Desde há dezenas de anos que, pela competição e apetite por originais que vai pelo mundo, o «publish or perish» foi atualizado para «publish and perish».
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