quarta-feira, 10 de maio de 2023

MÚSICA ERUDITA PARA TODOS NA ESCOLA PÚBLICA

Por Maria Helena Damião e Isaltina Martins

Mão amiga enviou-nos o texto que tomamos a liberdade de reproduzir abaixo, quase na íntegra. Foi publicado no facebook em 20 de Abril com o título Dos milagres recorrentes. Assina-o Inês Thomas Almeida, musicóloga e cantora lírica. Como mãe, levou uma turma de 22 alunos de 9 e 10 anos a um ensaio geral da Sinfonia Fantástica, de Hector Berlioz, interpretada pela Orquestra Gulbenkian. Os sublinhados são nossos, destacando o que, felizmente, no texto concorre para pôr em causa um certo pensamento educativo que parece ser prevalecente. 
(...) Para contextualizar, devo referir que se trata de uma turma da escola pública, com miúdos das mais variadas origens sociais e geográficas e experiências de vida muito díspares. Alguns dizem que antigamente o pai usava uma pulseira [subentenda-se: electrónica], outros sabem que o pai não se pode aproximar da mãe mais do que uma determinada distância, por ordem judicial, e vários ainda não falam bem português.  
No autocarro (...) perguntei à turma se algum já tinha ido à Gulbenkian. Em 22 havia um, que era o meu. Expliquei-lhes, então, o que iam fazer e ouvir. O que é uma orquestra? Para que serve? Que instrumentos tem? O que é um ensaio? 
Expliquei-lhes, isto sempre na viagem de autocarro, a subir a Avenida de Ceuta, o que era uma sinfonia, o que era um andamento, e esbocei em traços largos o que era a Sinfonia Fantástica, porque é que tinha aquele nome - que vem do fantástico sobrenatural, das histórias de fantasmas, monstros e bruxas. Disse-lhes que a sinfonia contava uma história, disse o que acontecia em cada andamento, e no fim ensaiei com eles a melodia da idée fixe - uma ideia musical que percorre toda a peça e que representa a pessoa amada, que o compositor primeiro vê em sonhos, depois num baile, pensa nela quando está num idílio campestre, vê-se de repente na situação insólita de ser condenado à morte e levado para o cadafalso, e vê-a por fim em toda a sua verdadeira natureza, numa arrebatadora festa das bruxas em que ela pula e salta na noite de Sabat. 
Aprendida a música da idée fixe (para se perceber melhor, e sem preocupações de rigor, é aquilo que Wagner mais tarde fará nas suas óperas com o leitmotiv: uma melodia que assim que se ouve, já sabemos de quem se está a falar, e que é transformada consoante o contexto e a necessidade dramática), lá entramos para o Grande Auditório, não sem antes termos admirado a bela parede do Almada (“mas porque é que está aqui também a matemática?” - “porque aqui está tudo o que é Belo”), e fomos recebidos calorosamente pelo Serviço Educativo, que nos acompanhou. 
Começou o ensaio. Ver 22 miúdos sem qualquer contacto prévio com a música clássica, irrequietos, com problemas vários de sociabilidade, concentração, etc, ficar em absoluto silêncio, hora e meia, presos por um fio a cada nota que saía da orquestra, é algo que roça o milagre. Os olhares de todos, de cada vez que se ouvia a melodia da idée fixe (nas suas mais diversas transformações), a virarem todos o pescoço para mim, de olhos arregalados a dizer “é isto!”, não dá para explicar por palavras. 
Ao fim de hora e meia do comportamento mais exemplar que se possa pedir a crianças de 9 e 10 anos, regressámos à escola. No caminho, todos queriam dizer-me o que mais tinham gostado: eu ouvi a música! [a idée fixe]; eu percebi quando estavam a dançar! [2.º andamento, um baile]; o que eu mais gostei foi quando ele foi para a prisão! [4.º andamento, Marcha para o Suplício]; nós gostámos todos foi das bruxas! [5.º andamento, Sonho de Uma Noite de Sabat]; e quase todos em coro: OS SINOS!!!!! 
Houve um miúdo que estava visivelmente com vergonha de dizer o que tinha achado. Nalgum momento lá consegui saber: ele estava a gostar das bruxas [5.º andamento] mas a dada altura sentiu medo, naquela parte assim e assado. Eu expliquei-lhe que ele tinha toda a razão em sentir medo, essa parte era o Dies Irae, uma melodia muito antiga que se usava quando alguém morria, era verdadeiramente assustadora e o compositor quis pô-la ali para acentuar o carácter de tragédia, portanto ele (o rapaz) tinha acertado em cheio e entendido exactamente aquilo que a música dizia, e ali era de facto tenebrosa. O ar de felicidade do rapaz ao ouvir isto, raiando o orgulho do herói (eu entendi, eu ouvi e entendi) foi mais outro milagre. 
No fim, devolvidos à escola, mesmo antes de me ir embora disse-lhes que estava muito orgulhosa de todos, porque tinham feito uma coisa muito difícil que era ouvir, e tínham-no feito com distinção. 
Tenho a certeza absoluta de que naquele grupo, há pelo menos um ou outro que não se vai esquecer desta experiência tão cedo. E lembrei-me de como é possível haver nas escolas (e na sociedade em geral) um desfasamento tão grande com a música clássica. Que sim, exige tempo, escuta, trabalho. 
Que pode ser difícil. E que é maravilhosa. Que nos abre mundos que nos deixam de boca aberta. E que esse trabalho traz uma recompensa e uma enorme felicidade. Explicar a Sinfonia Fantástica demorou uns dez minutos, no autocarro. Ensaiar a melodia da idée fixe para que toda a gente a soubesse reconhecer quando aparecesse, demorou uns três. 
A cara de felicidade dos miúdos, compenetrados a ouvir música e a entendê-la (uma música escrita em 1830 por um compositor francês, que tem zero a ver com a vivência imediata deles) ficará comigo na memória. 
Fica o recado dado a quem (pais, amigos, professores e - infelizmente - também professores de música) acha que música clássica é uma chatice, que é uma estopada sem nome, que tudo o que cheire a dificuldade e a introspecção é para eliminar, ai que os cansamos ou traumatizamos, que os miúdos só se interessarão por música se ela for cool”, “porreira”, e tiver a forma dos mais diversos kumbayás (...) nada contra outros estilos de música, aliás tudo a favor; mas tudo contra a ideia descabelada que qualquer coisa será boa menos música clássica, essa coisa demodé cheia de malefícios elitistas (...).
Obrigada Inês Thomas Almeida pelo seu belo e esclarecedor texto.

17 comentários:

Anónimo disse...

Belíssimo texto. Experiência inestimavelmente esclarecedora! Achar "chata", traumática, sressante, a música de Haydn, de Mozart, de Beethoven, de Stravinsky é uma barbaridade só cabível na boca de preconceituosos e de péssimos educadores. Se há seduções capazes de nos enfeitiçar, desde muito novos, é a grande música. Só um anestesiado boçal se não rende a uma frase de Mozart.. Parabéns a um belo texto de uma musicóloga culta, sensível e com grande sentido de pedagogia!
Eugénio Lisboa.

Anónimo disse...

Ontem ouvi, na televisão, o senhor ministro da educação rebater os argumentos de quem considera o facilitismo na avaliação e classificação dos alunos na escola pública, bem como a aceitação por parte do ministério da educação da indisciplina e violência na escola, como uma estratégia fraudulenta de alcançar o sucesso educativo para todos, com a "ideia-chave" de que se reprovarmos os alunos pobrezinhos, por não saberem a matéria, ou se os expulsássemos da escola, por serem muito violentos, estávamos a mandá-los para a rua, onde só poderiam vir a engrossar as turbas de delinquentes juvenis. Na escola podem ter comportamentos criminosos, mas como vão, no fim do ano, ter sucesso escolar, só se pode esperar que, finda a escolaridade obrigatória, serão todos cidadãos exemplares!
Em vez da filosofia ubuntu, o senhor ministro poderia inovar com o ensino da música nas escolas EB 1,2, 3 + S + JI. Não só com o kuduro inclusivo, mas também com a o canto coral e a música clássica para todos!
Os professores, e não apenas "as escolas", precisam, como de pão para a boca, de autonomia científica e pedagógica. A burocracia estúpida tem a ver com as grelhas cheias de parâmetros fictícios que servem apenas para obrigarem os professores a passar toda a gente. O senhor ministro podia resolver este assunto por despacho: o sucesso escolar é fácil e obrigatório!

Anónimo disse...

Já agora, como se deve avaliar um aluno, sem grelhas e parâmetros? A olhómetro?

Anónimo disse...

Avaliação não classificativa, claro está. Como faz o IAVE nas provas de aferição. Depois é só encontrar uma menção qualitativa por ali...

Anónimo disse...

Ou não. Basta ser descritivo: o aluno é capaz de e não é capaz de... por disciplinas e por domínios. Melhorou o volume de trabalho do docente? NÃO. PIOROU. É só experimentar...

Anónimo disse...

Eu volto a explicar:
Na minha missiva de 10 de maio de 2023, às 20:52 horas, referia-me às grelhas estúpidas e fictícias que o ministério da educação, ou as escolas, obrigam os professores a preencher para obter um sucesso escolar universal e falso! No meu caso particular só peço autonomia para me deixarem avaliar e classificar conforme aprendi na Universidade que me facultou um estágio integrado e remunerado na profissão docente. Eram outros tempos!... Atualmente, o ministro da educação acha que "facilitismo" é corrigir e classificar centenas de testes e exames escritos e orais todos os anos. Porém, quem diz que é possível avaliar e classificar todos os alunos, com base em parâmetros tão abstrusos, como o da criatividade, por exemplo, é porque mente, como diria a grande Florbela Espanca!
O que aqui está em causa é a desautorização de professores licenciados por Universidades que veem a sua autonomia científifica e pedagógica, apesar de consagrada na lei, cerceada, diretamente pelo ministro, ou por interpostas chefias intermédias, nas escolas. A autoridade dos professores, considerada, há meia dúzia de anos, fundamental para ensinar, foi completamente desvalorizada pelo ministério da educação e, consequentemente, a vida na escola transformou-se num inferno para os professores.

Anónimo disse...

Sim. Com microscópios e telescópios.
Avaliar, perceber o que falha, regular, medir, dar feedback, analisar, sintetizar, rever, refazer, consolidar, avaliar formativamente, avaliar sumativamente, diagnoses iniciais e intermédias para regulação da ação pedagógica. Como é que sei o que eles sabem se não os avaliar sistematicamente? Quando mando um aluno ao quadro, estou automaticamente a avaliá-lo, no meu mais profundo e agreste interior e sim, depois vou buscar a grelha de observação para marcar o parâmetro que falhou e o que já cumpriu. Só assim posso perseguir a vítima da ignorância no caminho da felicidade que é aprender.

Helena Damião disse...

Na verdade, Professor Eugénio Lisboa, a ideia, alicerçada nos anos sessenta e setenta do passado século, de que o conhecimento dito erudito não deve entrar na escola (pública) ganhou destaque no currículo. Os argumentos de que esse conhecimento não serve para a vida, não é útil, é discriminatório de minorias, não diz nada aos alunos, etc. excluem a literatura, a música e as de mais formas de arte, mas não só. Há aqui uma espécie de perversidade, que quero crer não seja propositada nem consciente: muitos daqueles que tem acesso ao conhecimento erudito, alegando bons propósitos, recusam-no aos que não têm outro acesso a ele a não ser na escola.
Cumprimentos, MHDamião

Anónimo disse...

A olhómetro?!
Não, que ideia! Com microscópios e telescópios. Se penetramos no âmago psíquico do estudante, violando-o portanto, ele há de retribuir-nos, em sumo e sangue, a "felicidade" que aprendeu connosco.
Não é nada disso!
Para acabar com a fraude que é o atual sistema de avaliação e classificação dos alunos, é necessário e urgente devolver a autonomia científica e pedagógica aos professores licenciados por universidades, onde aprenderam a ensinar e avaliar.

Anónimo disse...

Mandar bitaites é fácil. Qualquer um o faz.

Anónimo disse...

A sra.professora Helena Damião chama Professor Sr. Lisboa. Porquê!?
Foi professor encartado?
Só pode ser por cortesia. Ok.

Anónimo disse...

Respondo ao ANÓNIMO que não tem a coragem mínima de mostrar a cara. Não sou Professor "encartado" como diz o envergonhado Anónimo, porque ser Professor não foi a minha carreira profissional. Mas fui convidado, por muitas universidades por esse mundo fora, para lá ensinar, conduzir seminários, orientar mestrados e doutoramentos e arguir os mesmos, agregações e até concursos para Professor Catedrático. O eminente Professor Aguiar e Silva não hesitou em me convidar para arguente de um doutoramento na universidade onde ensinava. E o Reitor da Universidade de Aveiro, Professor Júlio Pedrosa, que conhecia o meu curriculum, desde os tempos de Moçambique, não hesitou em me convidar , como Professor Catedrático! Visitante, para aquela Universidade. Nessa mesma universidade, como já tinha acontecido noutra inglesa, os meus méritos docentes, de investigador e de orientador de investigação, foram reconhecidos com um Doutoramento Honoris Causa.. O que os meus alunos têm dito de mim seria a vergonha de muitos professores "encartados", mas sem a mínima capacidade de docência ou de investigação séria. Numa ida à Universidade de Aveiro, onde fui apresentar um livro meu, foi dito em público, pelo Director do Departamento de Línguas e Culturas, que recebera pouco antes uma mensagem de um ex-aluno daquela universidade, dizendo que eu fora, para ele, o melhor professor que tivera em toda a sua vida. Sim, não fui um Professor apenas encartado, porque fui um verdadeiro Professor, com a vantagem de ter mergulhado as mãos na massa de outras vidas profissionais, como director e administrador de empresas internacionais, conselheiro cultural numa importante embaixada, Presidente de uma Comissão Nacional da UNESCO e com uma extensa bibliografia que, segundo uma organização internacional que faz estas pesquisas, já mereceu, até à data, perto de mil citações por esse mundo fora.
Confesso que não ficaria surpreendido se o Anónimo que escarrou a miséria antecedente fosse um dos tais professores "encartados" mas miseravelmente equipado para tão nobre missão como a de Professor. Meu caro Anónimo, não é Professor quem tem "carta", é-o tão somente, quem tem vocação, saber adquirido ao longo dos anos e afecto profundo ao que ensina e aos que ensina. E até recebi, fora de Portugal, convites para integrar a carreira de Professor, num dos casos, para nela entrar no ponto mais alto da hierarquia profissional. Guarde, pois, o cobarde Anónimo, a sua carteirinha miserável, caso a tenha, que eu fico com a única medalha que me interessa: o apreço e estima dos meus alunos. Fui e sou Professor, sim, e não preciso para isso de carta que nunca conferiu a ninguém o título verídico de Professor. Não é Professor quem quer, é-o só quem pode.
A Professora Maria Helena Damião, docente e investigadora altamente qualificada e de invulgar integridade, não costuma usar de cortesia para conferir títulos a quem os não merece. Isso cabe só a rábidos anónimos, se tal lhes convier.
Os meus bons amigos que me conhecem sabem o recato a que me remeto, nunca alardeando o que faço ou os títulos ou penduricalhos que possuo. Até porque o único título que verdadeiramente prezo é o de ter sido Professor. E esse não é qualquer Anónimo roído pela sarna ideológica ou outra qualquer sarna, que mo tira.
Eugénio Lisboa

Anónimo disse...

Muito bem.
Por aquilo que nos conta v.exa é tambem Cientista.
Eugénio Lisboa, o Professor e Cientista... a prof. Helena Damião pecou apenas por defeito.

Anónimo disse...

O Sr. continua Anónimo, cobarde e autista. E continua a não saber ler. Não digo em lado nenhum que sou cientista, embora tenha formação científica e sempre tenha lido muito sobre ciência, o que me evitou a leviandade e a irresponsabilidade de escrever patetices como as que escreve este Senhor Anónimo e muitos outros como ele. Recolha-se à humildade aconselhável do silêncio e fará melhor figura: a inestimável figura da sua não existência.
Infelizmente, as redes sociais permitem que se ponham em bicos de pés nulidades atrevidas como o senhor... Anónimo.
Eugénio Lisboa

Anónimo disse...

Desculpe lá o atrevimento.

Se cabe aos Professores ensinar e aos Cientistas investigar... foi V.exa que se excedeu e porque escreveu "os meus méritos docentes, de investigador e de orientador de investigação, foram reconhecidos"... enganou-nos e fez-se passar por Cientista.
Pior ainda é ofender as pessoas.

Anónimo disse...

O Senhor continua a não saber ler e é a última vez que tento ensinar-lho. Eu disse que era investigador, mas não disse que o era no campo das ciências. Sou-o no campo da literatura e cultura. .O senhor é tão irresponsável que faz ataques enviesados e bastante reles a pessoas de cujo curriculum nem minimamente se informa. A sua falta de respeito por pessoas que lho deviam merecer, se o senhor as merecesse, é, infelizmente, o que mais abunda por essas redes sociais fora. Sim, sou engenheiro e fui também Professor de Literatura. Não é exótico: houve outros, Jorge de Sena, entre muitos. Não fui eu quem inventou o habitar duas culturas: a científica e a humanística. Não volto a isto. Desejo ao Anónimo atrapalhado recolhimento e humildade.
Eugénio Lisboa

Anónimo disse...

Descobrir aquilo que os outros já sabem diz-se que é Aprender. O senhor não foi investigador de coisa nenhuma... não criou nada em Literatura... andou simplesmente a aprender por conta própria.
Também lhe falta a indispensável formação pedagógica para poder ser Professor, aquela que a professora Helena Damião reclama para outros e para V.exa assobia para o lado chamando-lhe de Professor.