Artigo de opinião de Guilherme Valente no Público de hoje:
“What is America to me”
A casa onde vivo, os Amigos que encontrei /
(...) os meus vizinhos brancos e negros (...). /
Todas as raças, todas as religiões (...)
O ar de liberdade /
Mas especialmente as pessoas,
isso é a América para mim.”
The house I live in, Lewis Allan (1942),
cantado por Paul Robeson e Frank
Sinatra
O pensamento e o discurso
das ciências sociais, de
endémica importação, são
frequentemente inquinados
pela ideologia. Essa marca
universitária “credibiliza”
visões políticas obscurantistas
com que converge ou
coincide. Não surpreende
por isso que manifestações
de causas sociais justas, como o combate
ao racismo, se deixem colonizar por
essa produção “académica” enviesada,
perdendo-se no seu labirinto.
O fenómeno vai-se manifestando em
intervenções surgidas na comunicação
social. Prosseguindo a reflexão sobre o
tema, faço agora algumas considerações
sobre o racismo* registando o que
considero ser um anti-racismo esclarecido e
consequente.
a) O discurso do activismo anti-racista
exerce frequentemente nos grupos
humanos mais expostos ao preconceito
referente à cor da pele um efeito perverso:
encerra-os no seu meio, discrimina-os como
deficientes inapelavelmente condenados a
um futuro igual. O paternalismo desprezível
do activismo anti-racista, assente numa
suposta superioridade intelectual e moral
e numa pseudocoragem militante, impede,
afinal, as verdadeiras vítimas de condições
discriminatórias de ultrapassarem essa
situação.
b) Na intervenção desse activismo
transparece por vezes a pulsão reptiliana
que está no cerne do próprio racismo, à
espera de circunstâncias sociais e materiais
que favoreçam a sua emergência. Para esse
“anti-racismo”, o racismo é apenas branco.
Branco é sinónimo de mau e de racista.
c) A besta racista tem de ser enfrentada
por uma visão objectiva do que é de facto
racismo, leis esclarecidas e um direito
intransigente. Mas só poderá ser erradicada
pela educação, o conhecimento, o saber
da História contada
nas suas grandezas
e misérias, a
ciência, o exemplo
ético e moral. Pelo
que conduza à
compreensão de nós
próprios e do outro,
condição para nos
reconciliarmos com
o que é irremediável
na nossa humana
natureza. É neste
registo que é
imperativo intervir.
O racista é uma
pessoa que quer
enganar-se a si
própria. Não sabe
ou não é capaz
de assumir que a
riqueza reside na
diferença de todos
os seres humanos.
Todos singulares,
como a impressão
digital de cada um.
Todos insubstituíveis. Mas único não quer
dizer superior.
O racista revela uma fragilidade
identitária que se traduz numa revolta
inconsciente contra si próprio, logo
projectada sobre o outro, próximo
ou distante, que o racista vê como
insuportável revelador (como o negativo
fotográfico) de uma inferioridade de
si próprio que a si próprio oculta.
Um complexo de inferioridade
logo transformado numa ilusão de
superioridade. A fusão de fragilidade
identitária com a apreensão ou medo
que esta determina suscita uma acossada
agressividade que pode ir ao extremo da
eliminação do outro. Outro cuja simples
existência e diferença o racista julga pô-lo
em causa. Para o racista, a diferença e a
novidade são uma ameaça.
A intolerância estigmatizadora do
extremismo político é etiologicamente
idêntica à da pulsão racista. O extremismo
político desconfia do diferente, receia a
novidade. Teme o que põe em causa as suas
“certezas”. Por isso odeia a liberdade, que
é sempre “fonte de imprevisível novidade”
(Bergson). Se a defendeu foi hipocritamente.
Usou-a para chegar ao poder e sem ética
nem moral acabar com ela. É por isso que
defende a tese filosoficamente insustentável
Definitivamente:
não
há raças. A
palavra ‘raça’
não deve
ser usada
para se dizer
que há uma
diversidade
humana
de que a moral e a ética não têm lugar
nas opções políticas. Precisamente para
legitimar todos os meios para atingir os
seus fins. Tese usada recentemente pela
extrema-esquerda para “justifi car” a recusa
de uma diferença entre Le Pen e Macron nas
eleições francesas.
O racismo não é racional. Mas é pela
razão e pelo conhecimento que pode ser
vencido.
O racismo não tem nenhum fundamento
científico, embora houvesse sempre quem
tenha tentado servir-se da ciência para
justificar a discriminação. Definitivamente:
não há raças. A palavra “raça” não deve ser
usada para se dizer que há uma diversidade
humana. Só há a espécie humana, o género
humano. Todos os homens têm o sangue
da mesma cor — mesmo se não o fosse, isso
seria moralmente irrelevante. Posso ser
mais parecido com um angolano do que
com um lisboeta na aparência física mais
próximo de mim.
Não há, aliás, nenhum grupo humano
com pele de uma só cor. Basta olhar para
os portugueses “brancos” para se verifi car
a variedade de tons de “branco”. “Somos
todos primos uns dos outros”, escreveu M.
Sobrinho Simões.
Manifestações racistas inadvertidas
ou extremas verificaram-se sempre em
todo o lado. Mas o racismo foi há muito
oficialmente proscrito e é punido na
maioria dos países. Excepto nalguns
repugnantes Estados islâmicos e africanos.
E o que deverá ser, afinal, um antiracismo
bem compreendido e eficaz? Cito
Bruckner: “Uma sabedoria de coabitação,
uma sedução da diversidade quando cada
vez mais indivíduos de todas as origens
estão lado a lado no mesmo espaço. Mas
também uma inteligência do discernimento
capaz de distinguir aquilo que tem que ver
com o vexame e o que resulta da liberdade
de expressão, das liberdades individuais.”
Portugal é de todos os portugueses. Se
fosse mais de alguns — e não é! —, seria dos
que o amam, dos que contribuem de facto,
na medida das suas possibilidades, para que
seja mais esclarecido, justo e solidário.
Guilherme Valente
*O livro de Tahar Ben Jelloun O Racismo
Explicado aos Jovens (Presença) guiou-me na
intenção de clareza deste texto.
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