Leia-se o seguinte texto num registo em que se combinam ironia, perplexidade e alguma inquietação.
A propósito do meu post Mestrado em quê!?, referem leitores deste blogue que têm conhecimento de cursos de nível superior com designações e objectos de estudo mais estranhos do que este – Mestrado em Gestão e Manutenção de Campos de Golfe.
Pensei no assunto e dei conta que também conheço. Por dever profissional, nos últimos tempos tenho passado os olhos e, às vezes, mais do que isso, trabalhado nos currículos de primeiro, segundo e terceiro ciclos de Bolonha e não é raro deter-me nas designações de “unidades curriculares” – como agora se diz, em substituição de “disciplinas” ou “cadeiras” –, cursos, áreas, especializações oferecidas por essa Europa, por as achar estranhas, peculiares… E quando isso acontece dificilmente consigo atingir os objectos de estudo…ou, se os atinjo, fico na dúvida se eles são ou não aceitáveis.
Mas, neste esforço de compreensão, não posso deixar de pensar se serão essas designações e objectos de saber que eu estranho, um sinal de modernidade. Faço esta pergunta já há alguns anos, mais precisamente desde que, em 2001, li um artigo - A doutora astróloga - escrito por Daniel Ribeiro.
Conta o jornalista que a Sorbonne, a clássica, austera e mítica Sorbonne, atribuiu o grau de doutor com menção “muito honrosa”, não dispensando os respectivos parabéns, à ex-conselheira astral do presidente Mitterrand que se apresentou a provas na área da sociologia com uma tese intitulada: A situação epistemológica da astrologia através da ambivalência fascinação/rejeição nas sociedades pós-modernas.
Muito haveria a dizer a este título, que é um daqueles que Alan Sokal poderia ter inventado para a sua famosa brincadeira (Sokal & Bricmont, 1999), mas passo adiante nesta e noutras considerações apetecíveis, para referir apenas uma eventual consequência da própria tese: a astróloga, que já tinha ascendido a estrela mediática, reclamava há muito a criação de uma cadeira de astrologia na universidade que lhe deu o título académico. Na altura, diversos cientistas entre os quais se contaram o astrofísico Jean Audouze, e associações científicas, nomeadamente, a Associação Francesa para a Informação Científica, chamaram a atenção para os compromissos da Universidade com o saber científico e o pensamento racional, manifestando a sua preocupação pelo facto de a nova doutorada poder servir-se do diploma para conseguir levar a bom termo a sua reivindicação.
A isto respondeu Elizabeth Teissier – é o nome da senhora em causa, que aparece sorridente e charmosa na imagem acima reproduzida –, que tal cadeira teria toda a pertinência para combater a “ignorância e os abuso dos charlatães”. Um fim que, na lógica pós-moderna, nos leva a perguntar: por que não abrir as portas de uma prestigiada universidade a tão digno propósito?
Só há aqui um senão: na universidade, como noutros contextos, nem sempre os fins justificam os meios.
Documentos referidos:
- Ribeiro, D. (2001). A doutora astróloga. Expresso de 13 de Abril, pág. 13.
- Sokal, A. & Bricmont, J. (1999). Imposturas intelectuais. Lisboa: Gradiva.
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2 comentários:
Sei de uma Dissertação de Mestrado, subordinada ao tema "Filosofia e Parapsicologia", defendida numa universidade portuguesa...
Interessante e positivo, a meu ver.
E o título da tese nada tem de hermético, ora essa, é de interpretação clara e sem ambiguidade.
De facto, e embora de astrologia eu pouco ou nada saiba, se o conteúdo corresponde efectivamente a tal designação, apenas se poderá dizer que a escolha do tema foi de mestre!
Ora bem, independente do mérito ou demérito da novel doutorada, mais tudo o que possa ser dito sobre a racionalidade científica ou não da astrologia e a sua relação com as ciências sociais, há por certo um aspecto interessante que me parece merecer algum realce.
Aliás, ao falar de "racionalidade científica", já apresentei a 1ª parte da equação do conhecimento humano, o qual não se esgota contudo aí. Ou ainda, positivismo vs. fenomenologia, eis o verdadeiro confronto que está subjacente a esta infiltração, que volto a considerar benéfica, de algumas áreas "heréticas" no edifício da ciência moderna. De notar que tal heresia data apenas de há poucos séculos atrás, quando o racionalismo iluminista afastou do âmbito da ciência oficial outros ramos mais antigos do saber, como a astrologia e a alquimia e afins.
Em suma: poderão as ciências sociais ser reduzidas a meras quantificações numéricas e técnicas objectivas de medição do comportamento humano? Ou a experiência individual subjectiva e todos os sentimentos associados que não são quantificáveis merecem também um lugar proeminente na moderna sociologia?
A resposta parece-me evidente, já que não retirando valor nem importância ao estudo objectivo e matematicamente rigoroso, não parece ser possível limitar unicamente ao mesmo a vastíssima gama dos fenómenos sociais que também têm o seu epicentro no indivíduo concreto e não mero número estatístico e anónimo.
É neste contexto que o regresso de disciplinas vistas com alguém desdém pelo excessivo racionalismo da ciência contemporânea deve ser saudado como um acontecimento muitíssimo positivo.
Ou ainda, ignorar os aspectos emocionais da experiência humana, apenas porque o seu estudo não é susceptível de ser enquadrado em padrões rígidos e facilmente mensuráveis, é um erro óbvio que retira autenticidade às ciências sociais. Isto não significa, naturalmente, que não deva existir também exigência e rigor na avaliação da vivência do sujeito, mas apenas que nem tudo pode ser reduzido a uma fria objectividade lógica e matemática.
Por fim, enquanto não se avançar nesse mistério que é a consciência humana, ou o modo como percebemos e processamos a realidade apreendida pelos sentidos e a mente, a distinção entre "objectivo" e "subjectivo" permanecerá sempre demasiado frágil e indistinta. E, deste modo, isso valida inteiramente a justeza das abordagens fenomenológicas que não podem ser ignoradas.
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