terça-feira, 13 de maio de 2008

O corpo na cultura portuguesa


Novo post convidado de Rui Baptista (o desenho infantil mostra Camões a salvar, a nado, "Os Lusíadas"):

Não é uma alma, não é um corpo, é um homem(Montaigne)

Em post anterior dei conta de tempos de Ramalho Ortigão que primaram pela verdadeira ausência de interesse dos poderes públicos pelas práticas físicas dos jovens escolares. Aliás, da falta de hábitos de exercitação física da população portuguesa se queixava igualmente uma das personagens de Eça de Queiroz, em “Os Maias”: “Nós não temos os jogos de destreza das outras nações – exclamou ele, esbracejando pela sala e esquecido dos seus males. Não temos o cricket, nem o foot-ball, nem o running, como os ingleses: não temos a ginástica como ela se faz em França; não temos o serviço militar obrigatório que é o que torna o alemão sólido… Não temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra, temos só a tourada… tiram a tourada, e não ficam senão badamecos derreados da espinha, a melarem-se pelo Chiado”.

Mas será que este desgraçado país teve, desde sempre, como fado mau e ruim ser a pátria envergonhada duma raça enfezada, de corpos enfermiços, com fluidos de sangue anémico a correr nas veias, como que a modos de um destino a que não pode fugir?

Para o historiador do século XVI João de Barros, o Vice-Rei Afonso de Albuquerque era “fragueiro e pouco mimoso na sua pessoa, só se lançando na cama quando mais não podia” e o Infante D. Henrique “tinha largos ombros e fortes membros acompanhados de carne, a cor da qual era branca e corada, e que bem demonstrava a boa compleição de humores”.

De Luís de Camões, que viria a ser “primus inter pares” daqueles que cantou como figuras lusitanas que “por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”, é-nos dado o testemunho da sua força e coragem físicas em façanhas de que muito se orgulhava dizendo que só era vulnerável pela solas dos seus pés, e que ninguém estas lhas vira ou haveria de ver. Ao serviço da coroa e da grei, tornaram-se eles personagens de uma harmonia perfeita entre corpos fortes, almas de eleição e obras valorosas.

Infelizmente, estes exemplos não parecem ser suficientes para mudar o paradigma dominante em pessoas amputadas na sua cultura por uma perspectiva mutilada e mutilante do homem integral e que, por esse facto, subscrevem a passagem de um certificado nada abonatório no que concerne às práticas corporais, remetendo-as, nos dias que correm, para a situação vivida pelos estudos humanísticos de antanho. Com efeito, segundo Georges Gusdorf, professor na Universidade de Estrasburgo, era esta a situação em França no século XVIII: “As Letras correspondem a uma perda de tempo e de inteligência; as Ciências, graças às explicações técnicas, permitem melhorar as condições do homem na Terra” (“Da história das ciências à história do pensamento”, Pensamento – Editores Livreiros, Lisboa, 1998).

É quiçá neste tradicional clima de glorificação das “ciências duras”, contrastando com o desapego pelas “ciências moles”, que pode ser encontrado o terreno para o desconsolo de George Armitage Miller, doutorado em Psicologia pela Universidade de Harvard, onde lecciona: “Hesito um pouco antes de dizer que sou psicólogo, não porque tenha vergonha de ser psicólogo, mas porque sei que provavelmente me vou meter numa série de equívocos. Há pessoas que dizem: ‘Ah, é psicólogo! Parece-me que a minha mulher me está a chamar’ – e vão-se embora. Depois há a reacção oposta: ‘Então é psicólogo? Bem, eu também sou um bocado psicólogo’ – e contam como treinaram o cão para que lhes levasse o jornal a casa”. Situação semelhante se passa com os treinadores de bancada de fim-de-semana que, apaixonadamente e em defesa das suas cores futebolísticas, se arrogam o direito de discutir a metodologia de treino dos praticantes do “desporto-rei”, como se ainda estivéssemos no tempo das balizas às costas.

Ora não é com exemplos deste género que se cumprem o destino pedagógico e as exigências biológicas das práticas corporais que o professor Manuel Viegas de Abreu, catedrático jubilado da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação de Coimbra, delineou: “Dotar a Educação Física da dignidade científica, técnica e pedagógica que merece, em paridade com as restantes disciplinas curriculares, é, sem dúvida, um objectivo de relevância indiscutível; alcançá-lo constitui mesmo uma meta importante para a renovação do nosso sistema educativo”.

E porque nisso muito acreditou, no senado universitário onde tinha assento, passou das palavras à acção fazendo-se, a par de outras personalidades do mundo académico conimbricense - de entre elas, o então reitor Rui de Alarcão - um acérrimo defensor da criação da oitava faculdade da Universidade de Coimbra: a actual Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física.

3 comentários:

Marta Bellini disse...

Como sempre um texto formidável.
abraços
Marta
Brasil

Rui Baptista disse...

Tudo farei para continuar a merecer comentários destes. É sempre agradável recebê-los, para mais, quando atravessam o Atlântico e são subcritos por uma académica como a Marta. Bem-haja.
Abraços
Rui

Rui Baptista disse...

As gralhas têm destas coisas arreliadoras. Para quem escreve são verdadeiros camaleões que se confundem com o resto do texto passando despercebidas. Assim, li "subcritos", como se tivesse ecrito subscritos. "Mea culpa"...

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