quinta-feira, 30 de novembro de 2017

"É PRECISO REDESCOBRIR A ELEGÂNCIA"



Publicado no "Jornal de Letras", a meu pedido foi-me me enviado um novo texto de Eugénio Lisboa, crítico literário, que agradeço e reproduzo com o prazer de sempre:

Para o  Luis Amorim de Sousa (Eugénio Lisboa)

Passaram, em 27 de Agosto, dez anos sobre a morte, em Londres, do poeta Alberto de Lacerda, encontrado caído à porta do seu minúsculo apartamento, em Battersea. Assinalando a efeméride, encontra-se, neste momento, na Biblioteca Nacional, uma bela e compreensiva exposição dedicada ao grande poeta de Oferenda.

Exílio é como se intitula um dos mais belos livros de Alberto de Lacerda e um longo exílio foi a sua vida, desde que, em 1951, deixou Lisboa, a caminho de Londres, onde, para sempre, se estabeleceria.

Nascido em 1928, na Ilha de Moçambique – “festa de luz de mar tranquilo” , estudante pouco convicto do liceu em Lourenço Marques, partiria em 1946 para Lisboa, com os estudos liceais mal concluídos e pior amanhados. Cinco anos de vida mais ou menos boémia na capital portuguesa, sem concluir estudos que o aparelhassem para uma entrada na universidade, Alberto de Lacerda entregou-se, por outro lado, a leituras intensivas e a um convívio literário apaixonado com vultos de proa do meio literário lisboeta. Ao fim de cinco anos, cansado, desiludido, magoado, partiu para Londres, sem trabalho certo garantido, aí vivendo, no meio de grandes dificuldades financeiras, de colaborações e alguma locução na BBC, mas sem vínculo certo.

Guloso de conhecimento e de diversidade, andou, em 1959 e 1960, pelo Brasil, onde atou laços de amizade perene, com figuras como Manuel Bandeira e Cecília Meireles.
Em 1967 foi ensinar para a Universidade de Austin, no Texas, uma experiência de fundo encantamento e de enorme produtividade poética. Terminado o contrato, regressou a Londres, mas, em 1972, foi contratado pela Universidade de Boston e aí ensinou Poética até se reformar. 

Viajante incansável, descobridor de mundos e minúcias que a outros escapavam, Alberto de Lacerda conhecia Londres como ninguém, sendo, da cidade que considerava “o centro da liberdade”, um admirável e apaixonado cicerone.

Amigo e correspondente de alguns grandes da cultura universal, Alberto de Lacerda foi considerado por René Char uma das quinze vozes universais da poesia de hoje. Co-fundador da Távola Redonda, com um número dos Cadernos de Poesia inteiramente dedicado à sua poesia e o seu livro (bilingue) 77 Poems saudado encomiasticamente no Spectator e no Times Literary Supplement, com mais poemas traduzidos fora de Portugal do que qualquer poeta português, genial animador cultural e aliciante conversador, Alberto de Lacerda, uma das mais belas vozes da poesia portuguesa, dono de um discurso poético a um tempo intenso e castigado – consegue, no entanto, o prodígio de ser actualmente um dos poetas mais invisíveis e desdenhados, no universo pícaro da nossa república das letras.

Disse já, algures, que o autor de Palácio “é um poeta que celebra, em cada curva do seu discurso, o esplendor da língua e o fulgor da vida.” O poema que, no livro Exílio, dedicou à língua portuguesa é uma das mais belas homenagens prestadas à língua de Camões e um poema onde todos os excessos são permitidos: “Esta língua que eu amo / Com seu bárbaro lanho / Seu mel / Seu helénico sal / E azeitona / Esta limpidez / Que se nimba / De surda / Quanta vez / Esta maravilha / Assassinadíssima / Por quase todos que a falam / Este requebro / Esta ânfora / Cantante / Esta máscula espada / Graciosíssima / Capaz de brandir os caminhos todos / De todos os ares / De todas as danças / Esta voz / Esta língua / Soberba / Capaz de todas as cores / Todos os riscos / De expressão / (E ganha sempre a partida) / Esta língua portuguesa / Capaz de tudo / Como uma mulher realmente / Apaixonada / Esta língua / É minha Índia constante / Minha núpcia ininterrupta / Meu amor para sempre / Minha libertinagem / Minha eterna / Virgindade”.

 São de notar, neste extraordinário poema, os excessos afirmativos, os superlativos absolutos simples (fazendo cada um, só por si, um verso: “Assassinadíssima”, “Graciosíssima”), os adjectivos intensos: “soberba”, “máscula”. Observei algures que, “na sua poesia há sempre uma sedutora tensão entre o excesso apaixonado e o mais rigoroso governo dos constrangimentos que a grande arte clássica recomenda.” Dizia Gide que o classicismo – o verdadeiramente vital – é apenas um romantismo domesticado. A poesia de Alberto de Lacerda ilustra, como poucas, esta asserção: vigorosamente romântica e severamente travada por uma mão que segura, com sábia firmeza, o leme. De tudo se alimentava a sua poesia: tanto das “maravilhas” como dos “horrores” da vida. Alimentava-se também, por certo, da sua prodigiosa e vivíssima cultura, municiada por toda uma vida de leituras e frequentação de museus, galerias, teatros, salas de concerto e de uma voracidade de coleccionador tão insaciável quão desprovido de substanciais meios financeiros. Do pouco soube contudo tirar muito, numa obstinação sublime e quase roçando o limiar da loucura.

Disse atrás que o Alberto era um aliciante conversador: nele, a enorme erudição não era árida, pelo contrário, era profundamente vivida, amoravelmente perscrutada e intensamente doada aos seus ouvintes. A sua conversa era um continuado fascínio, a que não faltava o toque de uma acerada e pessoalíssima ironia. Foi mesmo este seu dom que me fez surgir um dia a ideia de propor ao Presidente do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, o Professor Fernando de Mello Moser, a criação de um lugar de super-leitor de literatura e cultura portuguesa, nas universidades estrangeiras onde houvesse estudos portugueses. E que esse lugar fosse desempenhado pelo autor de Oferenda. Passaria períodos de residência de dois ou três meses em cada uma de diversas universidades, que até não teriam de ser só inglesas. O notabilíssimo animador e sedutor cultural que era o Alberto, por certo daria aos leitorados onde periodicamente residisse um fulgor, um colorido, uma vitalidade, uma sedução, uma aura que o vulgar leitor sediado na universidade não estaria em condições de propiciar. Moser foi sensível à minha sugestão e prometeu tudo fazer para a tornar uma realidade. Infelizmente, viria a falecer pouco depois da nossa conversa e não voltei a ter ânimo para retomar, com outro, o mesmo projecto.

Na vida, como na obra, Alberto visou sempre a beleza, a liberdade, a simplicidade recheada de conteúdo, a esbelteza. Num texto publicado no Notícias, de Lourenço Marques, e falando da obra do escultor Giacometti, o poeta escrevia: “Eu esperava coisas ainda mais sublimes, simplicidades ainda mais misteriosas.” Alguns meses antes, no mesmo jornal, escrevera: “É preciso redescobrir a elegância. Mas por dentro.” É realmente preciso. Mas faz também parte da mais elementar elegância não fingirmos que não damos por um grande poeta.

Portugal é de todos os portugueses

Artigo de opinião de Guilherme Valente no Público de hoje:

“What is America to me” A casa onde vivo, os Amigos que encontrei / (...) os meus vizinhos brancos e negros (...). / Todas as raças, todas as religiões (...) O ar de liberdade / Mas especialmente as pessoas, isso é a América para mim.” The house I live in, Lewis Allan (1942), cantado por Paul Robeson e Frank Sinatra

O pensamento e o discurso das ciências sociais, de endémica importação, são frequentemente inquinados pela ideologia. Essa marca universitária “credibiliza” visões políticas obscurantistas com que converge ou coincide. Não surpreende por isso que manifestações de causas sociais justas, como o combate ao racismo, se deixem colonizar por essa produção “académica” enviesada, perdendo-se no seu labirinto.

O fenómeno vai-se manifestando em intervenções surgidas na comunicação social. Prosseguindo a reflexão sobre o tema, faço agora algumas considerações sobre o racismo* registando o que considero ser um anti-racismo esclarecido e consequente.

 a) O discurso do activismo anti-racista exerce frequentemente nos grupos humanos mais expostos ao preconceito referente à cor da pele um efeito perverso: encerra-os no seu meio, discrimina-os como deficientes inapelavelmente condenados a um futuro igual. O paternalismo desprezível do activismo anti-racista, assente numa suposta superioridade intelectual e moral e numa pseudocoragem militante, impede, afinal, as verdadeiras vítimas de condições discriminatórias de ultrapassarem essa situação.

b) Na intervenção desse activismo transparece por vezes a pulsão reptiliana que está no cerne do próprio racismo, à espera de circunstâncias sociais e materiais que favoreçam a sua emergência. Para esse “anti-racismo”, o racismo é apenas branco. Branco é sinónimo de mau e de racista.

c) A besta racista tem de ser enfrentada por uma visão objectiva do que é de facto racismo, leis esclarecidas e um direito intransigente. Mas só poderá ser erradicada pela educação, o conhecimento, o saber da História contada nas suas grandezas e misérias, a ciência, o exemplo ético e moral. Pelo que conduza à compreensão de nós próprios e do outro, condição para nos reconciliarmos com o que é irremediável na nossa humana natureza. É neste registo que é imperativo intervir.

O racista é uma pessoa que quer enganar-se a si própria. Não sabe ou não é capaz de assumir que a riqueza reside na diferença de todos os seres humanos. Todos singulares, como a impressão digital de cada um. Todos insubstituíveis. Mas único não quer dizer superior.

O racista revela uma fragilidade identitária que se traduz numa revolta inconsciente contra si próprio, logo projectada sobre o outro, próximo ou distante, que o racista vê como insuportável revelador (como o negativo fotográfico) de uma inferioridade de si próprio que a si próprio oculta. Um complexo de inferioridade logo transformado numa ilusão de superioridade. A fusão de fragilidade identitária com a apreensão ou medo que esta determina suscita uma acossada agressividade que pode ir ao extremo da eliminação do outro. Outro cuja simples existência e diferença o racista julga pô-lo em causa. Para o racista, a diferença e a novidade são uma ameaça.

A intolerância estigmatizadora do extremismo político é etiologicamente idêntica à da pulsão racista. O extremismo político desconfia do diferente, receia a novidade. Teme o que põe em causa as suas “certezas”. Por isso odeia a liberdade, que é sempre “fonte de imprevisível novidade” (Bergson). Se a defendeu foi hipocritamente. Usou-a para chegar ao poder e sem ética nem moral acabar com ela. É por isso que defende a tese filosoficamente insustentável Definitivamente: não há raças. A palavra ‘raça’ não deve ser usada para se dizer que há uma diversidade humana de que a moral e a ética não têm lugar nas opções políticas. Precisamente para legitimar todos os meios para atingir os seus fins. Tese usada recentemente pela extrema-esquerda para “justifi car” a recusa de uma diferença entre Le Pen e Macron nas eleições francesas.

O racismo não é racional. Mas é pela razão e pelo conhecimento que pode ser vencido.

O racismo não tem nenhum fundamento científico, embora houvesse sempre quem tenha tentado servir-se da ciência para justificar a discriminação. Definitivamente: não há raças. A palavra “raça” não deve ser usada para se dizer que há uma diversidade humana. Só há a espécie humana, o género humano. Todos os homens têm o sangue da mesma cor — mesmo se não o fosse, isso seria moralmente irrelevante. Posso ser mais parecido com um angolano do que com um lisboeta na aparência física mais próximo de mim.

Não há, aliás, nenhum grupo humano com pele de uma só cor. Basta olhar para os portugueses “brancos” para se verifi car a variedade de tons de “branco”. “Somos todos primos uns dos outros”, escreveu M. Sobrinho Simões.

Manifestações racistas inadvertidas ou extremas verificaram-se sempre em todo o lado. Mas o racismo foi há muito oficialmente proscrito e é punido na maioria dos países. Excepto nalguns repugnantes Estados islâmicos e africanos.

E o que deverá ser, afinal, um antiracismo bem compreendido e eficaz? Cito Bruckner: “Uma sabedoria de coabitação, uma sedução da diversidade quando cada vez mais indivíduos de todas as origens estão lado a lado no mesmo espaço. Mas também uma inteligência do discernimento capaz de distinguir aquilo que tem que ver com o vexame e o que resulta da liberdade de expressão, das liberdades individuais.”

Portugal é de todos os portugueses. Se fosse mais de alguns — e não é! —, seria dos que o amam, dos que contribuem de facto, na medida das suas possibilidades, para que seja mais esclarecido, justo e solidário.

Guilherme Valente

*O livro de Tahar Ben Jelloun O Racismo Explicado aos Jovens (Presença)  guiou-me na intenção de clareza deste texto.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

MATEMÁTICA ÀS TERÇAS

A Sociedade Portuguesa de Matemática associa-se à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e à Associação de Professores de Matemática num novo ciclo de palestras "Matemática às Terças", que decorrerá sempre na terceira terça-feira de cada mês. A primeira sessão foi “O Universo das Formas e a Forma do Universo”, por António Machiavelo (DM - FCUP), no dia 21 de novembro de 2017, no Anf. 3.2.14 da FCUL, às 17h00. O ciclo de palestras "Matemática às Terças" é destinado a todos, em especial aos alunos e professores do ensino secundário e primeiros anos das licenciaturas. O ciclo é de entrada livre. Consulte a programação completa em http://matematicaastercas.campus.ciencias.ulisboa.pt/

PRIMÓRDIOS DA FILOSOFIA

Texto do Professor Galopim de Carvalho.


Com boa vontade, podemos admitir que a filosofia interessa a todos. Tanto podem falar dela os académicos, numa linguagem elitista, só a eles acessível, mas hermética para o cidadão comum, como nós, numa exigência mais modesta, ao nível da chamada divulgação.

Todos somos filósofos sempre que procuramos saber ou investigar algo, seja o que for. Tudo é sabedoria, pelo que tudo é filosofia. Mas o conceito académico de filosofia é algo mais profundo, a tratar por quem ganhou estatuto para tal. É uma sabedoria vasta e complexa, com uma longa história, que abarca a universalidade do conhecimento, que o questiona, explora e, tantas vezes, vai à frente dele.

Como filósofo que sou, no estrito sentido de gostar de saber coisas, não resisto a “meter o nariz e espreitar” este maravilhoso domínio do génio humano. Que perdoem os muitos que tratam por tu o discurso filosófico. Não é para eles que escrevo. A eles peço, sim, que me corrijam onde eventualmente possa errar ou ser menos claro ou incompleto. Escrevo para os que não tiveram oportunidade de contactar com os temas que habitualmente divulgo e que, todos os dias esperam estes meus despretensiosos escritos

O pensamento, não surgiu no cérebro humano da noite para o dia. É um produto imaterial da matéria. Não tem dimensão física. Não tem volume, nem massa, nem peso, nem cor e não ocupa espaço. Para ele não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras materiais. É ubiquista, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, aqui, no interior de um núcleo atómico. e nos quasares mais longínquos, nos confins ilimitados do Universo, a milhares de milhões de anos-luz. É imaterial mas produz trabalho. “Esforço intelectual” e “trabalho mental” são expressões correntes. Como tal, o pensamento é força e energia com capacidade de interagir com a matéria. E isso tanto acontece no acto de talhar o sílex entre as mãos de um neandertalense, de lapidar um diamante ou de fabricar um smartphone por um computador, por um conjunto de operários especializados.
É o culminar de uma evolução da matéria surgida há cerca de 13 800 milhões de anos, com o começo de Universo.

Mas isso é uma outra história, bem do âmbito das preocupações da filosofia, que iria desviar-nos do propósito que, de momento, nos move.

O cérebro, cuja estrutura vai sendo a pouco e pouco desvendada, adquiriu, na espécie humana, complexidade que lhe permite pensar, criar conhecimento. Feito dos mesmos átomos do mundo físico que conhecemos, o cérebro humano, aceite como fruto da dita evolução, além de coordenar toda a actividade vegetativa do corpo em que está inserido, é matéria que atingiu o superior patamar do pensamento e de, através dele, intervir no seu próprio curso e no da Natureza que o criou. Na sua possibilidade de obter conhecimento, de deduzir, inferir e de o transmitir, o cérebro humano, surgido à superfície da Terra, é a expressão mais complexa desta dinâmica, na qual foi consumida a totalidade do tempo do Universo, os ditos cerca de 13 800 Ma.

Se tivermos em atenção a evolução do ser humano, desde o mais antigo primata, até ao “Homo sapiens” actual, passando pelos australopitecos e pelos outros hominídeos que os estudiosos têm descoberto e descrito, a pergunta que me ocorre fazer é: - a partir de que estádio evolutivo da hominização, os nossos antepassados começaram a pensar racionalmente? Foi no do “Neanderthal”, aparecido há umas centenas de milhares de anos, foi antes dele, ou foi só no do “Cro-Magnon”, que se pensa ter exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?

Sabemos que muitos animais superiores revelam capacidades cerebrais amplamente investigadas em institutos de psicologia animal. Quem põe em causa a inteligência de um chimpanzé, de um cão, de um golfinho ou, mesmo, do Troodon formosus, o dinossáurio carnívoro, desaparecido há mais de sessenta milhões de anos? Sabemos, pois, sem sombra de dúvida, que os nossos antepassados exerceram actividade psíquica mais elaborada do que a dos animais vulgarmente ditos “irracionais”.

Cingindo-nos ao “Homo sapiens”, a pré-história ensina que, ao longo da sua evolução física e psíquica, este nosso antepassado observou, experimentou e estabeleceu relações de causa-efeito, transmitindo aos descendentes o saber que foi acumulando, servindo-se para tal da linguagem de que dispunha, de início o gesto e, mais tarde e progressivamente, a fala. Fez tudo isto e muito mais antes dos sumérios terem iniciado a arte de escrever há cerca de 5000 anos. E foi só, a partir do momento em que passou a viver em grupos progressivamente mais alargados, que se deparou com questões associadas à linguagem e aos valores morais, estéticos, políticos e religiosos. Foi nesta caminhada que surgiram os primitivos filósofos, designação genérica pela qual são habitualmente referidos os mais antigos matemáticos, geógrafos, historiadores, astrónomos e outros pensadores.

Foi o confronto entre a realidade e as ideias que, a partir dela, foram formulando, que conduziu os pensadores no caminho de uma ciência embrionária que, nessa fase, se confunde com a filosofia, entendida no sentido de interesse ou preocupação pelo saber. É nesta fase que a filosofia ganha o estatuto de “mãe de todas as ciências". Foi a admiração e, por vezes, a perplexidade decorrentes de tudo o que os sentidos traziam ao seu conhecimento, que desencadearam neles esta atitude mental que está na base do maravilhoso edifício do conhecimento científico e tecnológico que temos ao nosso alcance.

Alguns historiadores, classificados como “orientalistas”, defendem que a filosofia grega teria sido herança e posterior desenvolvimento de uma sabedoria vinda de povos de Leste. No século XIX ainda havia controvérsias sobre a origem desta forma de organização do pensamento, se na Grécia, se na Pérsia, por exemplo. Actualmente parece haver unanimidade em considerar a Grécia como o berço da filosofia, o que parece ser confirmado por estudos recentes, com ênfase nos arqueológicos.

Pensamos poder hoje dizer que foi entre os gregos que começou a audácia e a grande aventura do pensamento.

Há quem afirme que terá sido no decurso do século VII a. C., com o desenvolvimento e progresso nos trabalhos diários, que alguns gregos começaram a esboçar explicações racionais que foram conduzindo à progressiva rejeição das explicações míticas da realidade.

É hoje consensual que a filosofia, como superior elaboração do pensamento, nasceu da recusa ao carácter sobrenatural dos mitos, que então dominavam as crenças, não só da sociedade grega, mas de toda a Ásia Menor. A passagem de uma mentalidade fundamentada em crenças de carácter religioso, a uma outra, assente no raciocínio, marca, pois, o início da filosofia.

A filosofia surge, assim, como uma espécie de rompimento com a visão mítica do mundo grego. Enquanto que os mitos não dispunham de qualquer suporte racional, a filosofia inaugurava o discurso abstrato e universal, amparado na reflexão e argumentação, formulando concepções do mundo isentas de contradições e imperfeições no que respeita o raciocínio lógico.

Ao contrário da religião, baseada na fé, que não contesta, respeita e, praticamente, não se afasta da tradição e dos textos sagrados, a filosofia serve-se exclusivamente da razão para aceitar ou rejeitar as teses que se lhe deparam.

A dinâmica social em crescimento nas cidades-Estados (“polys”, em grego) jónicas, nas colônias gregas da Ásia Menor apaga progressivamente as instituições e os valores arcaicos, dando nascimento a uma nova maneira de ver e pensar o mundo.

Um parêntesis para lembrar que, na Grécia antiga, cidadão era aquele - nunca aquela - que gozava do direito de participar na vida política da “polys”, um direito igualmente vedado a estrangeiros e a escravos. Foi por isso, por essa secundarização da mulher (praticamente até finais do século XIX), que a filosofia, as ciências e muitas outras atribuições lhe foram vedadas.

Durante o século VII a. C, as novas condições de vida nestas cidades acentuaram-se com o fortalecimento do artesanato, do comércio e da navegação, marcando definitivamente a decadência da organização social baseada numa estrutura de base agrária, patriarcal e gentílica. Este tipo de organização social deu lugar a uma nova forma de pensamento racional, que não partia da tradição mítica, mas de realidades apreendidas na experiência humana quotidiana. Dito de outra maneira, os resultados da experiência sensível, no dia-a-dia, conduziu à laicização da cultura e à sua integração numa visão racional e unificadora.

Neste quadro, admite-se que tivessem surgido, nas colónias gregas da Ásia Menor, as primeiras manifestações de um pensamento racional, embrião da filosofia, abrangendo os primórdios de uma ciência teórica (sem qualquer apoio experimental). Admite-se ainda que foram também certas particularidades da mitologia grega que conduziram ao pensamento filosófico e que a contribuição dos primeiros filósofos foi dessacralizar e despersonalizar as narrativas tradicionais sobre a origem e organização do cosmos. Por outras palavras, admite-se que sendo os mitos narrativas fictícias afastadas do discurso racional (“logos”), foram eles que levaram à reflexão por parte dos filósofos, tornando-se, assim, num domínio de fronteira entre as crenças religiosas e a filosofia.

A. Galopim de Carvalho

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A CIÊNCIA E OS SEUS INIMIGOS


Introdução ao meu mais recente livro, escrito com David Marçal, "A Ciência e os seus Inimigos" (extracto publicado no último Jornal de Letras):

Vivemos num tempo indiscutivelmente marcado pela ciência: praticamente toda a nossa vida depende do conhecimento científico, através da tecnologia que dele bebe. Hoje é possível fazer um telefonema com imagem para qualquer sítio do planeta. Servimo‑nos de fontes de energia renováveis como o vento e o sol. Usamos materiais com propriedades extraordinárias feitos à medida de necessidades específicas. Tomamos antibióticos que curam rotineiramente infecções que ao longo da história foram fatais. Por causa das vacinas que as previnem, há doenças de que já nem nos lembramos. Sujeitamo‑nos, se necessário, a complexos transplantes de órgãos que nos podem salvar a vida. Foram anos e anos de desenvolvimento da ciência e da tecnologia que permitiram as nossas actuais condições de vida. E, previsivelmente, será a continuação desse esforço que nos permitirá uma vida ainda mais longa e melhor.

No entanto, e paradoxalmente, vivemos num mundo onde a ciência tem cada vez mais inimigos, alguns deles em degraus altos da escada do poder. Um exemplo emblemático foi a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos no final de 2016, apesar de o seu discurso ser anticientífico. Para além de uma aversão estrita à visão da ciência — aos factos da ciência e ao método científico que os permite apurar, como é bem ilustrado pelas suas posições sobre o aquecimento global, as vacinas e os vírus —, parece ter uma aversão à própria noção de realidade e ao pensamento racional. Fala‑se hoje de «factos alternativos» e de «pós‑verdade » simplesmente para negar a verificação da realidade e das consequências racionais que se podem assumir com base nessa verificação. Esta mundividência — chegada a um alto cume da política — encontra ressonâncias em posisões ditas pós‑modernas, há muito aparecidas, que são críticas da ciência. Segundo elas, a ciência não passa do linguajar dos cientistas, sendo essa forma de comunicação tão útil ou inútil como outra qualquer forma de comunicação numa qualquer outra comunidade. A ciência resultaria de um consenso num grupo, e seria tão legítima como outros consensos noutros grupos. Por outras palavras, a realidade não existiria, assim como não existiria um método privilegiado para a representar e comunicar. Esta é evidentemente uma visão totalitária, que, como a História ensina, pode conduzir às maiores desgraças. Não é a primeira vez que a ciência é negada desde que existe, mas bastariam os exemplos extremos dos regimes de Hitler e de Estaline, respectivamente na Alemanha e na União Soviética, para nos lembrar dos perigos das posições anti‑científicas. Se as provas não interessam, ficamos reféns da autoridade da hierarquia, justificada por alegadas necessidades conjunturais, auto‑investidas de noções enviesadas de um qualquer «bem maior» e que se sobrepõe à realidade. Se descartarmos o pensamento racional, ficamos no pantanoso domínio dos mitos e das ideologias, onde podemos soçobrar.

É preciso falar hoje dos inimigos da ciência, os quais, como procuraremos mostrar, são dos mais variados tipos, não se encontrando adstritos a correntes políticas. Começaremos por falar dos ditadores como inimigos da ciência — uma vez que ciência e liberdade estão intimamente associados — para depois falarmos dos ignorantes (Trump é um ignorante e não um ditador, dado o país onde vive; noutro ambiente sabe‑se lá o que seria), dos fundamentalistas (discutiremos a questão das relações por vezes tensas entre ciência e religião), dos vendilhões (aqueles que não hesitam em falsificar a ciência se vêem uma oportunidade de negócio), dos exploradores do medo (que agitam papões que servem para alimentar os seus interesses), dos obscurantistas (que semeiam a confusão, por a preferirem à claridade que os ofuscaria) e, finalmente, dos cientistas tresmalhados (sim, a comunidade científica tem dentro dela, quais cavalos de Tróia, alguns dos seus inimigos). Claro que alguns inimigos da ciência podem incluir‑se em várias categorias, pois estas não são exclusivas: pode‑se ser ignorante e fundamentalista, pode‑se ser vendilhão e explorador do medo, só para dar exemplos de duas combinações possíveis. Há outras.

 Buscámos inspiração para o nosso título na obra maior do filósofo britânico nascido na Áustria, Karl Popper, A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, por encontrarmos a ligação, que o próprio Popper descortina, entre ciência e sociedade aberta, ou democracia liberal, ou simplesmente democracia. A ciência, como bem assinalou Popper, é um meio muito eficaz de encontrarmos e ultrapassarmos erros, tal como a democracia é um meio de ultrapassarmos impasses sociais. O referido livro de Popper foi escrito durante os horrores da Segunda Guerra Mundial nesse refúgio do mundo  que foi a Nova Zelândia. Publicado em Londres, pela Routledge, em 1945, com o título The Open Society and Its Enemies, é uma obra de filosofia social na qual o autor faz um combate cerrado a três autores — Platão, Hegel e Marx — e à ideia comum de historicismo, isto é, de História com rumo, que estes perseguem. Para Popper, a sociedade aberta ou democracia é antagónica ao historicismo: o futuro está em aberto como uma nossa construção colectiva. No prefácio à tradução francesa, Popper foi claro e directo, como era de resto seu timbre: «O objecto deste livro é ajudar à defesa da liberdade e da democracia. Não ignoro nenhuma das dificuldades e dos perigos inerentes à democracia, mas isso não me impede de pensar que ela é a nossa única esperança. Muitos exemplos nos mostram que essa esperança não é vã.» Poderíamos parafrasear Popper dizendo que, apesar das dificuldades e dos perigos da ciência (que os tem, não duvidamos!), de modo nenhum desprezáveis, a ciência continua a ser a nossa esperança, como mostram muitos bons exemplos.

Depois de recusar a ideia da República de Platão, segundo a qual uma elite domina a colectividade, Popper é particularmente duro para com Hegel, cujo desígnio idealista de desenvolvimento do espírito pode impedir o progresso real. Acusa‑o de obscuridade e mistificação. Em relação a Marx, Popper é simpático para com as suas preocupações sociais e com os seus ideais de justiça, reconhecendo que o capitalismo atacado por Marx era uma criatura deplorável. Mas acusa Marx de advogar um historicismo insustentável: a sua visão teleológica da sociedade comunista, baseada em pretensas leis da história, é anti‑racional e autoritária (esta forte crítica explica que o livro só tenha sido traduzido para russo em 1992).

 O livro de Popper, logo aplaudido pelo filósofo e matemático britânico Bertrand Russell, teve uma influência enorme no Ocidente, tendo sido incluído na prestigiada colecção «Modern Library» formada por uma centena de livros. Em Portugal saiu, numa primeira edição, só em 1990, o que revela desde logo o atraso do nosso debate filosófico e democrático. Mas não foi por acaso que o editor da Gradiva, Guilherme Valente, intitulou o n.o 100 da colecção «Ciência Aberta» (fundada por si) A Cultura Científica e os Seus Inimigos. É seu autor o historiador e filósofo da ciência americano Gerald Holton, e tem como título original Einstein, History and Other Passions. Saiu na tradução portuguesa em 1998, escassos dois anos depois do original. Já nesse período de fin de siècle eram dissecados os perigos que a ciência enfrentava, apesar ou talvez mesmo por causa dos seus indubitáveis triunfos. A questão da confiança na ciência era amplamente discutida, assim como as críticas à ciência feitas por românticos e pós‑modernos, que são os românticos dos tempos modernos.

Também não foi por acaso que, passada uma década, o jornalista e escritor americano Timothy Ferris escreveu Ciência e Liberdade. Democracia, Razão e Leis da Natureza (no original, The Science of Liberty — Democracy, Reason, and the Laws of Nature), que a Gradiva publicou, na mesma colecção «Ciência Aberta», passados três anos, assinalando o n.o 200. Pode‑se dizer que o editor fechava cada ciclo de uma centena de livros, apresentações populares sobre os mais variados temas científicos, com duas súmulas filosófico‑políticas sobre o significado da ciência e da cultura científica.

“PARA O INFINITO”


Meu artigo no mais recente número de "As Artes entre as Letras":

Sir Martin Rees, com 75 anos, um dos mais prestigiados astrofísicos contemporâneos, esteve no Porto em 17 de Novembro passado, para proferir uma conferência, no âmbito do Mês da Educação e da Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos, na qual resumiu os principais conteúdos do seu livro Para o Infinito. Horizontes da ciência  lançado na mesma altura (tradução portuguesa do original de 2011, From here to infinity: Scientific Horizons, n.º 223 da colecção “Ciência Aberta” da Gradiva). Comentaram a conferência, realizada na Galeria da Biodiversidade do Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, os cientistas portugueses Alexandre Quintanilha, Professor de Ciências da Vida emérito da Universidade do Porto, e Nuno Santos, Professor no Departamento de Física e Astronomia da mesma Universidade e investigador no Instituto de Astrofísico e Ciências do Espaço.

O Professor Rees, professor emérito da Universidade de Cambridge e detentor do título de barão de Ludlow e membro da Câmara dos Lordes, é desde 1995 Astrónomo Real da Grã-Bretanha (um título hoje largamente honorífico mas que remonta à segunda metade do século XVII), foi entre 2005 e 2010 Presidente da Royal Society de Londres, a mais antiga sociedade científica do mundo em funcionamento ininterrupto, e foi Master do Trinity College  de Cambridge, entre 2004 e 2012. Recebeu vários prémios e distinções pelo seu trabalho científico entre os quais a medalha de ouro da Sociedade Real de Astronomia (1987), o Albert Einstein World Award of Science (2003), o Prémio Michael Faraday (2004), o Prémio Crafoord (2005), e a medalha Isaac Newton (2012). Entre os seus livros, além de Para o Infinito, merecem saliência  Just six numbers – the deep forces that shape the universo (de 1999, traduzido em português do Brasil: Apenas Seis Números: As forças profundas que controlam o universo, saído na Editora Rocco), Our Cosmic Habitat  (de 2001, traduzido em português europeu: O Nosso Habitat Cósmico, n.º 117 a referida colecção “Ciência Aberta”), Our Final Century: Will the Human Race Survive the Twenty-first Century? (de 2003, publicado nos Estados Unidos com o título de Our Final Hour - A Scientist's Warning: How Terror, Error, and Environmental Disaster Threaten Humankind's Future In This Century — On Earth and Beyond e traduzido em português do Brasil: Hora Final: Alerta de Cientista: O desastre ambiental ameaça o futuro da Humanidade, saído na Companhia das Letras). Actualmente está a completar um manuscrito intitulado What we still Don’t Know, sobre as actuais fronteiras da ciência.

Em claro contraste com o título de ressonância astronómica, Para o Infinito é um pequeno volume que se lê breve e agradavelmente. Nasceu de um conjunto de quatro conferências que o autor difundiu aos microfones da BBC, a rádio e televisão pública britânica. O objectivo do autor foi o de apresentar a ciência, tal como ela é hoje, de um modo que fosse compreensível pelo grande público. Discute as possibilidades da ciência mas também as suas limitações. Nas possibilidades inclui a resolução de um sem número de problemas relativos à vida humana na Terra e nas limitações enfatiza o facto de existirem questões sociais, económicas, éticas e políticas, que claramente excedem as competências da ciência e dos cientistas. Por exemplo, a ciência pode descrever e fazer previsões sobre as alterações climáticas globais, mas a resolução do problema está longe de ser um simples problema científico. Uma das maiores preocupações do autor consiste precisamente na prevenção de riscos para o futuro da Humanidade, como aqueles que vêm do aquecimento global, hoje uma questão bastante premente, que se somam a outros, uns da responsabilidade humana, como o da eventual utilização de armas nucleares ou o do desenvolvimento da inteligência artificial a um ponto que leve à substituição dos humanos por máquinas, e outros sem responsabilidade humana, como por exemplo a queda de um asteroide ou de um cometa na Terra. Para conhecer melhor os riscos que nos ameaçam e para “realizar a tarefa de assegurar que a nossa espécie tenha um futuro a longo prazo” Rees criou em 2012 com dois colegas seus das áreas da Filosofia e das Ciências da Computação um centro na sua Universidade de Cambridge com o nome de Centre for the Study of Existential Risk.(Stephen Hawking, o famoso astrofísico também professor de Cambridge e crítico da inteligência artificial, é conselheiro desse centro). Há quem pense que Rees é um pouco pessimista sobre o nosso futuro, mas ele considera que, mesmo que a probabilidade de a Humanidade terminar seja pequena, vale a apena considerar seriamente essa hipótese porque essa probabilidade não é zero. E, temos todos de concordar, o assunto é muito importante. Membro, entre outros da Academia de Ciências do Vaticano, que aconselha o papa em assuntos de ciência, Martin Rees propõe-nos a todos que pensemos no nosso futuro colectivo.

O Astrofísico Real britânico conhece bem o que é a ciência, não apenas pelo seu longo trabalho de investigação mas também pelos seus trabalhos de gestão e de comunicação da ciência. Para ele é indispensável aproximar a ciência do público. Não se trata apenas de fornecer uma base social sólida à ciência. Trata-se também e talvez sobretudo da partilha dos cientistas com a sociedade dos conhecimentos e dos métodos científico. Escreve a certa altura de Para o Infinito (tradução muito boa de Fátima Carmo):

«É uma lacuna cultural não apreciar o panorama ofe­recido pela cosmologia moderna e pela evolução darwi­niana — a cadeia de complexidade crescente que leva de um qualquer início ainda misterioso aos átomos, estrelas e planetas — e o modo como, no nosso planeta, surgiu a vida, e se desenvolveu numa biosfera que contém criaturas com cérebros capazes de reflectir sobre o assombro que é tudo isto. Uma tal compreensão comum deveria estar acima de todas as diferenças nacionais — e também de todos os credos religiosos.»



A Literatura Clássica ou os Clássicos na Literatura: Presenças Clássicas nas Literaturas de Língua Portuguesa

Informação chegada ao De Rerum Natura

Realiza-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa entre 4 e 6 de Dezembro na Faculdade de Letras de Lisboa o IV Colóquio Internacional. A Literatura Clássica ou os Clássicos na Literatura: Presenças Clássicas nas Literaturas de Língua Portuguesa.

Apresentação: Afirmando o estudo da tradição clássica no espaço lusófono como tema de investigação nuclear, o Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa promove a reflexão crítica em torno da recepção da Antiguidade Greco-Latina nas Literaturas Portuguesa, Brasileira, Galega e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Assim, na quarta edição do colóquio A LITERATURA CLÁSSICA OU OS CLÁSSICOS NA LITERATURA: PRESENÇAS CLÁSSICAS NAS LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA — a decorrer na Faculdade de Letras nos dias 4, 5 e 6 de Dezembro de 2017 —, é nosso propósito discutir e confrontar ideias acerca da reconfiguração temática, dos valores, do imaginário e das obras clássicas, bem como das personagens, cultura literária e poética, história e ficção gregas e latinas, atendendo a diversas cronologias e diferentes lugares onde se escreve português.

domingo, 26 de novembro de 2017

A emigração e a teoria da relatividade


Comentário de Carlos Fiolhais a uma crónica de César Rodrigues com o título de cima que está incluída no seu mais recente livro "5295" (Lápis de Memórias), uma colectânea de crónicas comentadas por vários autores:

Confesso que quando vi o título desta crónica de César Rodrigues me ocorreu que o conteúdo podia ter a ver com a emigração de Albert Einstein do seu país natal, a Alemanha, em 1933, no seguimento da ascensão de Hitler ao poder. Já desde os anos 20 do século passado tinha ganhado alguma proporção nos meios académicos e culturais um movimento chamado “Física Alemã”, que se opunha à “Física Judaica”, na qual a teoria da relatividade de Einstein era incluída. Em 1936, o físico nazi Philip Lenard escrevia, no prefácio do seu livro “Física Alemã”, que omitia não só a teoria da relatividade como a teoria quântica: “Física Alemã?” Poder-se-á perguntar. Eu poderia ter dado o nome de Física Ariana ou de Física de Gente Nórdica, Física dos Fundadores da Realidade, dos Pesquisadores da Verdade, Física daqueles que estabeleceram as Ciências Naturais. [...] Na realidade, a ciência, tal como tudo aquilo que é feito pelo homem, é rácico, está condicionada pelo sangue.”. A certa altura, o ar de Berlim tornou-se irrespirável para Einstein, que disse à sua mulher: “Olha bem para a tua casa. Não mais a vais voltar a ver!”. De facto, Einstein exilou-se nos Estados Unidos e, depois da guerra, nunca quis sequer visitar a Europa. Para ele a Alemanha significava o mal. Antes, durante e após a guerra, muitos cientistas não só do espaço germânico como da Europa em geral emigraram para os Estados Unidos, estando na base da actual supremacia americana no mundo, que foi conseguida através do domínio da ciência e tecnologia. A ciência, que está na base do desenvolvimento, precisa da liberdade como do pão para a boca.

Começando a ler a saborosa crónica, logo percebi que a relativização não tinha a ver com a relatividade de Einstein. Como acontece muitas vezes nos escritos, os títulos destinam-se a concitar a atenção do leitor. O autor chama a atenção para o fenómeno da intensificação da emigração portuguesa nos penosos anos da troika, a partir de 2011. Uma característica nova relativamente à vaga de emigração dos anos 60 foi o número elevado de portugueses com altas qualificações que, tendo feito a sua formação em Portugal ou no estrangeiro, muitos deles em áreas da ciência e tecnologia, se viu obrigado a procurar oportunidades de trabalho e de vida além fronteiras. Partilho com o autor esta preocupação, entretanto diminuída por a emigração estar actualmente em regressão. Não percebo, por exemplo, por que é que governantes quiseram, ainda que retoricamente, empurrar portugueses para fora. O problema não está na possibilidade de livre circulação de pessoas: a ciência alimenta-se desta livre circulação. O problema reside no facto de os jovens portugueses qualificados não terem possibilidade de escolha, uma vez que eram e são muito poucos os lugares — nas escolas superiores, nas empresas, na administração pública, etc. — aos quais podiam e podem concorrer. Ora, na sociedade do conhecimento em que vivemos, o progresso de qualquer país só é possível graças ao trabalho destas pessoas. O sucesso delas conduz, precisamente, ao nosso sucesso. Há, pois, que desenvolver entre nós o emprego científico de modo a que proliferem, no território português, as fontes de conhecimento assim como, o que será uma consequência, as possibilidades da sua aplicação para a melhoria das nossas vidas. O saber que se faz num sítio chega imediatamente aí.

O portal GPS -  Global Portuguese Scientists, criado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em conjunto com outros parceiros (gps.pt), é uma rede dos cientistas portugueses no mundo, a diáspora científica, que possibilita o diálogo entre eles e deles connosco. Mesmo estando no estrangeiro, os portugueses qualificados podem colaborar com os seus concidadãos que permanecem na sua terra, ajudando ao desenvolvimento. Pode ser que um dia regressem ou pode ser que não. Mas sentir-se-ão sempre portugueses, isto é, herdeiros de uma antiga e extraordinária cultura.

Carlos Fiolhais

A emigração e a teoria da relatividade


Atualmente, o incentivo à emigração tornou‑se mais explícito e despudorado: encoraja‑se a diáspora, numa procura pela terra que garanta uma promessa de emprego e, se possível, de bem‑estar social. Porém, o perfil emigratório alterou‑se: saem agora profissionais qualificados, em quem o Estado investiu (ou seja, todos nós) na esperança de uma melhor garantia de futuro e de crescimento do país.


A Ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, afirmou recentemente que é preciso relativizar a emigração jovem portuguesa.

Historicamente, sempre tivemos uma grande tradição emigratória e a amálgama de culturas que o povo português absorve é também consequência de uma sociedade aberta que acolhe e se deixa acolher.

Em certos momentos, a emigração portuguesa chegou a ser envergonhadamente estimulada, uma vez que traria dividendos para o próprio país, contribuindo para uma menor taxa de desemprego, inferiores encargos sociais, menor probabilidade de conflitos sociais e entrada de divisas no país, através das remessas enviadas pelos emigrantes. O perfil dos trabalhadores que saíam do país assentava particularmente em baixas qualificações profissionais.

Atualmente, o incentivo à emigração tornou‑se mais explícito e despudorado: encoraja‑se a diáspora, numa procura pela terra que garanta uma promessa de emprego e, se possível, de bem‑estar social. Porém, o perfil emigratório alterou‑se: saem agora profissionais qualificados, em quem o Estado investiu (ou seja, todos nós) na esperança de uma melhor garantia de futuro e de crescimento do país.

Como solução para a elevada taxa de desemprego em Portugal, hoje recomenda‑se — empurra‑se para — a emigração em larga escala. E o último que feche a porta!

Bom seria que a emigração fosse uma opção de valorização profissional e não dependesse de uma pura necessidade de sobrevivência. E, ainda assim, dever‑se‑ia ‘dificultar’ a partida, criando condições para manter em Portugal os bons quadros, proporcionando‑lhes condições de trabalho competitivas, remunerações justas e planos de carreira.

Emigrar é legítimo. Procurar uma vida que se enquadre nos anseios de cada um, noutras paragens de um mundo cada vez mais global, é uma decisão individual.

Efetivamente, a nossa História tem sido feita também da dispersão de um povo pelo Mundo e da internacionalização da nossa essência. Mas gostava que aqueles que tomam essa decisão o fizessem sem mágoa por Portugal.

Muitos têm exportado talento português sob a forma de matérias‑primas, de produtos transformados ou ainda através do melhor da nossa riqueza — da exportação do próprio corpo!

Muitos têm contribuído para a afirmação de Portugal, exercendo os seus méritos por outras paragens.

‘Lá como cá’, uns e outros continuam a contribuir para auxiliar o desenvolvimento do país.

Isso sim, não é de relativizar. É um querer bem português!

César Rodrigues  (30.mar.2015)

DISCURSO DE MANUEL ALEGRE AQUANDO DA ATRIBUIÇÃO DO DOUTORAMENTO HONORIS CAUSA PELA UNIVERSIDADE DE PÁDUA

Imagem recolhida aqui
A Universidade de Pádua, Itália, atribuiu ao português Manuel Alegre um Doutoramento Honoris Causa. A cerimónia foi no passado dia 22.

Vejo nas palavras que o poeta usou no seu discurso solene, certamente ponderadas com grande rigor, um apelo urgente à consciência dos educadores. 

Quem assume essa qualidade não pode render-se aos desígnios "do pensamento único", ditado por poderes de ocasião; tem o dever e a responsabilidade de manter viva a nossa herança humanista pois é ela que nos permite construir um pensamento livre, que nos permite dizer "sim" e "não", quando é preciso dizer "sim" e dizer "não"

Magnífico Reitor 
Peço desculpa por não falar na língua de Dante, a que o poeta inglês T.S.Eliot chamou “a língua universal da poesia”. Falo na língua em que Santo António estudou Eloquência, no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra; falo na língua de Damião de Goes, um dos maiores humanistas europeus, que frequentou esta ilustre Universidade entre 1534 – 1538, depois de ter partilhado com Erasmo, em Basileia, as ideias de liberdade de pensamento e dignidade da pessoa humana, a que se manteve sempre fiel. Regressado a Portugal, seria duas vezes preso pela Inquisição, tendo sido assassinado em condições misteriosas e suspeitas. 
Com emoção evoco estes dois grandes portugueses de dimensão europeia e universal e cujas vidas estão ligadas à cidade de Pádua. Antes de ser Estado, Portugal foi trova, cantar de amigo, Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, o dolce stil nuovo trazido de Itália por Sá de Miranda, os Autos de Gil Vicente e, sobretudo, Luís de Camões, a Lírica e Os Lusíadas, esse poema que é um acto de soberania espiritual, em que o poeta exalta “a lusitana antiga liberdade”. 
Fundador de uma identidade cultural que sobreviveu a sessenta anos de ocupação castelhana, Camões consolidou a língua portuguesa tal como hoje a falamos e escrevemos. A língua em que o Brasil proclamou a sua independência e que Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste adoptaram como língua oficial dos seus países libertos e soberanos. 
Portugal existe porque, antes de ser Estado, já era língua e poesia. As nações todas são mistérios, escreveu Fernando Pessoa. Esse é talvez o mistério da longevidade de Portugal e da projecção multinacional da língua portuguesa. Nesta língua vos falo, com humildade e embaraço, perante a grandeza da História da Universidade de Pádua, a primeira que ousou afirmar e praticar o livre pensamento, a consciência crítica e o saber experimental, princípios fundadores do humanismo europeu. 
Lembro, com respeito, o Reitor Concetto Marchesi que, em 1943, teve a coragem de lançar um apelo aos estudantes contra “a ofensa do fascismo e a ameaça germânica”. LIBERTAS é a divisa desta antiquíssima e nobre Universidade. 
A outra escala, foi sempre a minha divisa. Por isso, ainda que pequeno perante tão grande História, confesso que de certo modo me sinto em casa. Pergunto-me, nesta hora, se sou merecedor da distinção que me é conferida. Não sei responder. Posso apenas dizer que fui sempre fiel à liberdade. Lutei por ela, vivi e sofri por ela, por ela escrevi cada verso, cada palavra. Pela liberdade do meu país e pelo direito dos povos colonizados à autodeterminação e à independência. 
Se é esse o sentido de tão alta distinção, então sim, sem hipocrisia, confesso que me sinto digno da divisa da Universidade de Pádua. Escrevi alguns livros, nomeadamente os dois primeiros, Praça da Canção e O Canto e as Armas, que tiveram consequências políticas e culturais. Proibidos pela censura e apreendidos pela polícia politica, circularam em cópias manuscritas e dactilografadas, foram declamados em sessões culturais e cívicas, musicados e cantados pelos mais célebres cantores desse tempo. Independentemente de mim, tornaram se dois livros míticos e emblemáticos. 
Traziam um recado de liberdade e diziam coisas aparentemente inocentes, afirmavam que tinha havido um tempo de partir e era chegado o tempo de voltar, o que, na altura, significava a condenação da guerra colonial e a urgência de libertar o país. Era algo que estava dentro das pessoas, mas só a poesia tinha talvez o condão de revelar. Esses livros traziam também uma visão poética da História e subvertiam os mitos com que o regime salazarista pretendia legitimar-se. 
Numa interessante tese de doutoramento apresentada na Universidade Católica do Rio de Janeiro, o Professor Mário César Lugarinho caracteriza a minha poesia como “uma ortografia da História.” Não que tivesse a pretensão de, como Petrarca, “revolucionar a interpretação da História”. Procurei dar voz poética, isso sim, à vontade de mudar a nossa própria história nessa hora em que era preciso fazer ao contrário a viagem do caminho marítimo para a Índia e descobrir Portugal em Portugal. Epopeia do avesso. Ou “nostalgia da epopeia”, como escreveu Eduardo Lourenço. 
Segundo Nadejda Mandelstam, viúva do grande poeta russo, “em certas épocas, só a palavra poética, pela sua natureza cósmica, é capaz de apreender a realidade.” Por seu lado, para Rainer Maria Rilke “os versos não são feitos com sentimentos” e “…para escrever um só verso é preciso ter visto muitas cidades, muitos homens e muitas coisas. É preciso lembrar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados e despedidas há muito previstas.” Tudo isso é vida e de tudo se faz o poema. 
Escrever, para mim, foi sempre um estado de graça. Mesmo nas situações mais trágicas, a guerra, a prisão, o exílio, as muitas despedidas, e o irremediável de muitas mortes. Não tive a possibilidade e também a rejeitaria, de ser um daqueles poetas que, segundo o brasileiro João Cabral de Melo Neto, se pretendem “intemporais e inespaciais”. 
Ninguém está fora do espaço e do tempo. Ninguém está fora da história. A escrita e a vida são inseparáveis. A liberdade, afirmou o mexicano Octávio Paz, “não é uma filosofia e nem sequer uma ideia, é um movimento de consciência que nos leva em certos momentos, a pronunciar dois monossílabos: Sim e Não.” A minha circunstância levou-me a dizer não, e a dizê-lo em verso, segundo um certo ritmo, uma certa toada, uma certa correspondência de sons e imagens. Não por qualquer intenção programática, mas por um impulso, uma energia, uma irresistível confiança na força da palavra poética. Apesar da idade e dos desenganos, mantenho, hoje como sempre, a mesma confiança na força libertadora da palavra. Concordo com Octávio Paz: “A actividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método da libertação interior.” 
Creio que o ritmo da escrita é inseparável do ritmo da terra e das marés. Está antes da palavra e a a palavra cantada ou dançada está antes da palavra escrita. Como o poeta português Teixeira de Pascoaes, eu creio que “a poesia nasceu da dança e que o ritmo é a substância das coisas.” Como ele estou convencido que “a palavra liberta e cria: é a própria terra do Outro Mundo.” Em cada poeta está toda a história da poesia e de certo modo de todas as línguas, a começar pela epopeia de Gilgamesh, a primeira interrogação que o homem gravou na pedra sobre o sentido ou o sem sentido de um destino que continua a não ser revelado. 
Todos somos herdeiros desse poeta desconhecido. Herdeiros de Dante e da busca circular do número cem. Herdeiros de Homero e da Odisseia, metáfora da errância do homem em busca de uma Ítaca perdida que só existe dentro de si mesmo. Sem Vergílio e Petrarca Camões não teria escrito como escreveu. Segundo o poeta Vasco da Graça Moura, tradutor de Dante e Petrarca, “na poesia europeia, Camões 5 foi dos que compreenderam mais a fundo a dimensão da lírica petrarquiana.” Podemos talvez perguntar-nos que sentido tem a literatura neste tempo dominado pela ganância e pelo império do dinheiro. 
A economia única traz a lógica do pensamento único, da cultura única, da língua única. Como disse George Steiner: “Cada língua é um acto de liberdade que permite a sobrevivência do homem. Cada língua é algo que tem a ver com aquilo a que Blake chamou “o sagrado do particular”. Há já uns anos, José Saramago disse em Madrid que as línguas se cercam umas às outras. E que o português, tal como o italiano e o francês, seriam línguas ameaçadas. Não estou de acordo. No que respeita ao português, não só porque é a terceira língua da Europa Ocidental mais falada no Mundo. Mas também porque é uma língua de grande literatura, a língua de Camões e de Fernando Pessoa, dos brasileiros Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado, dos angolanos Luandino Vieira e Pepetela, dos moçambicanos José Craveirinha e Mia Couto, além de ser a língua em que o próprio Saramago ganhou o Prémio Nobel. E também a língua em que António Lobo Antunes fez uma das maiores revoluções no romance contemporâneo. 
Língua de diferentes identidades e diferentes culturas. Essa é a riqueza de brasileiros, africanos, portugueses. Somos diferentes na mesma língua. Uma língua em que as vogais não têm todas a mesma cor. E em que as consoantes, como se sabe, em Portugal assobiam, na Africa cantam e no Brasil dançam. Uma língua onde há a mesma música de fundo: o mar. O mar dos nossos encontros, desencontros e reencontros. Viagem de nós para nós, viagem de nós para o Mundo. 
Permitam-me que lembre, neste momento, aqueles que me leram versos de Camões e de outros poetas quando eu próprio não sabia ler nem escrever. Nem sempre compreendia o sentido, mas foi desse modo que descobri a música da língua e a toada que para sempre ficou dentro de mim. 
Permitam-me que partilhe esta distinção com os professores da escola primária que me ensinaram a escrever o português. Permitam-me que sublinhe a importância que para mim tiveram poetas desconhecidos, como os cegos que, na rua onde nasci, em Águeda, cantavam versos de amor e de tragédia, ora inspirados em factos reais ora decalcados dos rimances do Cancioneiro Português. Sou o que sou graças à família, ao povo, e aos poetas com quem aprendi os mistérios e os segredos da poesia até conseguir, a muito custo e depois de muitos cadernos rasgados, um verso meu e uma voz que suponho ser minha. 
Esta é uma hora difícil para a Europa e para cada um dos nossos países. Falta grandeza, faltam estadistas, falta uma outra visão da Europa e do Mundo, faltam os largos horizontes da grande literatura. É preciso subverter o discurso cinzento e tecnocrático e recuperar a força primordial da palavra. As perguntas e as respostas não estão nos manuais de economia. 
Talvez se encontrem em Cervantes, no idealismo de D. Quixote e na sabedoria de Sancho Pança. Talvez seja preciso voltar à Grécia e a Roma, dialogar de novo com Platão, reaprender em Sófocles a tão actual lição de Antígona e redescobrir com Séneca que “cada dia é, por si só, uma vida.” Reler as cartas de Cícero, descobertas por Petrarca e aquela prosa que, mais do que qualquer outra, terá influenciado a história da literatura europeia. Regressar a Elsenor para fazer com Hamlet a decisiva pergunta sobre o ser e não ser. Ou tentar perceber, com Dino Buzatti e o seu fabuloso romance “O Deserto dos Tártaros”, uma crise que é, sobretudo, uma crise de civilização. Ou talvez decifrar o segredo dos labirintos no “Jardim dos caminhos que se bifurcam” de Jorge Luís Borges. 
A poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner, minha querida amiga, escreveu três versos em que que diz quase tudo sobre a arte da poesia, que é a arte de perguntar e nomear: “Ia e vinha/ E a cada coisa perguntava/Que nome tinha.” 
Eu leio e releio muitas vezes o grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade. Olhando o Mundo actual, apetece dizer com ele: “Tinha uma pedra no meio do caminho/ No meio do caminho tinha uma pedra/ Tinha uma pedra no meio do caminho”. 
Que podemos nós fazer em tempo de indigência, como perguntava Hölderlin? O que podemos fazer é o que fazia o chaman das sociedades primitivas: repetir ritmicamente palavras mágicas, esconjurar a crise, reabilitar a poesia e a vida, tirar a pedra do meio do caminho. 
A minha idade vai avançada. Tenho por vezes a sensação de ter vivido várias vidas numa só vida e de ter sido várias pessoas na mesma pessoa. Conheci os momentos extremos: guerra, prisão política, exílio. Mas também tive o privilégio de alegrias incomparáveis, como a vitória da revolução dos cravos e a reconquista da liberdade. Costumo dizer que a minha vida foi intensa, densa e tensa. Talvez por isso os meus romances tenham um cunho autobiográfico. Não posso dizer que tenha sido injustiçado. Recebi os principais prémios literários da língua portuguesa. A República concedeu-me as mais altas condecorações. Mas de todos os prémios o mais importante foi o reconhecimento e carinho dos meus leitores. 
Uma palavra especial para o empenho com que a Professora Sandra Bagno se tem dedicado, nesta Universidade, ao ensino de língua portuguesa e à Cátedra a que generosamente atribuíram o meu nome. Um agradecimento a todos os professores e estudiosos, alguns aqui presentes, que têm contribuído para a divulgação da minha obra e da de outros autores de língua portuguesa. O meu sentido reconhecimento ao Embaixador de Portugal, Doutor Francisco Ribeiro Telles, e ao Presidente do Instituto Camões, Embaixador Luís Faro Ramos, cuja presença confere a este acto um significado que me honra e reconforta. 
Fui e sou, acima de tudo, um escritor e poeta cidadão. Este é para mim um momento único. Nenhuma honra se compara ao Doutoramento Honoris Causa em Línguas e Literaturas Europeias e Americanas que hoje me é concedido. Humildemente e com grande emoção agradeço ao Magnífico Reitor o privilégio de ver o meu nome figurar ao lado dos ilustres personagens que receberam esta distinção da Universidade de Pádua fundada em 1222 com a mais bela das divisas: “LIBERTAS”, Liberdade. 
Manuel Alegre Pádua 22 de Novembro de 2017

sábado, 25 de novembro de 2017

MEU DISCURSO NO PORTO NA RECEPÇÃO DO GRANDE PRÉMIO CIÊNCIA VIVA

O vídeo está aqui:

Muito e muito obrigado. Estou muito feliz com o Grande Prémio Ciência Viva que a Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica me atribuiu. Agradeço ao Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e meu amigo Manuel Heitor a presença aqui.  Não é só o Infarmed que vem para o Porto, o ministro também vem...Agradeço na pessoa da Rosalia Vargas à Ciência Viva e ao Montepio Geral, e agradeço a todos os que me honram hoje com a sua aconchegante presença, e também aos muitos colegas e amigos que não podem cá estar hoje e que me endereçaram felicitações. Agradeço aos meus colaboradores ao longo dos anos, aqui tão bem representados pelo João Paiva, pela Regina Gouveia e pelo David Marçal. Agradeço à minha família, em particular à minha mulher.

Este prémio é um estímulo para prosseguir a vida que escolhi nas áreas da educação e investigação da ciência e da difusão da cultura científica. A ciência cedo me seduziu no percurso escolar e tudo tenho feito e tudo continuarei a fazer para mostrar como a ciência é uma senhora extraordinariamente atraente. E quanto mais próxima mais atraente é. Atraiu-me a mim e pode atrair mais gente. A ciência baseia-se na curiosidade, que todos temos, e no espírito crítico, que todos devíamos ter. A comunicação da ciência consiste em avivar a curiosidade e alimentar o espírito crítico. São estas duas atitudes que a Ciência Viva, uma ideia desse notabilíssimo  português que foi José Mariano Gago, tem desde que foi fundado procurado fomentar. Na Universidade de Coimbra fundei com a sua ajuda um Centro Ciência Viva, que tem o nome de Rómulo em homenagem a Rómulo de Carvalho, o professor de física e química, historiador, divulgador de ciência e poeta que hoje, se estivesse vivo, comemoraria 111 anos. Num poema de António Gedeão intitulado “Poema do Alquimista” [(um dos “Poemas Póstumos”, uma vez que Rómulo resolveu a certa altura ressuscitar António Gedeão depois de o ter deixado morrer)] ele diz, depois de elencar tudo aquilo que o alquimista de Duesseldorf queria, a pedra filosofal, o elixir da longa juventude e outras coisas que tais:

“Eu não sou o alquimista de Duesseldorf!
Eu não quero tudo.
Eu quero apenas,
Apenas transmutar esta chatice em flores.”

 [Tem para mim um significado especial o facto de o prémio ser atribuído num outro centro Ciência Viva, o Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, uma universidade onde tenho bons amigos. E, dentro da Universidade, o prémio é entregue na casa que foi da grande poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen. A Ciência Viva procura disseminar ciência, derrubando as falsas barreiras que subsistem entre as ciências e as humanidades, entre a cultura científica e a cultura artística. Numa entrevista ao Público, publicada no dia em que completou 90 anos, pouco antes de falecer, Rómulo de Carvalho afirmou que "Humanidades e ciência é tudo a mesma coisa pois são, apenas, maneiras de procurar conhecer na sociedade e na Natureza o que é que se passa". ]

O Prémio agora atribuído reforça o meu ânimo para continuar nessa tarefa, que partilho com muitos amigos da ciência, de ligar a ciência com a sociedade.  Citando Rómulo: de “Transmutar esta chatice em flores.” A ciência está ou deve estar espalhada pela sociedade. È de todos e, por isso, deve ser dada a todos. Gostava de poder continua a ser uma espécie de almocreve, uma expressão que ouvi a Paulo Quintela quando recebeu um prémio na Biblioteca Joanina. Gostaria de levar a ciência a todos tal como um almocreve leva a sua mercadoria nos alforges por montes e vales. Se o que gosto de fazer ainda por cima é premiado, tanto melhor. Conforme afirmou o presidente americano Theodore Roosevelt no início do século XX (não estavam decerto à espera que citasse Trump!) disse um dia “Far and away the best prize that life offers is the chance to work hard at work worth doing.”  Lembro que Roosevelt além de político foi também explorador e naturalista.

Sinto-me “aos ombros de gigantes” daqueles que antes de mim receberam o prémio: Guilherme Valente, na 1.ª edição do prémio), Galopim de Carvalho, Jorge Paiva, Manuel Paiva e Manuel Sobrinho Simões. Estou certo que não me levam a mal que destaque por ser o primeiro – e já agora foi também o primeiro e até agora único não cientista a receber o prémio – o meu amigo Guilherme Valente, que fez questão de aqui estar comigo e connosco. Ele, tem sido, como disse no meu mais recente livro que escrevi com David Marçal (“A Ciência e os seus Inimigos”), um “campeão da democracia e da cultura científica”, por saber que a democracia e cultura científica são ou pelo menos devem ser íntimas. Lembro-me, porque estava no Pavilhão do Conhecimento, no dia 24 de Novembro de 2012, do José Mariano Gago, presente de forma muito recatada na plateia, deu um abraço apertado e sentido ao Guilherme. Era um abraço não só dele mas de nós todos a um editor valente. Hoje fala-se muito de “Ciência Aberta” da Gradiva – o governo até tem esse nome num programa que eu apoio inteiramente-, mas foi o Guilherme que entre nós, sob a forma de livro, abriu a “Ciência Aberta” em 1982, 30 anos antes do seu prémio. Para mim é um grande orgulho poder continuar a editar a colecção que ele iniciou e me legou no número 200, intitulado “Ciência e Liberdade”. Sim, ciência é liberdade, tal como poesia é liberdade. Com os livros tornamo-nos mais livres. Afirmou Sophia do modo sábio que era seu timbre (ou ela não se chamasse Sophia), escreveu um poema em 1977, pouco depois da Revolução de Abril, no livro “O Nome das Coisas”, que se intitula “Liberdade”:

“O poema é
A liberdade

[Um poema não se programa
Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba —
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos
.”]

Para finalizar quero deixar uma palavra às minhas companheiras de prémio, todas elas mulheres. Os prémios deste ano foram recebidos por Isabel Martins, professora da Universidade de Aveiro que dedicou toda a sua vida à didáctica das ciências, e para as jornalistas Teresa Firmino e Filomena Naves, minhas amigas, que, nos seus jornais e nos seus livros, têm realizado um trabalho extraordinário de difusão de ciência. Têm, pegando de novo nas palavras de Rómulo, “transmutado chatice em flores”. A comunicação da ciência faz-se na escola, essa extraordinária invenção que a humanidade criou para assegurar o seu futuro, mas faz-se também e nos tempos de hoje cada vez mais através dos meios de comunicação social. A escola é essencial. Mas os jornalistas são intermediários insubstituíveis numa comunidade que quer ser livre. Eles ajudam-nos a manter o nosso irrenunciável direito e propósito de liberdade.

 Este Prémio Ciência Viva só me indica um caminho e um compromisso, que tomo aqui publicamente: mais ciência, mais ciência viva, mais liberdade.

 [Os excertos entre [ ] foram omitidos por uma questão de brevidade]

A Bela não deu consentimento, estava adormecida!

Texto na sequência de outros já publicados neste blogue, por exemplo aqui e aqui.

À semelhança do que fez, no passado ano, uma mãe portuguesa, uma mãe inglesa protestou, neste ano, pelo facto de a escola do seu filho prever a leitura de um certo texto a crianças muito pequenas, de seis anos.

Imagem retirada daqui
O texto agora em causa? A Bela Adormecida. 

A razão que apresenta é, no essencial, a seguinte: o conto promove uma mensagem sexual inapropriada, pois a Bela, indefesa, não deu consentimento ao Príncipe para ser beijada. Logo, as crianças ficarão com a ideia de que um homem pode beijar uma mulher enquanto esta dorme e ficar impune. 

A senhora percebeu isto quando reflectiu sobre a recente campanha "Me Too" e escreveu que enquanto a escola passar estas mensagens subliminares nada mudará no comportamento abusivo que está mais do que arreigado na sociedade.

Deve então o texto ser retirado do currículo? Não, pelo contrário. Deve ser explorado com crianças mais velhas e isto com dois propósitos: desconstruir a mensagem, que é intolerável na nossa cultura, e levar os alunos a perceber como se sentiriam se fossem a princesa. 

Mais informações sobre mais este avanço do "politicamente correcto" aqui e aqui.

A IGREJA E CIÊNCIA


Meu capítulo no livro "Portugal Católico" que acaba de aparecer no Círculo de Leitores:

Portugal nasceu na Idade Média, num caldo de cultura católico. Uma das maiores criações da Idade Média - a Universidade – teve a Igreja na sua génese. A Universidade portuguesa foi fundada em 1 de Março de 1290, com a assinatura pelo rei D. Dinis do documento Scientia thesaurus mirabilis, que foi confirmado por bula do papa Nicolau IV. A universidade passou de Lisboa para Coimbra em 1308, tendo alternado entre as duas cidades até, em 1537, ter sido transferida definitivamente para Coimbra, por ordem de D. João III. A Universidade de Coimbra é a mais antiga universidade nacional e uma das mais antigas do mundo: é a 10.ª mais antiga das escolas em funcionamento ininterrupto. Tinha sido um grupo de clérigos que tinha solicitado ao papa em 1288 a criação de um Studium generali. Desde a sua fundação até à instauração da República, em 1010, foi íntima a relação entre a universidade e a Igreja, uma relação de que hoje é símbolo a celebração do dia da Padroeira, a Imaculada Conceição. A Universidade Católica Portuguesa, que surgiu em 1967, inclui estudos e investigação em Ciências da Vida e da saúde.

O cientista português mais destacado dos tempos medievais foi Pedro Hispano (ca. 1215- 1277) que, sob o nome de João XXI, foi papa durante alguns meses, até à sua morte inesperada no palácio de Viterbo. Pedro Hispano, o único papa português, estudou na Universidade de Paris, onde teve como mestre S. Alberto Magno e como condiscípulos S. Tomás de Aquino e S. Boaventura. Embora persistam dúvidas sobre a autoria dos numerosos manuscritos que lhe são atribuídos [1], era decerto profundo conhecedor da filosofia e da medicina coevas. As obras mais relevantes que lhe são atribuídas são Summulae Logica, tratado de lógica aristotélica, e Thesaurus pauperum, um tratado médico.

A ciência em Portugal conheceu o seu período aúreo no tempo dos Descobrimentos, nos séculos XV e XVI, quando os portugueses revelaram novas terras, novas espécies, novas gentes e novas culturas. Exemplo dessas novidades foi o rinoceronte oferecido ao papa pelo rei D. Manuel I em 1515. Se os Descobrimentos se deveram a um complexo de razões (político-económicas e religiosas) não há dúvida de que a curiosidade – a mola propulsora da ciência – acompanhou sempre os navegadores que alcançaram paragens remotas, de África, América e Ásia. A frase de um deles - a “experiência é a madre das coisas, por ela sabemos radicalmente a verdade” - resume a atitude dos lusitanos que antecipou a Revolução Científica. Aquele que foi talvez o maior cientista nacional de sempre, o matemático Pedro Nunes, afirmou nessa altura que as viagens marítimas não se fizeram ao acaso, mas sim com ciência. Nunes, professor na Universidade de Coimbra, foi um cristão-novo num tempo dominado pela Inquisição, estabelecida em Portugal em 1536. O ocultamento da sua condição permitiu que não fosse incomodado. Mas o mesmo já não aconteceu com o seu colega Garcia da Orta, médico que partiu para a Índia em 1534, autor de Colóquio dos Simples, uma obra pioneira sobre plantas orientais, que foi alvo de um auto-de-fé post-mortem, em Goa, por ter entretanto sido descoberta a sua origem judaica. A Inquisição não ajudou ao desenvolvimento da ciência. Só para dar um exemplo, Amato Lusitano, notável médico contemporâneo de Nunes e Orta, judeu como eles, teve de se exilar: andou pelos Países Baixos, Itália (onde assistiu o papa Júlio III), Croácia e Grécia. O facto de a Igreja estar então muito próxima da ciência é ilustrado pelo facto de a bula do papa Gregório XIII que promulgou em 1582 um novo calendário, tão bem fundado astronomicamente que ainda hoje vigora, ter sido imediatamente seguida em Portugal, Espanha, Itália e Polónia. Esse calendário tinha sido preparado por uma comissão de sábios, encabeçada pelo jesuíta alemão P. Christophoro Clavius (1538-1612), que estudou em Coimbra antes de fundar a famosa escola matemática do Colégio Romano (Clavius não chegou a ser aluno de Nunes, mas ajudou à difusão das suas obras).

Os Jesuítas, surgidos em 1534, usaram Portugal como “rampa de lançamento” para a evangelização que dinamizaram em paragens remotas [3]. No grupo inicial de S. Inácio de Loiola estavam o basco S. Francisco Xavier, que andou pela Índia, Japão e China, e o português Simão Rodrigues, que ajudou a fundar dois dos mais antigos colégios jesuítas do mundo, o Colégio de Jesus, em Coimbra, e o Colégio de Santo Antão, em Lisboa, em 1542. Os Conimbricenses, comentários à filosofia de Aristóteles, publicados em Coimbra entre 1592 e 1606, ganharam justa fama na rede mundial dos Jesuítas. Uma das escolas científicas de maior nomeada dessa época foi a Aula da Esfera, que funcionou em Lisboa entre 1590 e 1759 e onde pontificaram discípulos de Clavius [2]. Talvez o papel mais importante desempenhado por Portugal na história mundial da ciência tenha sido protagonizado por missionários jesuítas, portugueses ou estrangeiros que passavam por Portugal, ao concretizar o diálogo de civilizações: por exemplo, os italianos P. Christoforo Borri (1583–1632), que rumou ao Vietname, e P. Matteo Ricci (1552-1610), que rumou à China, onde se tornou figura maior da evangelização. Ricci cultivou um encontro intercultural através da ciência, tendo traduzido para mandarim os Elementos de Euclides. Os telescópios chegaram à China e ao Japão graças aos missionários, escassos anos após o seu uso por Galileu em 1609. E o primeiro hospital ocidental 1556 no Japão foi fundado pelo jesuíta P. Luís de Almeida (1525-1583). Portanto, a Revolução Científica chegou ao Oriente vinda de Lisboa pela mão da Igreja. Nessa “primeira globalização” a recolha de dados científicos por Jesuítas e outros missionários representou decerto um enorme avanço no conhecimento do mundo.

Em 1709, o brasileiro P. Bartolomeu de Gusmão (1685-1724), estudante da Universidade de Coimbra, pediu ao rei D. João V os direitos de utilização de um novo “instrumento para voar”, tendo demonstrado perante a Corte um pequeno balão de ar quente. A essa experiência, pioneira da aviação, assistiu o núncio em Lisboa, que viria a tornar-se papa sob o nome de Inocêncio XIII. O monarca, que era amigo da ciência, chamou para dirigir o observatório astronómico que criou no Paço o jesuíta italiano P. João Baptista Carbone (1694-1750). A acção dos Jesuítas prosseguiu no século XVIII em Lisboa, Coimbra e Évora, sendo o autor mais moderno o P. Inácio Monteiro (1724-1812), que haveria de se exilar em Itália com a expulsão da Ordem pelo Marquês de Pombal em 1759. No período joanino, ganhou proeminência a Ordem dos Oratorianos, donde emergiram alguns dos maiores cientistas lusos do século XVIII, que tal, como os Jesuítas, foram perseguidos: merecem destaque o P. João Chevalier (1722-1801), que chegou a presidir à Real Academia de Ciências de Bruxelas, e o P. Teodoro de Almeida (1722-1804), que encontrou acolhimento em Espanha e França, onde preparou alguns dos dez volumes da sua Recreação Philosophica, a primeiro obra de divulgação científica em português. No Colégio dos Oratorianos em Lisboa existia um gabinete onde se faziam demonstrações da ciência newtoniana. A expulsão dos Jesuítas, ordenada pelo Marquês poucos anos após a sua chegada ao poder em 1755, o ano do grande terramoto, pôs fim, com a ajuda de uma poderosa máquina de propaganda, a uma meritória acção em prol da ciência tanto na metrópole como no Ultramar. A Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, realizada em 1772, fez-se contra o jesuitismo, apesar de Pombal ter tido vários clérigos como conselheiros, incluindo um ex-jesuíta  - o matemático P. José Monteiro da Rocha (1734-1819). É hoje, em geral, reconhecido que a educação e a ciência nacionais foram muito afectadas pelo desmantelamento da vasta rede de colégios jesuítas.

Em 1779, já na era pós-pombalina, foi criada a Academia das Ciências de Lisboa. O seu primeiro secretário foi o Abade José Correia da Serra (1750-1823), naturalista com um percurso internacional. No século XIX, em Portugal tal como no mundo, assistiu-se a um processo crescente de laicização, influenciado pelo positivismo e pelo darwinismo, tendo surgido polémicas entre religião e ciência. A mais famosa ocorreu entre o médico republicano Miguel Bombarda e o jesuíta P. Manuel Fernandes Santana (1864-1910) (a Companhia de Jesus tinha sido restaurada em 1814) [4]. A I República perseguiu os Jesuítas, que continuavam a distinguir-se na ciência. Um dos cientistas portugueses de maior renome do século XX, António Egas Moniz (1874-1955), prémio Nobel da Medicina e Fisiologia em 1949, estudou no colégio jesuíta de S. Fiel e ajudou, como político, ao restabelecimento das relações entre Portugal e a Santa Sé. Não era crente, mas houve nessa época como em todas as épocas cientistas crentes como, por exemplo, António Ferreira da Silva, professor de Química da Universidade do Porto, autor de Sciência e Crenças [5]. Merecem referência no virar do século dois padres do Norte ligados à ciência: um inventor, o P. Manuel António Gomes (1868-1933), o Padre Himalaia, e um divulgador da ciência, o P. Amadeu de Vasconcelos (1878-1952).

O P. Manuel Gonçalves Cerejeira, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra na I República que haveria de ser cardeal patriarca de Lisboa, escreveu em 1924 o livro A Igreja e o Pensamento Contemporâneo [6], uma análise da ciência que suscitou polémica. O Estado Novo, regime que vigorou entre 1933 e 1974, não foi muito favorável à ciência. Só após a revolução de 1974 esta cresceu em Portugal de uma forma notória. Entre os sacerdotes que foram cientistas na contemporaneidade são de realçar o jesuíta P. Luís Archer (1926-2011), introdutor da moderna genética em Portugal e director da Brotéria [7], revista fundada em 1902 que foi difusora de ciência, e o P. João Resina (1930-2010), professor de Física no Instituto Superior Técnico em Lisboa.

Em 2010 Bento XVI reuniu em Lisboa com cultivadores das ciências e das artes, num gesto que denota a coexistência pacífica entre religião e ciência. Prosseguindo propósitos distintos, e reconhecidas hoje como anacrónicas as disputas entre ciência e religião, a ciência e a Igreja convivem hoje em Portugal em interacção e diálogo. Como afirmou D. Manuel Clemente, hoje cardeal patriarca de Lisboa, em 2009 na Universidade do Porto [8]:

“Como importante será compreendermos como religião e ciência se tornam complementares e interactivas na melhor definição recíproca. Como geralmente acontece, o crescimento delas realiza-se como autêntica ‘crise de crescimento’: a afirmação da mentalidade científica exigiu a redefinição da esfera religiosa; e a persistência da religião, em sucessivas decantações, situou a ciência no seu campo específico, tanto em termos de método e objecto como em lúcida auto-limitação, para poder prosseguir com segurança e acerto.”

Referências:

[1] José Meirinhos, Bibliotheca Manuscrita Petri Hispani: os manuscritos das obras atribuídas a Pedro Hispano, Fundação Gulbenkian, 2011.
[2] José Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, Jesuítas: Construtores da Globalização, CTT, 2016.
[3] Henrique Leitão (coord.), Sphaera Mundi: A Ciência na Aula da Esfera, Biblioteca Nacional de Portugal, 2008.
[4] Manuel Fernandes Santana, O materialismo em face da ciência a proposito da consciência e livre arbítrio do sr. prof. Miguel Bombarda, 2 vols., Typographia da Casa Catholica, 1899.
 [5] António Ferreira da Silva, Sciência e Crenças, Cruz e Cª, 1914.
[6] Manuel Gonçalves Cerejeira, A Igreja e o Pensamento Contemporâneo, Coimbra Editora, 1924. 2.ª ed. 1928.
[7] Hermínio Rico e José Eduardo Franco (coords.), Fé e Ciência Cultura: Brotéria – 100 Anos, Gradiva, 2003.
[8] Manuel Clemente, Porquê e para quê? Pensar com esperança o Portugal de hoje, Assírio e Alvim, 2010.