domingo, 19 de novembro de 2017

A “nobre e exigente tarefa de ensinar”

César Rodrigues, investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra, escreveu, ao longo de um razoável período de tempo, crónicas para um jornal regional. Os temas, ainda que diversos, centravam-se sobretudo nas suas áreas de eleição: educação e desporto.

Seleccionadas algumas dessas crónicas, pediu, para cada uma, comentário a alguém ligado ao assunto. O resultado foi um livro original, que acaba de ser publicado pela Lápis de Memórias, de Coimbra, com um título não menos original: 5295 – Política Sociedade Comunicação Educação Desporto.

César Rodrigues pediu-me comentário à crónica Abaixo os Professores? Não, são precisos!. Além de ter sido um gosto colaborar na obra, tive, mais uma vez, o pretexto de escrever o que é óbvio (mas que é preciso dizer-se): os professores são precisos.


          A “nobre e exigente tarefa de ensinar”

                   Eu gosto muito de ouvir.
                   Cantar a quem aprendeu
                   Se houvera quem me ensinara, 
                   Quem aprendia era eu!”
                   (Rama, cantiga popular alentejana) 
O texto de César Rodrigues intitulado “Abaixo os Professores? Não, são precisos!”, com o “i” e a “vírgula” em destaque, dá expressão a uma questão que, sendo antiquíssima, tem adquirido na contemporaneidade um redobrado fulgor: para que alguém aprenda o que a escola tem para ensinar é preciso ou não que haja quem o ensine? 
A resposta que encontramos nos discursos, mais claros ou mais nebulosos, das reformulações curriculares em curso por todo o mundo ocidental, Portugal incluído, tende a ser “não”: os professores não são precisos, pelo menos para desempenharem funções de ensino, sobretudo numa “relação pedagógica”, que implica o seu encontro com alunos em determinadas espaços-tempos, para, directamente, olhos nos olhos, os levarem a aprender o que, por não ser ensinado noutro contexto, é incumbência da escola. 
De facto, retoma-se a velha ideia, como se fosse acabada de inventar, de que o aluno é capaz de fazer essa aprendizagem sozinho ou com os seus pares e, mais, tem a vontade necessária para tal. Acresce que agora tem à sua disposição “toda” a informação de que precisa para tanto, e de modo imediato e agradável. Basta-lhe “clicar”. Expressões como auto-aprendizagem, auto-orientação, aprendizagem colaborativa, pesquisa autónoma, trabalho de projecto, interesses e necessidades dos alunos, novas tecnologias, estão entre as mais usadas num vocabulário que dá forma a “uma pedagogia em que o professor é totalmente eliminado, pelo menos na sua função tradicional de «mestre». 
É-lhe atribuído um novo papel (…) ainda mal definido”. Esta citação, de M. Lobrot, consta numa obra de 1966, mas, passado meio século, nada nela é estranho. Há que reconhecer alguma verdade no parágrafo acima: toda a gente, criança ou adulto, sem ou com recurso a tecnologias, é capaz de aprender sozinha ou com outros que se encontram no mesmo patamar. 
O que, em geral, escapa neste raciocínio é que o conhecimento escolar – por princípio, conhecimento “poderoso”, assim designado por M. Young (2014) por permitir a construção da inteligência –, dada a sua amplitude e sofisticação, resultado do progresso da humanidade, não está ao alcance do aluno se não houver alguém que, nas palavras de C. Maia (2011), tenha sido educado e, por isso mesmo, o possa educar. 
Precisa, pois, como diz G. Steiner (2014), de um “carteiro” que lhe entregue a carta que não sabe ainda ler, o ajude a lê-la e a responder-lhe, até aprender a fazê-lo. A suposta capacidade do aluno para “construir o seu próprio conhecimento” assenta, pois, em várias falácias, uma das quais é a de que a sua acção autónoma precede a aprendizagem e conduz a ela, isto quando é ela que decorre da aprendizagem, por sua vez potenciada pelo ensino. 
Afirmar a indispensabilidade da acção do professor não anula a acção do aluno (Damião, 2010), que, em resultado do trabalho didáctico, integra e torna significativo o novo conhecimento na sua rede de conhecimentos. Visto que as crianças e os jovens não se educam sozinhos nem uns aos outros, sobretudo se estão no mesmo nível em matéria de educação, como têm destacado múltiplos autores (por exemplo, J. Dewey, 1916; H. Arendt, 1957; Quintana Cabanas, 2005; Boavida, 2009), e que as aprendizagens são impossíveis de conseguir por “imersão”, não podem os sistemas educativos manter uma “narrativa” que sugira a dispensa ou secundarização dos seus professores nas tarefas de ensino que, de resto, são as que lhe conferem identidade. 
Por seu lado, os professores precisam de reassumir, por inteiro, essas tarefas com toda a responsabilidade que elas acarretam, posicionando-se contra a ingerência crescente das mais diversas entidades (entre as quais se destacam as empresariais, políticas e académicas), na sua esfera, procurando direccionar o seu pensamento em função de interesses marginais àqueles que devem conduzir a educação escolar (Martins, 2016), impondo, sob o disfarce de apoio ou ajuda, metodologias, recursos materiais, ou outros produtos-prontos-a-usar-de-modo-uniforme, concebidos por quem não tem saber nem legitimidade para tanto. 
É patenteado em letra de lei que aos professores cabe desempenhar a “nobre e exigente tarefa de ensinar” (Decreto-Lei n.º 79/2014, de 14 de Maio). “Nobre” é a palavra certa para qualificar o que faz quem ajuda a formar, em cada aluno, a consciência humana.

Referências:

* Arendt, H. (1957/2006). A crise na educação. In H. Arendt. A condição humana (pp.183-206). Lisboa: Relógio D’Água.

* Boavida, J. (2009). El deber de educar como condición de libertad. In J. A. Ibáñez-Martín (Ed.). Educación, conocimiento y justicia (pp.129-144). Madrid: Editorial Dykindon.

* Damião, M. H. (2010). A (in)dispensabilidade de ensinar. In F. Savater; R. Moreno Castillo; N. Crato & M.H. Damião. O valor de educar, o valor de instruir (pp. 76-94). Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos/Porto Editora.

* Dewey, J. (1916/1959). Democracia e educação: Introdução à filosofia da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional.

* Galian, C. & Louzano, P. (2014). Michael Young e o campo do currículo: da ênfase no “conhecimento dos poderosos” à defesa do “conhecimento poderoso”. Educação e Pesquisa, 40 (4), 1109-1124.

* Lobrot, M. (1966). A pedagogia institucional. Lisboa: Iniciativas editora.

* Maia, C. F. (2011). Poderosos com causa: ensinar, aprender, educar. Revista Portuguesa de Pedagogia, Extra-série, 295-305.

* Martins, E. (2016). Todos pela educação. Como os empresários estão determinando a política educacional no Brasil. Rio de Janeiro: Lamparina.

* Quintana Cabanas, J. M. (2005). «Crítica pedagógica de los sistemas educativos occidentales». Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, 13 (46), 55-66.

* Steiner, G. (2014). George Steiner/António Lobo Antunes. Ler (Reportagem com tradução do francês de Joana Jacinto), 52.

 Maria Helena Damião

1 comentário:

Anónimo disse...

Em Portugal, se até o próprio Marquês de Pombal, que chegou a ter algum poder, não teve êxito na reforma do ensino médio, não são de esperar grandes propostas, vindas de políticos fracos, no sentido de alteração do estatuto e papel dos professores no contexto escolar atual. Antes do 25 de Abril, havia escolas industriais que, não fechando as portas a cursos superiores, eram frequentadas sobretudo por alunos que queriam ser profissionais qualificados do comércio e da indústria, e havia também liceus para quem queria ir para Universidade. Após o 25 de Abril, os revolucionários criaram o ensino unificado que juntou as disciplinas e os professores das duas vias escolares anteriores, mantendo assim bons empregos para os que já estavam dentro do sistema, e abrindo as portas de par em par para retornados, militares desmobilizados, licenciados das “universidades privadas”, que despontaram como cogumelos na terra húmida, e toda a sorte de gente que era preciso arrumar em bons lugares. Depois ao corpo docente do ensino secundário ainda se acrescentaram os apêndices constituídos pelos professores primários e educadores de infância que tinham sido cruelmente oprimidos pela ditadura de Salazar e Caetano. O Sol quando nasce é para todos – os doutores não são mais do que os outros ou, ainda melhor, agora somos todos doutores!
Entrar neste caldo de cultura, onde atualmente o Estado corre o risco de ir à falência por não ter dinheiro para pagar a tantos professores, educadores e equivalentes, para vir falar das funções inerentes ao professor, não é fácil. Um educador de infância é um professor? Um professor que estudou numa Universidade para saber ensinar trigonometria pode ter a mesma profissão de um indivíduo que sabe as histórias do capuchinho vermelho e do gato das botas? Nos dias que correm, as pessoas habitualmente não usam chapéus, mas professores há muitos!
Os currículos devem adaptar-se às sociedades e aos tempos. Há muitas e muitas matérias, facilmente acessíveis na internet, que já não faz sentido serem ensinadas por professores nas escolas. Tem de se diminuir o número de disciplinas e de professores. Mas, matérias difíceis de entender pela maioria dos alunos, como filosofia, física, química, biologia e poesia, por exemplo deveriam continuar a ser lecionadas por professores reais. O Inglês também não pode ser esquecido porque ganhou o estatuto de língua universal. Se física e química estão unidas porque não efetuar fusões semelhantes, entre outras disciplinas, evitando assim a repetição de conteúdos lecionados.
O mal é que para fazer tudo isto é preciso vontade e poder. Portugal é pequeno demais para conseguir ter uma política educativa própria e independente!

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