segunda-feira, 8 de maio de 2023

APRESENTAÇÃO DE UM LIVRO QUE VIAJA PELOS LIVROS E PELA MEMÓRIA QUE ELES NOS OFERECEM

Por João Boavida

Isaltina Martins, Viajando pelos livros – da leitura à memória, Coimbra, 2023, APLG (Associação do Professores de Latim e Grego).

É um pequeno livro em prol do estudo e da divulgação do Latim e do Grego, editado em 2018, que agora foi reeditado, por ocasião da comemoração dos 35 anos da referida Associação. 

E ainda bem que o foi porque, como é vulgar em Portugal, passou despercebido. Como se sabe, muito do que se publica e merecia ser divulgado, não o é, ou porque não foi editado em Lisboa, ou porque o autor não é conhecido, ou porque a comunicação social minimamente interessada por estes assuntos se distraiu, ou por outras razões, este livro não teve, como acontece a muitos outros, a sorte que merecia. 

E, todavia, é um livro que devia ser lido por todos os professores e por todos os pais que se preocupam com o futuro dos jovens. Pelas implicações educativas, a curto e médio prazo, e pelas consequências sociais a longo prazo, devia ser divulgado, e sobretudo pensado pelos responsáveis políticos que andam deslumbrados com as novas tecnologias educativas e as suas imensas “possibilidades” para dar cabo do que resta da educação. 

Isaltina Martins é uma professora de Latim e Grego, formada nas Clássicas da Faculdade de Letras de Coimbra, e teve mestres de grande qualidade, como Maria Helena da Rocha Pereira, Walter de Medeiros, Costa Ramalho, Louro da Fonseca, e outros; ou, ainda antes, ao nível liceal, com esse grande romancista tardio que foi Fernando Campos. 

Tem, pois uma sólida formação de cultura e línguas clássicas, o que lhe dá uma perspetiva cultural muito longa, e uma formação sólida no que diz respeito às raízes da Língua Portuguesa. A extensão temporal da sua cultura clássica permite ter a visão panorâmica dos muitos séculos de evolução da nossa cultura, e de quase tudo o que em termos culturais e literários fomos, somos e continuaremos a ser, mesmo que não queiramos saber disso ou façamos por esquecê-lo.

A partir do Grego e do Latim, como matriz, Isaltina Martins vai refletindo sobre a importância da leitura para o conhecimento - sem a qual nada somos, para a aprendizagem - indispensável para tudo, para a memória - que é o fundo e a forma da nossa personalidade, para a expressão verbal e escrita - sem a qual não comunicamos, ou fazemo-lo tão mal que reduzimos as nossas possibilidades a níveis mínimos, enfim, chama a atenção para o que devemos aos nossos pais e avôs culturais e linguísticos, que tão levianamente andamos a matar, e seduzidos por futuros imprevisíveis corremos alegremente de olhos vendados à beira de ravinas sem nos apercebermos dos perigos. 

Um aspeto que Isaltina Martins realça é a distinção entre leitura funcional e leitura recreativa. Sem uma, não há aprendizagem correta, nem adequada, nem complexa; sem ela não poderemos desenvolver a capacidade de pensar e de traduzir corretamente pensamentos mais abstratos e exigentes. Sem a outra não há verdadeira fruição, nem se alcança plenamente o prazer de ler, a alegria, a compensação que um belo ou intenso texto em nós deve proporcionar. 

De facto, a leitura não e só conhecimento e aprendizagem, o que é, só por si, imenso, mas é também motivo de fruição.

A literatura, como diz Isaltina Martins, servindo-se de uma citação de Vargas Llosa: 
«torna natural o extraordinário e extraordinário o natural, dissipa o caos, embeleza o feio, eterniza o instante».
Ou, como diz Eduardo Lourenço, noutra citação:
«a literatura é o nosso discurso absoluto. Todas as culturas se definem pela relação com o seu próprio imaginário. A encarnação dele é a literatura».
É como se a realidade se substancializasse ganhando um poder de síntese e um nível estético em que a própria natureza humana se redime e projeta, se reorganiza sem cessar, se transfigura.

E a gente lembra-se do sortilégio dos serões antigos em que alguém lia, para toda a família, o Frei Luís de Sousa, por exemplo, ou torna a visualizar aquele quadro do pintor Abel Manta que retratou uma tertúlia de velhos intelectuais numa sessão de leitura, no consultório do médico Pulido Valente, ou recorda que na Rússia do século XIX eram frequentes as leituras em grupo, de contos, novelas e passagens de romances, publicados ou a publicar, e o mesmo na Inglaterra de Charles Dickens.

Era uma maneira de apreciar e usufruir em conjunto, divulgar e, sobretudo, uma forma de criar padrões de exigência estética e usar a literatura como elemento de informação, prazer e satisfação partilhada. Sabe-se também como uma correta e adequada leitura de um texto o valoriza, lhe dá profundidade, ressonância, ligeireza ou dramatismo, etc. A literatura é também, enquanto usufruição, um extraordinário fator formativo.

Isaltina Martins tem, a este propósito, uma passagem muito esclarecedora:
«O livro entranha-se no leitor, deixa de pertencer ao seu autor e passa a fazer parte daqueles que o leem, torna-se múltiplo e uno em cada um, porque múltiplas são as leituras e única a leitura que cada um faz». 
Todos nós temos experiência de alguns livros que nos marcaram, que foram formativos no mais nobre sentido da palavra, que nos transformaram interiormente, nos tornaram mais maduros e exigentes. Daí podermos dizer que há livros que tiveram sobre a nossa vida uma influência determinante, que ajudaram a definir o gosto, a exigir qualidade, a desenvolver o sentido crítico, e que deram uma dimensão ética e estética à nossa vida que, doutro modo, não alcançaríamos.

Embora não seja um manual, nem um cânone, este pequeno livro está bem pensado, está bem escrito, é compreensível, sem ser simples, é complexo sem ser difícil, é, elegante sem o pretender, e é erudito sem ser pesado, pois a sua erudição vem sempre a propósito e na medida certa. O leque dos autores referidos cobre séculos, outra vantagem da visão panorâmica que a cultura clássica proporciona, e vem até muitos autores contemporâneos, o que indicia uma leitora rica e atualizada.

Que bom seria que todos os pais, que têm filhos que se agarram horas esquecidas aos telemóveis e aos videojogos, lessem este livro e pusessem em prática estratégias de tornar os filhos bons leitores, estariam a fazer muito mais pelo futuro deles do que assim, pensando talvez que o acesso que eles hoje têm a tantos meios tecnológicos lhes dará, só por si, sabedoria e maturidade intelectual e humana.

E até a muitos professores faria bem seguir este roteiro para criar movimentos de opinião fortes, reagir a ideias falsas e pretensiosas que por aí andam, impantes e, sobretudo, usar práticas que levassem muitos jovens a perceber o que perdem quando se desabituam de ler e, mais ainda, quando não percebem o que, com a leitura, se pode alcançar. 

Nos livros está tudo, mas mesmo tudo, quem será capaz de lhes fazer compreender isto? 

 João Boavida

4 comentários:

Cátia Delgado disse...


A Professora Isaltina Martins tem o dom de manter uma jovialidade muito própria, que lhe permite, de forma leve, mas nada leviana (bem pelo contrário), esclarecer-nos sobre a imprescindibilidade da(s) leitura(s) para a formação humana. Como muito bem aconselha o Doutor João Boavida, este é um livro que todos os pais e professores deveriam ler, pelo menos os que - como muitos que conheço - já perceberam que a educação está a seguir por caminhos sinuosos e precisam de dar corpo às suas ideias para tomar decisões que, pese embora contra a corrente que se agiganta, serão as mais proveitosas a longo prazo. Agradeço a ambos por partilharem o vosso precioso conhecimento. Um abraço, Cátia

Anónimo disse...

No estilo fluente, elegante e aliciante, que se lhe conhece, o Doutor João Boavida chama a nossa atenção para um livro que merece ser conhecido, mas que, aparentemente o não é. A verdade é que não há hoje, entre nós, órgãos de informação que façam uma cobertura crítica abrangente e sistemática daquilo de bom que se publica. O crítico sistemático desapareceu e a irresponsabilidade, filha da falta de verdadeira cultura, assentou arraiais, para ficar. Atira-se para os cornos da lua verdadeiras aberrações e esquece-se de visitar e ajudar a perpetuar o melhor que tem o nosso património cultural, passado e presente. O gosto da boa leitura - a qual é, como acentua João Boavida, simultaneamente, funcional e recreativa - corre o risco de se tornar o embaraçado refúgio de alguns. O grau de iliteracia crescente de uma sociedade também se mede pelo deslumbramento provinciano com as chamadas novas tecnologias. As quais podem ser úteis, se usadas com bom senso crítico, mas podem também ser letais, se veneradas como manipansos de uma religião tosca e primitiva. Confesso não conhecer o livro de Isaltina Martins, por nunca ter sabido da existência dele, mas graças ao apadrinhamento agora feito pelo Doutor João Boavida, vou procurá-lo e dá-lo a conhecer. Um imenso obrigado a João Boavida e Isaltina Martins. E também, neste caso, ao bom uso de uma tecnologia, que serviu para reparar uma injustiça!
Eugénio Lisboa

Anónimo disse...

Onde/como é possível comprar o livro?

João Soares disse...

O grave problema e é global é a descida do QI dos nossos jovens. Os hábitos de leitura perderam-se. Já em 2021 foi publicado o livro "A Fábrica de Cretinos Digitais". Michel Desmurget acumula vasta publicação científica e já passou por centros de pesquisa renomeados como o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e a Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos .É verdade que o QI é fortemente afectado por factores como o sistema de saúde, o sistema escolar, a nutrição, etc. Mas se considerarmos os países onde os fatores socioeconómicos têm sido bastante estáveis por décadas, o 'efeito Flynn' começa a diminuir.
Nesses países, os "nativos digitais" são os primeiros filhos a ter QI inferior ao dos pais. É uma tendência que foi documentada na Noruega, Dinamarca, Finlândia, Holanda e França.
Vários estudos têm mostrado que quando o uso de televisão ou videogame aumenta, o QI e o desenvolvimento cognitivo diminuem.

Os principais alicerces da nossa inteligência são afetados: linguagem, concentração, memória, cultura (definida como um corpo de conhecimento que nos ajuda a organizar e compreender o mundo). Em última análise, esses impactos levam a uma queda significativa no desempenho académico.
E por que o uso de dispositivos digitais causa tudo isto?
As causas também estão claramente identificadas no livro que refiro: diminuição da qualidade e quantidade das interações intrafamiliares, essenciais para o desenvolvimento da linguagem e do emocional; diminuição do tempo dedicado a outras atividades mais enriquecedoras (jardinagem, música, arte, leitura, etc.); perturbação do sono, que é quantitativamente reduzido e qualitativamente degradado; super-estimulação da atenção, levando a distúrbios de concentração, aprendizagem e impulsividade; sub-estimulação intelectual, que impede o cérebro de desenvolver todo o seu potencial e o sedentarismo excessivo que, além do desenvolvimento corporal, influencia a maturação cerebral.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...