Como tratei aqui recentemente de Lord Kelvin, vem a propósito transcrever aqui o capítulo do mau livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva) que trata do problema da idade do nosso planeta:
Quando falamos em história da Terra, temos de nos referir a longos períodos de tempo, milhares de milhões de anos... Sabe-se hoje que a Terra tem cerca de quatro mil milhões de anos, mas demorou algum tempo a chegar a essa conclusão.
A busca da idade da Terra iniciou-se há mais de duzentos anos... O alemão Abraham Gottlob Werner (1749-1817) foi um dos pioneiros dessa busca. Werner, considerado um dos avós da geologia, defendia que a formação da Terra tinha sido um processo rápido e que todas as rochas se tinham depositado num oceano primordial, num espaço de tempo muito curto – esta é a chamada cronologia curta da Terra. A teoria werniana estava aliás de acordo com os conteúdos do “Génesis”, o primeiro livro da Bíblia (segundo o “Génesis”, Deus criou o Universo, incluindo a Terra, em escassos sete dias), e, talvez por isso, permaneceu, durante muitos anos, inabalada.
Acabou, porém, por ser questionada nos finais do século XVIII pelo geólogo inglês James Hutton (1726-1797). Hutton, ao observar rochas sedimentares depositadas horizontalmente sobre rochas dobradas, deduziu que estas teriam sido depositadas em diferentes épocas e que, portanto, era longa a história do nosso planeta – esta é a chamada cronologia longa da Terra. Em 1795, Hutton publicou o seu famoso livro “Theory of the Earth”, no qual expõe uma história geológica uniforme, permanente, sem início nem fim. Poder-se-ia mesmo falar de uma idade infinita para a Terra! Claro que, para os cristãos que levavam à letra a palavra bíblica, a ideia de um tempo infinito era uma verdadeira heresia, uma vez que proibia o acto criativo do Criador. Hoje já não é heresia: a teoria de Hutton serviu de base para as teorias de geologia e biologia que se lhe seguiram e, sabe-se hoje, está essencialmente correcta.
Charles Lyell (1797-1875), outro geológo inglês, foi um seguidor das ideias de Hutton. Considerado por muitos o pai da geologia, publicou entre 1830 e 1833 o livro fundador dessa ciência - “Principles of Geology” (em três volumes) - , onde defendeu as ideias de Hutton contra as de Werner. Lyell datou rochas através dos fósseis que eles continham, tendo concluído que a Terra teria milhões de anos e, mais ainda, que teria mudado lentamente ao longo de todo esse tempo, devido a factores como a erosão. O princípio do uniformismo defendido por Hutton ganhou nessa altura tal preponderância que, a partir de meados do século XIX, a Bíblia quase desapareceu do estudo da história da Terra...
Ainda outro inglês, Charles Darwin (1809-1882), o famosíssimo proponente da teoria da evolução, foi um adepto das ideias do seu amigo Lyell, tendo feito amplo uso delas na sua teoria. Por sua vez, Lyell, que antes acreditava que as espécies se tinham mantido imutáveis ao longo dos tempos, tornou-se, quando conhece a teoria de Darwin, um dos seus mais acérrimos defensores. O desenvolvimento da estratigrafia e da paleontologia, já preliminarmente estudadas por sábios como Leonardo da Vinci e Antoine Lavoisier, ajudou à aceitação das teses uniformistas de Hutton e Lyell. O estudo dos fósseis permitiu entender as sequências dos estratos e, portanto, conhecer melhor a história da Terra.
Em 1859, Darwin estimou em 300 milhões de anos, um tempo claramente longo, o período de escavação de um grande vale inglês. Esse cálculo concordava “grosso modo” com um outro relativo à salinidade dos oceanos, que fixava em cerca de 100 milhões de anos o tempo necessário para salinizar toda a água do mar.
Mas, em 1863, o eminente físico William Thomson (1824-1907), mais conhecido pelo título de Lorde Kelvin, que na altura era considerado o “papa” da Física (Kelvin foi um dos autores da Segunda Lei da Termodinâmica, que marcou a física do século XIX) voltou, embora obviamente sem invocar a Bíblia, às ideias da cronologia curta. Baseado na Primeira Lei da Termodinâmica, estudou o fluxo de calor emitido pela Terra, concluindo que o nosso planeta teria, no máximo dos máximos, 100 milhões de anos. Em 1987, Kelvin, depois de efectuar novos cálculos, atribuiu à Terra cerca de 20 milhões de anos, um valor tão pequeno que provocou um grande alvoroço entre os geólogos. Lyell respondeu-lhe afirmando que haveria reacções químicas no interior da Terra que não tinham sido consideradas nesses cálculos... Não conseguiu porém demover o teimosíssimo Kelvin, que, quando muito, estava apenas disposto a admitir o valor de 40 milhões de anos.
Kelvin estava rotundamente enganado! A chave para mostrar o seu erro só apareceria mais tarde, em 1896, com a descoberta da radioactividade pelo físico francês Henri Becquerel (1852-1908). A Terra contém no seu interior rochas radioactivas, mas o fenómeno da radioactividade, que está associado à emissão de calor, não entrava nos cálculos de Kelvin...
Curiosamente, foi a radioactividade de algumas rochas naturais que permitiu finalmente datar com precisão o planeta Terra. Um dos geólogos mais ilustres do século XX foi o britânico Arthur Holmes (1890-1965). Holmes, depois de investigar o problema da datação da Terra, concluiu que a Terra teria uma idade entre 1,4 e 3 mil milhões de anos. Numerosas determinações posteriores deram à Terra, como de resto ao sistema solar (a Terra tem a idade do sistema planetário que integra), a idade um pouco maior de 4,5 mil milhões de anos. Não é um tempo infinito como defendia Hutton, mas é muito maior do que o tempo bíblico ou do que o tempo de Kelvin...
Kelvin não viveu o suficiente para reconhecer o seu erro... Mas esta história da história da Terra mostra como a ciência avança ao reconhecer os seus erros. E mostra, principalmente, que é o diálogo entre as disciplinas científicas, neste caso a geologia e a física, que acelera a construção do conhecimento científico.