quarta-feira, 1 de novembro de 2017

DE CONFÚCIO A XI JINPING

Minha crónica no Público de hoje (na foto a Cidade Proibida):


O túmulo de Confúcio situa-se num bosque na sua terra natal, Qufu, na província de Shandong, não muito longe da residência e do templo do grande sábio chinês dos séculos VI e V a.C.. Qufu é lugar de peregrinação para milhares e milhares de chineses. Confúcio, nome ocidental criado pelos jesuítas no século XVI que significa mestre Kong, é a chave para entrar na vida e cultura chinesas, uma vez que a filosofia confucionista preside à moral pessoal e social. Por saber que as virtudes que ele apregoou são universais também eu me inclinei diante da sua pedra tumular. Lê-se n´Os Analectos, a sua colecção de aforismos decantados ao longo de séculos (há uma edição recente em português, distribuída pelo Público): “O Mestre disse: O Homem Nobre ao alimentar-se não procura saciar-se. Não exige conforto, ao morar. É laborioso no seu trabaho. É cuidadoso ao expressar-se. Aproxima-se dos homens que seguem o Caminho para corrigir os seus próprios defeitos. Pode-se dizer que ele, de facto, gosta de Estudar.” O confucionismo é um humanismo, uma filosofia centrada no ser humano e não em metafísica. Os seus ensinamentos passaram de geração em geração, através de uma cadeia de discípulos. Marcas confucionistas, como a frugalidade, a modéstia, o trabalho, a contenção, a ajuda ao outro e o estudo impregnam a milenar cultura chinesa.

O confucionismo só se tornou ideologia dominante na dinastia Han, no século II a.C.. Para ir de Qufu ao centro do Império do Meio, em Pequim,  tomei primeiro um autocarro que, por uma moderna auto-estrada, demorou pouco mais do que uma hora até Jinan, a capital de Shandong, cidade de sete milhões de habitantes (que, ainda assim, não passa da décima da China em população!). Apanhei depois um TGV, que atravessou a mais de 300 km/h uma paisagem plana onde edifícios altos crescem como cogumelos. A estação de Jinan Oeste parece um terminal de aeroporto, com segurança de raios X e tudo. Chegado à estação sul de Pequim, urbe de 22 milhões de habitantes, fiquei a um pulo da Cidade Proibida. O trânsito, de automóveis de boa cilindrada de um lado e veículos de duas rodas, muitos deles eléctricos, do outro, era intenso em Agosto como sempre é.

A Cidade Proibida, que remonta ao século XV, é assim chamada pela restrição do acesso ao Imperador. Nesse símbolo da China habitaram 24 imperadores das dinastias Ming e Qing, até o último abdicar em 1912, como mostra o filme de Bertolucci. Pela sua dimensão o complexo palaciano, que terá 9999 divisões (9 significa satisfação), deixa na sombra as residências reais europeias. A China é grande, pelo que grande tinha de ser o coração da sua capital. Tal como na terra de Confúcio, visitei em Pequim Património Mundial da Humanidade, no seio de um fluxo de turistas interminável. O Imperador era o Filho do Céu, um intermediário entre os céus e terra, e vértice da pirâmide de poder num enorme e variado território. Apesar da imponência da arquitectura chinesa, o espaço que mais me seduziu por condensar o imaginário oriental foi o pequeno jardim imperial, por onde os visitantes passam antes de saírem pelo Portão da Grandeza Divina (os nomes chineses são deliciosos: o trono imperial, por exemplo, situa-se no Palácio da Pureza Celeste). Imaginei o imperador a passear aqui, descansando dos seus afazeres, que incluíam as suas relações com a esposa e as múltiplas consortes, todas elas assistidas por numerosos eunucos. E veio ao meu espírito a proximidade ao Imperador, nos séculos XVI a XVIII, dos jesuítas, entre os quais sobressaiu o italiano Matteo Ricci. No Observatório Astronómico de Pequim trabalhou o jesuíta português Tomás Pereira, introdutor da música ocidental na China.

Os dirigentes do Partido Comunista Chinês não costumam visitar a Cidade Proibida, guardando uma distância política relativamente ao palácio imperial. Mas Mao Tsé-Tung proclamou a República Popular da China em 1949 na praça de Tiananmen, que não é longe. E os actuais líderes estão mesmo ao lado, num antigo parque da palácio, onde se ergue a sede do Partido. O presidente Xi Jinping chefia um país cujo crescimento económico é impressionante (o PIB aumentou sete por cento em 2016), um país capitalista onde abundam os MacDonald’s e os Starbucks (mas não há acesso ao Google e ao Facebook) e que deixou há muito de estar isolado. Em 2013 Xi lançou a Nova Rota da Seda, um gigantesco plano de infra-estruturas  estendendo-se do mar da China à Europa, que reforçará a globalização. Para ver o novo poderio chinês no mundo basta notar que o Forum dessa iniciativa realizado em Pequim em Maio passado reuniu 29 chefes de Estado e de governo, além do secretário-geral da ONU. Não admira que o presidente tenha, no recente Congresso do Partido Comunista, subido ao patamar de Mao, ao anunciar uma “nova era”, com a China no “centro do palco mundial.” Tal como na época imperial, Os Analectos continuam oportunos: “O Mestre disse: Usar a virtude para governar um país pode ser comparado com a Estrela do Norte, que ocupa o seu lugar enquanto as outras estrelas giram ao seu redor.” A China de Xi Jinping é ainda a mesma que a de Confúcio.

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