Na sequência do texto recente de Eugénio Lisboa e de um texto que escrevi em 2016.
De Rerum Natura
A natureza das coisas
domingo, 24 de setembro de 2023
UM EXERCÍCIO PARA "ABRIR A MENTE"
POR FAVOR, NÃO PANTEONEM O EÇA!
MANIFESTO EM DEFESA DA LÍNGUA PORTUGUESA - por uma língua de culturas, que seja também uma LÍNGUA DE CIÊNCIA
Manifesto que assinei:
A era da globalização oferece possibilidades extraordinárias de criar uma humanidade assente na construção de uma cidadania alargada, tendo como horizonte uma vivência plena dos Direitos Humanos, na qual o respeito pela diferença e pela pluralidade das expressões linguísticas, culturais, sociais, políticas e religiosas seja uma pedra angular. O nosso tempo, ajudado pelos progressos partilhados do conhecimento, é em muitos aspetos auspicioso, mas é também marcado por sérias ameaças, designadamente por correntes hegemónicas que impõem e uniformizam, à escala global, os modos de pensar, falar, estar, crer e fazer. Todavia, a riqueza da humanidade emana da sua diversidade, sendo as diversas línguas que constituem o património o garante do futuro da espécie humana em que a variedade de expressões dos povos e culturas seja valorizada.
Considerando o espaço linguístico da língua portuguesa, que se afirmou e se consolidou nos últimos 500 anos como uma das línguas globais (é a sexta língua mais falada do mundo e a mais falada no hemisfério Sul), com o contributo de materiais lexicais provenientes das várias línguas do mundo com que interagiu, a valorização da diversidade linguística global passa pela defesa da língua portuguesa, não apenas como língua de culturas e de pensamento, mas também como língua de ciência. Porque o português sempre foi uma língua de conhecimento, podendo ser nela expresso todo o pensamento e criações humanas. Além disso, assinala-se a importância do português como língua de solidariedade e de resistência.
A valorização da língua portuguesa, ao lado das outras línguas, é hoje uma necessidade que se deve opor à uniformização de todas as dimensões da existência humana imposta pela hegemonia da língua inglesa, uma dominação que cada vez mais se afirma em âmbito global. Para além da questão histórico-cultural e dos aspetos nacionais, está em foco a salvaguarda da diversidade das expressões do ser humano por meio das suas línguas. Com efeito, a subalternização científica de uma língua significa igual subalternização de povos, culturas e identidades que nela se exprimem e comunicam. Pensar e publicar ciência em várias línguas enriquece a complexidade das expressões humanas, sendo a generalização do monolinguismo um empobrecimento simplificador. Paralelamente, propomos um maior investimento e valorização das traduções como meio de diálogo, conhecimento e aproximação entre os povos e culturas, permitindo o reconhecimento da sua diversidade. É no cruzamento de culturas que é mais fértil a criatividade humana.
Assim, vimos apelar às entidades competentes das sociedades e estados usuários da língua portuguesa nos vários continentes que tomem medidas políticas de salvaguarda e de promoção da língua portuguesa como língua de culturas e de pensamento e, sobretudo, como língua produtora de conhecimento.
Para o efeito, e para alcançar este desiderato, propomos as seguintes linhas de ação:
- Promover uma política de ciência em língua portuguesa, nomeadamente por meio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), em Portugal, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), no Brasil, e de outras agências semelhantes, que, de forma adequada, valorize, nas prioridades e na avaliação de centros de estudo e de projetos de investigação, o financiamento da produção científica de qualidade em língua portuguesa, seja de revistas, artigos, livros, atas de conferências e congressos, seja pela incorporação dessas publicações nos catálogos internacionais.
- Reconhecer e valorizar, por meio dos segmentos académico-científicos, a divulgação da produção técnico-científca veiculada em português e produzida por investigadores lusófonos. -
Validar, como indicador de internacionalização no meio acadêmico, a produção conjunta de trabalhos científcos desenvolvida por pesquisadores dos espaços lusófonos e de suas diásporas.
- Fortalecer o plurilinguismo e o pluricentrismo do português, legitimando e visibilizando produções culturais e científcas desenvolvidas e disseminadas em cada variedade do português.
- Promover políticas de divulgação de produtos culturais, designadamente artísticos, comunicados em língua portuguesa, em sua diversidade.
- Fomentar o financiamento reforçado para a tradução e publicação de obras de autores clássicos e contemporâneos, escritas de raiz em língua portuguesa, além da produção científica de relevo, desenvolvida em português. Em particular, devem ser procuradas formas de usar as mais recentes ferramentas de tradução, com o devido acompanhamento e supervisão humanas, para disponibilizar cada vez mais no espaço comum, dominado pelo inglês, o património científico e cultural expresso em língua portuguesa.
- Garantir e intensificar a digitalização reforçada de documentos escritos e outros da cultura, produzidos em língua portuguesa, que estejam no domínio público, num esforço conjunto das Bibliotecas Nacionais dos vários países da CPLP, com outras bibliotecas, reforçando assim a presença da língua portuguesa no ciberespaço. Em particular, fortalecer a disponibilização digital de livros de culura de expressão em português, que constituam o património de diversos povos que dessa língua se valem, quer obras originais de criação literária e artística, quer obras de estudo sobre elas.
- Desenvolver a Wikipédia em língua portuguesa, designadamente no que respeita a a figuras da cultura e da ciência dos países de língua oficial portuguesa.
- Suscitar a criação coletiva de um dicionário técnico-científíco em português na Internet, que se constitua como referência para a normalização dessa modalidade de linguagem em português.
- Favorecer a Lusofonia, por meio de organismos como o Instituto Camões (Portugal), o Instituto Guimarães Rosa (Brasil), a Fundação Oriente, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa e de entidades como a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), assim como universidades, instituições como o Museu Virtual da Lusofonia e o Museu da Língua Portuguesa, incluindo realidades em que o português seja língua de ensino (português como língua de herança e o português como língua adicional).
Nota: Este manifesto surgiu numa conversa entre pesquisadores e docentes universitários no âmbito do Fólio Educa 2022, na cidade de Óbidos, Portugal. Eram eles: Luísa Paolinelli, José Eduardo Franco e Regina Brito. Rapidamente, o debate acerca da necessidade e relevância deste documento, que destaca o papel e o valor do português também como língua de ciência, tomou novos entusiastas, como Carlos Fiolhais, Moisés Martins e Paulo Santos, resultando no que agora apresentamos à comunidade em geral
A SUPREMACIA QUÂNTICA: O FUTURO VEM AÍ
Resumo da minha apresentação na Conferência da Líder no Estoril:
Einstein
disse: “Eu nunca penso no futuro. Ele não tarda a chegar.” Desde 1947, quando
foi inventado o primeiro transístor, o mundo tem assistido a uma enorme
revolução, que mudou por completo as nossas vidas. Surgiram os computadores
pessoais, a Internet, os telemóveis, as redes sociais, etc. Mas ainda não vimos
nada: agora que os transístores se aproximam do tamanho atómico, já surgiu um
novo tipo de computação, dita quântica. Em vez de bits, que são zeros e
uns, usam-se qubits, bits quânticos, que são combinações de zeros e uns.
Trabalhando com estes, tudo fica mais rápido, extraordinariamente mais rápido.
O
futuro bate à porta nos laboratórios. Supremacia quântica significa a
construção de computadores quânticos que resolvam problemas que nenhum
computador convencional consiga resolver, por demorar demasiado tempo. Em 2019
a Google anunciou ter realizado a proeza, logo seguida por equipas chinesas nos
anos seguintes: só com 53 qubits um computador quântico da Google
concretizou uma tarefa em 200 segundos que levaria 10.000 anos num
supercomputador. As maiores empresas informáticas estão a apostar nessa área. O
mundo irá, portanto, continuar a mudar, designadamente com a aceleração dos
progressos na inteligência artificial. Perigos também espreitam, como a
decifração rápida dos códigos que usamos no dia-a-dia, mas a própria física
quântica fornece alternativas. Contrariando Einstein, temos de pensar no
futuro. E, como sempre, vão ser precisos líderes.
O HOMEM QUE FEZ PARAR O SOL
Meu artigo no último "As Artes entre as Letras"
Um grande congresso mundial, repartido em três momentos em três cidades polacas,
serviu para celebrar os 550 anos do nascimento de Nicolau Copérnico
(1473-1453), o astrónomo, matemático, médico, humanista, jurista, gestor e economista
polaco que sustentou, no seu famoso livro Da Revolução dos Orbes Celestes,
saído no ano da sua morte que o céu estava imóvel no centro do mundo e não a
Terra, como se julgava.
Estive no congresso final, realizado há dias em Torun, a sua cidade natal,
um burgo cujo centro histórico é hoje Património Mundial da UNESCO. Os
encontros anteriores tinham-se realizado em Cracóvia, sítio da universidade polaca
onde Copérnico estudou, e em Olsztyn, uma das cidades da diocese de Warmia,
onde Copérnico viveu (morreu em Frombork, na costa da mesma região). A reunião
de Torun, realizada na Universidade Copérnico, centrou-se na história da
ciência e da cultura no tempo do cientista. Um dos temas tratados foi a
recepção das ideias copernicanas: em Espanha e Portugal foi muito tardia, não
por estarem longe da Polónia, mas por o livro ter sido colocado no Index
da Igreja Católica, criado pelo Concílio de Trento.
Os pais de Copérnico foram ricos mercadores de Torun, a cidade medieval à
beira do rio Vístula entre Varsóvia e Gdansk. Situada na Prússia Real, integrava o reino da
Polónia, que esteve muito tempo em guerra com os Cavaleiros Teutónicos, os
cruzados que se fixaram no Nordeste Europeu. Quando Copérnico nasceu já tinha
sido assinado um acordo de paz após a Guerra dos Treze Anos. A Casa de
Copérnico fica no centro histórico. O museu aí instalado mostra como era a vida
em Torun no final do século XV e início do século XVI. Os habitantes falavam
tanto alemão como polaco, uma língua então emergente, ainda sem obras
literárias. Hoje discute-se se Copérnico falava polaco: provavelmente sim, mas
só deixou documentos em latim e em alemão. O museu tem poucos objectos
originais, mas há boas réplicas. Na cave uma exposição multimédia evoca
contemporâneos lusos de Copérnico: Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Fernão de
Magalhães
Copérnico foi o mais novo de quatro irmãos. Três deles seguiram uma
carreira eclesiástica: ele e um irmão tomaram ordens menores e foram membros do
cabido da catedral de Warmia, em Frombork, e uma irmã foi prioresa num convento
próximo (a outra irmã casou com um homem de negócios). Copérnico nunca casou
nem teve filhos, embora tenha sido criticado por ter vivido com uma senhora.
Foram todos católicos: a Reforma de Lutero só surgiu em 1517 e, enquanto os Cavaleiros
Teutónicos aderiram ao protestantismo, os torunenses permaneceram fiéis ao
papa. A explicação para a entrada no cabido dos dois irmãos foi o facto de um tio
ter sido bispo de Warmia, cargo que exerceu muitos anos. Copérnico nunca foi
padre, mas viveu longos anos com uma renda eclesial, administrando propriedades
tuteladas pela catedral.
Entre 1491 e 1495 estudou Artes em Cracóvia, o que incluiu uma box
preparação em Astronomia e Matemática. Entre 1496 e 1501 estudou Direito Canónico
na Universidade de Bolonha, a mais antiga do mundo, e entre 1501 e 1503 estudou
medicina na Universidade de Pádua. Em 1503 doutorou.se em Direito Canónico na
Universidade de Ferrara. Regressou a Warmia com 30 anos, depois de mais de uma
década de estudos superiores, a maior dos quais em Itália. Passou o resto da sua
vida no nordeste polaco, servindo a Igreja. Foi secretário e médico do tio. E participou
nas disputas de poder entre o reino da Polónia e os Cavaleiros Teutónicos.
A sua teoria heliocêntrica – onde revelava um “céu mais perfeito” do que o de
Ptolomeu, com a Terra no centro – foi pela primeira vez conhecida em 1514
quando começaram a circular cópias de um manuscrito com o nome abreviado de Pequeno
Comentário. Adiou a publicação das suas ideias, talvez por receio de
críticas, mas o conteúdo principal da sua obra maior estava já pronto nos anos
de 1530. Em 1539 recebeu em Frombork um matemático alemão Georg Joachim
Rheticus (luterano e não católico, o que mostra que a diferenças religiosas não
impediam o trabalho conjunto). Foi esse seu discípulo que o convenceu a
publicar a teoria heliocêntrica, tendo levado o manuscrito a um prestigiado impressor
em Nuremberga. A finalização da impressão foi supervisionada por um amigo
luterano de Rheticus, o teólogo Andreas Osiander, para grande desagrado dele, pois
acrescentou um prefácio anónimo em que defendia tratar-se apenas de uma descrição
matemática e não da realidade. As órbitas centradas no Sol explicavam melhor as
tabelas astronómicas, mas o modelo não deveria ser levado a sério. Mas o novo
modelo eliminava os complicados epiciclos de Ptolomeu. O rei de Castela Afonso X
tinha afirmado no século XII: “Se Deus me tivesse perguntado, teria recomendado
um sistema mais simples.” Conta a lenda que Copérnico ainda viu o seu livro
antes de expirar… Não podia então imaginar o enorme impacto que o livro ia ter,
com a oposição tanto de luteranos como de católicos. Noventa anos após a sua publicação,
Galileu, advogado do heliocentrismo, seria condenado pela Inquisição romana,
criada pelo papa Paulo III a quem o livro era dedicado. Hoje existem pouco mais
de 200 cópias da edição original, uma das quais na Biblioteca Municipal do
Porto (a única cópia em Portugal), e algumas foram vendidas por quantias
absurdas.
As homenagens a Copérnico são inúmeras. Em Torun existe uma estátua, tal
como em Varsóvia. O aeroporto internacional de Wroclaw chama-se Copérnico (o de
Varsóvia chama-se Chopin). O Centro de Ciência de Varsóvia também. O elemento químico
112 é o copernício. Um exoplaneta tem o seu nome. Assim como uma sonda de raios
X da NASA e o sistema de observação da Terra da ESA, a Agência Espacial
Europeia.
Já neste século, foram procurados os restos mortais de Copérnico na catedral de Frombork. Por exame de ADN foram identificados os seus ossos, associando-os a um cabelo guardado num livro. Um perito forense fez um retrato de Copérnico, aos 70 anos, que pode ser comparado com a representação mais conhecida dele, em jovem.
ALGUNS AFORISMOS IRRITANTES
sábado, 23 de setembro de 2023
O discurso de seita a comandar a Educação
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Reprodução da dedicatória de Ionesco ao historiador João Medida, que o entrevistou (aqui) |
sexta-feira, 22 de setembro de 2023
REQUIESCAT IN PACE
Nem na morte nos deixam sossegar
os que se agitam no palco da vida;
pretende-se, diz-se, homenagear
os que já se encontram de partida.
O morto torna-se apenas pretexto
para chocalhos, trombetas e buzinas
e, até mesmo, para um hipertexto,
que se preste a afagá-lo em surdina.
Tudo que o morto quer é que o deixem
ficar muito morto e sossegado,
sendo, pois, desejável que afrouxemo banzé que o aflige, já calado!
Morrer é não desejar mais conversa,
agora que a vida ficou submersa.
Eugénio Lisboa
POR RAZÕES DITAS HUMANITÁRIAS
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Fotografia de Alessandro Grassani para The New York Times, recolhida aqui |
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Imagem recolhida aqui |
SER VISTO EM DIA DE PANTEÃO
A pompa e os pomposos,gulosos da sua pose,com ademanes garbosose cheiinhos de glucose,sonham com o Panteão,mesmo sem ser pra eles,desde que seja ocasiãode mostrarem suas peles!O Panteão é conviteà voz grossa do patrão,mesmo cheio de artritee sem grande inspiração.Professores eriçadose ministros entupidos,arcebispos bem tapadose militares floridose directores gerais,com suas caras metadeou extra-matrimoniais,em grande promiscuidade,fazem notável cortejo,em que toda a gente goza,menos o morto, com pejode ouvir gente tão manhosa!Eugénio Lisboa
O MANIFESTO SUCESSO DA "ESCRITA" RELÂMPAGO
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Notícia do semanário Expresso de 8 de Setembro |
2) publicar um livro que não tenha saído das entranhas, mesmo débeis, de outro alguém?
quinta-feira, 21 de setembro de 2023
A Biblioteca de Arturo Pérez-Reverte
Vale a pena ouvir a entrevista com o escritor Arturo Peréz-Reverte. Na sua biblioteca de 32.000 volumes, o escritor fala-nos sobre a leitura e o seu amor pelos livros. Há, diz ele, três obras fundamentais que todos deviam conhecer: a Bíblia, as epopeias de Homero e a epopeia de Virgílio. Os clássicos são fundamentais, diz, e não compreende como alguém pode ser um bom escritor sem conhecer os clássicos, sem conhecer a filosofia grega... sem conhecer os autores mais importantes, que nos formam.
https://www.facebook.com/100077173402509/videos/848111839952844/?idorvanity=297236101820217
quarta-feira, 20 de setembro de 2023
O PANTEÃO DE UM ESCRITOR SÃO OS SEUS LEITORES
terça-feira, 19 de setembro de 2023
VIVER SEM SENTIDO
Se a vida pode bem ter sabor,não é certo que ela tenha sentido.Ter sabor é o mesmo que ter calor,não é triunfo por nós conseguido.O sabor é fruído mas passivo,inventado seria o sentidoque não fosse apenas subjectivo,mas objectivamente conseguido.Mas como dar à vida algum sentido,quando tudo, nela, parece absurdo?Se, ao sentido, se tenta dar ouvido,por que permanece este tão surdo?Pode, então, viver-se sem sentido?Posso eu achar-me, estando perdido?Eugénio Lisboa
segunda-feira, 18 de setembro de 2023
O BOM-SENSO ESCLARECIDO QUE SOBRESSAI NOS SISTEMAS DE ENSINO
A MOÇÃO DE CENSURA DO VENTURA
O Ventura que é Andrétem agora cobertura
para a moção de censura,
de alguém cheio de fé
nas virtudes do mercado:
quanto mais livre este for,
mais acende o fervor
de quem o tem bem ferrado!
O Ventura, bom racista
e o Rocha, liberal,
vivem no mesmo curral,
em doce visão autista.
Expelido o cigano,
ficando o rico mais rico
e o pobre só com nico,
como não ficar ufano?
Um apura a etnia,
outro dá felicidade
a quem ganhe e arrecade
a boa e grossa maquia!
Felizes, Ventura e Rocha,
um, com país ariano,
outro, com rico bacano,
enquanto o pobre amocha.
Viva a raça apurada
e os ricaços felizes
e não haja mais deslizes,
nesta campanha sagrada!
que não é rico nem pobre e também não é ariano.
NOVOS CLASSICA DIGITALIA: NOVIDADES EDITORIAIS
Os Classica Digitalia têm o gosto de anunciar 3 novas publicações com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os volumes dos Classica Digitalia são editados em formato tradicional de papel e também na biblioteca digital, em Acesso Aberto.
Série “Autores Gregos e Latinos” [textos]
- Maria de Fátima Silva, Pausânias. Descrição da Grécia. Livro V. Introdução, tradução do grego e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2023). 166 p.
DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2490-7
[Pausânias é o nosso único testemunho de literatura periegética e o autor de um relato precioso sobre a Grécia da época de ocupação romana (séc. II d.C.). A sua descrição é a de alguém que viajou e sintetiza o que ‘viu’, com um olhar que não é só o de um turista curioso, mas de um intelectual que dispõe de uma sólida formação cultural e de uma informação ampla, em resultado de uma recolha criteriosa de todo o tipo de fontes, orais e escritas. Para com Pausânias mantemos em aberto uma enorme dívida: a de ter salvado um lastro de monumentos, de acontecimentos históricos, de figuras e de tradições que, sem ele, se teriam em definitivo apagado da memória dos homens.]
- José Luís Brandão, Gaio Suetónio Tranquilo: Vidas dos Césares. Livro VII. Galba, Otão e Vitélio. Tradução do latim, introdução e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2023). 138 p. DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2352-8
[O volume contém a tradução, acompanhada de introdução e notas, das Vidas dos três breves imperadores – Galba Otão e Vitélio – que se sucederam em Roma entre a morte de Nero em junho de 68 d.C. e a entrada violenta dos partidários de Vespasiano na Urbe em dezembro de 69. Trata-se, pois, das biografias dos protagonistas de uma época sangrenta de transição dinástica entre os imperadores júlio-Cláudios, que se extinguiram com Nero, e os Flávios, dinastia inaugurada por Vespasiano: um período de 18 meses de convulsão em que a investidura imperial é, por assim dizer, descentralizada, e exércitos provinciais e soldados pretorianos rivalizam entre si na mira de impor um imperador do seu agrado.]
- José Luís Brandão, Gaio Suetónio Tranquilo: Vidas dos Césares. Livro VIII. Os Flávios. Vidas de Vespasiano, Tito e Domiciano. Tradução do latim, introdução e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2023). 164 p. DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2354-2
[Tradução acompanhada de introdução e notas das Vidas dos Flávios, a dinastia que governou Roma entre 69 e 96 d.C. Esta família, embora não tivesse antepassados tão ilustres como os antecessores e fosse de origem sabina, veio dar estabilidade a Roma, depois dos sucessivos golpes de Estado que aconteceram a seguir à morte de Nero. Mas enquanto as biografias de Vespasiano e Tito salientam aspetos essencialmente positivos (Vespasiano é apresentado como um restaurador bem-humorado da cidade e da sociedade, e Tito é designado como “amor e delícias do género humano”) o filho mais novo de Vespasiano – Domiciano – é associado aos lugares-comuns típicos dos tiranos, um conjunto de vícios que justificam a sua morte.]
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domingo, 17 de setembro de 2023
QUEM PLAGIA QUEM? OU O TRIUNFO DA REPLICAÇÃO
Corre que um certo director escolar apresentou com atraso a sua Carta de Missão e que, uma vez apresentada, verificou-se ser plagiada na sua quase totalidade (ver, por exemplo, aqui).
Por dever do ofício, leio muitos Projectos Educativos, Planos de Intervenção e Cartas de Missão, (documentos estabelecidos na lei como estruturantes da política de Autonomia e Flexibilidade Curricular) e se há uma ideia que sobressai dessa leitura é a seguinte: a exigência de inovação traduz-se na replicação.
Vejo, nos vários documentos, as mesmas palavras (as palavras "de ordem"), as mesmas declarações (muitas vezes na forma de slogans), mais ou menos no mesmo alinhamento. Seguem, em tudo, a essência da "narrativa para a educação" vigente, que considero ser elaborada para obscurecer, não para esclarecer.
A verdade é que nunca consegui compreender qualquer documento desses, na sua essência, lógica, novidade; não conseguindo, portanto, perceber em que é que uma escola é diferente de outra, a missão de um director diferente da missão de outro.
Conjecturo que, nas escolas, se deve pensar que os ditos documentos se redigem como os vejo redigidos e que se forem redigidos de outro modo poderão desencadear problemas, sobretudo de "prestação de contas". Conjecturo também que o processo será o seguinte: alguém redige, muito próximo da letra da lei, um documento; outro alguém usa-o como base para redigir o que tem em mãos; um terceiro alguém... etc. E assim se chega à uniformização que se pode constatar.
Não venho defender o director acima mencionado (que não tive curiosidade de saber quem é, isso não é relevante), o que digo é que ele não destoa do que se faz nas escolas e... mais acima.
Atente o leitor nos textos que se seguem e, se for capaz, encontre diferenças substanciais:
Documento orientador da OCDE (2018). “We are facing unprecedented challenges – social, economic and environmental – driven by accelerating globalization and a faster rate of technological developments. At the same time, those forces are providing us with myriad new opportunities for human advancement. The future is uncertain and we cannot predict it; but we need to be open and ready for it. The children entering education in 2018 will be young adults in 2030. Schools can prepare them for jobs that have not yet been created, for tech-nologies that have not yet been invented, to solve problems that have not yet been anticipated. It will be a shared responsibility to seize opportunities and find solution. (OCDE, 2018, The future of education and skills – Education 2030. OECD).
Documento saído no jornal Público assinado pelo Grupo de Consultores do Projeto da OCDE (sendo um dos Consultores o nosso actual Ministro da Educação): “Enfrentamos hoje desafios sem precedentes – sociais, económicos e ambientais – provocados por uma globalização em aceleração e por um muito mais rápido desenvolvimento tecnológico. Paralelamente, estas forças conferem uma miríade de novas oportunidades para o desenvolvimento humano. O futuro é incerto e não o conseguimos predizer; mas é preciso estar disponível e preparado para esse futuro. As crianças que entram nos sistemas educativos em 2018 serão jovens adultos em 2030. As escolas têm de os preparar para empregos que ainda não foram criados, para tecnologias que não foram ainda inventadas, para resolver problemas que ainda não foram antecipados. Aproveitar oportunidades e encontrar soluções será uma responsabilidade partilhada.” (Grupo de Consultores do Projeto da OCDE “Future of Education and Skills 2030” (2018). Educação para um mundo melhor: um debate em curso a uma escala global. Público, 16 de Fevereiro)
Documento legal que estrutura o Ensino Básico e Secundário: “… a sociedade enfrenta atualmente novos desafios, decorrentes de uma globalização e desenvolvimento tecnológico em aceleração, tendo a escola de preparar os alunos, que serão jovens e adultos em 2030, para empregos ainda não criados, para tecnologias ainda não inventadas, para a resolução de problemas que ainda se desconhecem. Nesta incerteza quanto ao futuro, onde se vislumbra uma miríade de novas oportunidades para o desenvolvimento humano, é necessário desenvolver nos alunos competências que lhes permitam questionar os saberes estabelecidos, integrar conhecimentos emergentes, comunicar eficientemente e resolver problemas complexos.” Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de Julho.
É certo que replicar (evito a palavra "plágio"), mesmo quando todos replicam, não é uma propriamente uma abordagem ética, mas é, sem dúvida, uma estratégia estabelecida, desde as instâncias mais globais, passando pelas nacionais, até às escolares. Se, alegando inovação, laborarmos numa certa replicação estaremos livres de apoquentações e, mais, seremos considerados educadores do século XXI!
sábado, 16 de setembro de 2023
Por fim, alguma sensatez
sexta-feira, 15 de setembro de 2023
VAMOS PETICIONAR A REMOÇÃO DA ESTÁTUA DE EÇA, NO ALECRIM?
1) Porquê, esta remoção, só ao fim de onze anos?2) Se o motivo estético invocado – falta de qualidade artística – é, segundo eles dizem, aplicável à grande maioria das estátuas ou bustos de figuras públicas, que pululam por todo o país, então por que encarniçarem-se apenas sobre esta?
https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT117680
https://peticaopublica.com/viewsignatures.aspx?pi=PT117680&pg=111
quinta-feira, 14 de setembro de 2023
MONÓLOGO DO GATO
mudam de pelo a toda a hora
terça-feira, 12 de setembro de 2023
A ACTUALIDADE DA CARTA DO PROFESSOR LOUIS GERMAIN AO SEU ALUNO ALBERT CAMUS
Meu querido jovem,
(...) Não sei como exprimir-te a alegria que me deste com o teu gesto gracioso, nem sei como te agradecer. Se fosse possível, daria um forte abraço ao menino grande que te tornaste e que continuará sempre a ser para mim "o meu pequeno Camus".
(...) Mas quem é Camus? Tenho a impressão de que aqueles que tentam compreender a tua personalidade, de facto, não o conseguem. Sempre foste instintivamente retraído em revelar a tua natureza e os teus sentimentos. Fá-lo ainda melhor porque és simples e direto. E de uma bondade acima do normal! Fiquei com estas impressões de ti nas aulas.
Um pedagogo que quer fazer o seu trabalho de forma consciente nunca descura a oportunidade de conhecer os seus alunos, os seus filhos, e dá-se a conhecer incessantemente. Uma reação, um gesto, uma atitude podem revelar muita coisa. Creio, portanto, conhecer bem o menino simpático que eras. E uma criança contém muitas vezes as sementes do homem que em que se tornará. O teu gosto em estar na sala de aula emanava por todos os lados. O teu rosto manifestava otimismo. E, ao analisar-te, nunca suspeitei da verdadeira situação da tua família, só tive uma mínima perceção quando a tua mãe veio falar comigo para te inscrever na lista de candidatos às bolsas de estudo. Isto foi precisamente quando estavas prestes a deixar-me. Mas, até então, parecias-me estar na mesma situação que os teus colegas. Tinhas sempre o que era necessário. Tal como o teu irmão, andavas cuidadosamente vestido. Acho que não poderia tecer mais belo elogio à tua mãe.
Vi a lista cada vez maior de livros que te são dedicados ou que falam sobre ti. E dá-me uma satisfação enorme ver que a tua fama (que é a verdade) não te subiu à cabeça. Mantiveste-te o Camus: bravo. Acompanhei com interesse as muitas peripécias da peça que adaptaste e encenaste: Les Possédés. Gosto demasiado de ti para não te desejar o maior sucesso: aquele que mereces.
Malraux também quer dar-te um teatro. Sei que é uma paixão tua. Mas serás capaz de gerir todas estas actividades ao mesmo tempo? Receio que te empenhes demasiado. E, permite que o teu velho amigo constate, tens uma linda esposa e dois filhos que precisam do seu marido e pai. A este respeito, vou contar-te o que o nosso diretor do Magistério dizia às vezes. Ele era muito, muito rígido connosco, o que nos impedia de ver, de sentir, que ele nos amava realmente. "A natureza tem um grande livro no qual regista meticulosamente todos os excessos que cometemos”. Confesso que este sábio conselho me reteve muitas vezes no momento em que estava prestes a esquecê-lo. Por isso, digamos, tenta manter em branco a página que te está reservada no Grande Livro da Natureza.
A Andrée lembrou-me que te vimos e ouvimos num programa literário de televisão sobre Les Possédés. Foi comovente ver-te responder às perguntas que te eram postas. E, apesar de tudo, fiz a observação maliciosa de que não terias ideia de que, eventualmente, eu estaria a ver-te e a ouvir-te. Isto compensou um pouco a tua ausência de Argel. Há muito tempo que não te víamos...
Antes de terminar, gostaria de te dizer o quão angustiado estou, como professor laico, face aos planos ameaçadores que estão a ser elaborados contra a nossa escola. Ao longo da minha carreira, creio ter respeitado o que há de mais sagrado nas crianças: o direito de procurar a sua própria verdade. Amei-vos a todos e creio que fiz tudo o que estava ao meu alcance para não exprimir as minhas ideias e, assim, pesar na vossa jovem inteligência. Quando se falou de Deus (estava no programa), eu dizia que alguns de nós acreditam e outros não. E que, na plenitude dos direitos, cada um faz o que entende. Da mesma forma, para o capítulo sobre as religiões, limitei-me a indicar as que existiam, às quais pertenciam aqueles a quem lhes apetecia pertencer. Para ser honesto, acrescentei que havia pessoas que não praticavam nenhuma religião. Sei bem que isso não agradava àqueles que queriam transformar os professores em prosélitos religiosos e, para ser mais exacto, prosélitos da religião católica.
No Magistério de Argel (na altura situado no Parque de Galland), o meu pai, como os seus colegas, era obrigado a ir à missa e a comungar todos os domingos. Um dia, farto deste constrangimento, meteu a hóstia "consagrada" num livro de missa e fechou-o! O director do Magistério foi informado desse acontecimento e não hesitou em expulsar o meu pai da escola. É o que pretendem os defensores da "escola livre" (livre… de pensar como eles).
Com a composição da actual Câmara dos Deputados, receio que o plano maléfico seja bem sucedido. [O jornal] Le Canard Enchaîné noticiou que, numa região, uma centena de turmas de escolas laicas estão a funcionar com um crucifixo pendurado na parede. Vejo isto como um abominável atentado à consciência das crianças. Como é que será, talvez, daqui a algum tempo? Estes pensamentos entristecem-me profundamente.
Quero que saibas que, mesmo quando não estou a escrever, penso frequentemente em todos vós.
A Madame Germain e eu enviamos-vos aos quatro um abraço bem forte.
Com muito carinho,Germain Louis
UMA REVISÃO IMPOSSÍVEL OU O PROBLEMA DA OPINIÃO EM EDUCAÇÃO
RI DE TI PRÓPRIO
segunda-feira, 11 de setembro de 2023
Enxaquecas de famosos
Excerto do livro "Enxaqueca" de Ana Carvalhas, saído há pouco na Gradiva:
"Nesta secção apresento alguns casos de pessoas famosas que provavelmente sofreram de enxaqueca. É difícil fazer, por vezes, uma «autópsia» a partir dos escritos ou obras feitas, designadamente para os personagens mais antigos, mas a probabilidade de se tratar de enxaquecas é em geral muito forte para os casos aqui indicados.
A história das enxaquecas é tão antiga quanto a humanidade. Sendo eu uma pessoa praticamente anónima, neste capítulo conto, em pinceladas rápidas, os casos de algumas figuras famosas que provavelmente sofreram da mesma doença que eu, ou pelo menos se presume que assim foi. Haverá mais, certamente. Os seus relatos ou as suas representações artísticas da doença são muito sugestivos, valendo a pena apresentá‑los aqui, por ordem cronológica de nascimento.
O famoso médico romano Cláudio Galeno (c. 129‑c. 217), natural de Pérgamo, na Grécia, é o autor do termo «hemicrania» (metade da cabeça), do qual emergiu o termo «migrânea» (lembro que, em inglês, enxaqueca se diz migraine), a que comummente se chama hoje «enxaqueca». Dizia‑se «hemicrania» porque, em muitos casos, as dores da enxaqueca só afetam metade da cabeça. Galeno foi um autor de referência na medicina da Idade Média e também do Renascimento.
O imperador romano Júlio César (100 a. C.‑44 a.C.), o poderoso chefe militar que conquistou a Gália, sofria de dores de cabeça intensas, perturbações da visão e fraquezas, em particular nos anos que precederam o seu assassínio pelo traidor Bruto. Muito provavelmente tinha enxaquecas com aura, em vez de ataques epiléticos ou mini AVC, que, apesar de terem algumas características semelhantes, lhe teriam prejudicado mais severamente as capacidades de escrita e de direção militar e política.
A abadessa alemã Hildegard von Bingen (c. 1098‑1179), ou Santa Hildegarda (é santa da Igreja Católica formalmente desde 2012, apesar de a sua veneração ser bastante mais antiga), foi uma freira beneditina que dirigiu o Mosteiro de Rupertsberg em Bingen am Rhein, na Alemanha. Polímata, foi não apenas escritora nas áreas da teologia e filosofia e compositora musical como também mística, cujas visões, iniciadas na infância, ficaram na história da religião. Além disso, pode ser considerada uma alquimista no sentido em que introduziu ervas medicinais, algumas das quais chegaram até nós: neste sentido é uma das primeiras mulheres da ciência. Pelas descrições que nos deixou, designadamente em dois códices manuscritos, uma parte da comunidade científica acredita hoje que ela sofria de enxaquecas. Outros místicos contaram visões semelhantes ao longo da história. Nas palavras que Hildegarda nos deixou:
"As visões que eu tive não recebi em sonhos, ou sono, ou delírio, ou pelos olhos do corpo, ou pelos ouvidos do eu exterior, ou em lugares escondidos; mas eu as recebi acordada e vendo com a mente pura e os olhos e os ouvidos do eu interior, em lugares abertos, como Deus quis. Como isso pode ser é difícil para a carne mortal entender."
Dando um grande salto no tempo, o escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547‑1616), o famoso autor do Dom Quixote, poderá ter sofrido de enxaquecas, a avaliar pelos seus escritos, designadamente nessa obra‑prima da literatura universal. O personagem do «cavaleiro da triste figura» fornece muita informação aos neurologistas de hoje, tendo alguns destes adiantado a hipótese de ser portador de uma demência. Para o neurologista espanhol laureado com o Nobel da Medicina Santiago Ramon y Cajal, Dom Quixote não era demente, mas tinha problemas de saúde, como muitos seres humanos, ficando por saber qual é a componente autobiográfica na construção do personagem. Cervantes tinha algum conhecimento das obras médicas da época. No Dom Quixote pode ler‑se: «Quando a cabeça sofre, todos os membros sofrem.»
Thomas Jefferson (1743‑1826), um dos pais fundadores dos Estados Unidos e o terceiro presidente dos Estados Unidos (era, além disso, amigo do diplomata e cientista português abade José Correia da Serra, para quem tinha reservado um quarto na sua mansão na Virgínia, perto de Washington), deixou na sua correspondência e nos seus diários descrições de ocorrência de dores de cabeça mais ou menos periódicas que podem ter sido enxaquecas. Algumas delas ocorreram no período crítico da história norte‑americana e mundial que foi a preparação da independência dos Estados Unidos.
Um outro presidente norte‑americano que sofria de crises de enxaquecas foi o 18.o presidente Ulysses Grant (1822‑1885), que foi comandante no final da guerra civil. Desde jovem que teve enxaquecas recorrentes que, aparentemente, eram desencadeadas ou intensificadas por sons musicais. Um terceiro presidente norte‑americano com um registo clínico em que é possível identificar enxaquecas foi, muito mais tarde, John F. Kennedy (1917‑1963), o 35.º presidente, que ficou célebre com a sua promessa no início dos anos de 1960 de uma viagem humana à Lua (concretizada pela primeira vez em 1969 com a missão Apollo 9). Não gostava de viajar em carros descapotáveis, porque a luz solar lhe causava enxaquecas. Morreu, como se sabe, num atentado, quando se deslocava, em Dallas, precisamente num carro descapotável...
Tendo sido como Júlio César um dos maiores comandantes militares da história, o imperador francês Napoleão Bonaparte (1769‑1821) sofreu, pelo menos durante algumas campanhas militares, de dores de cabeça que podem ter sido enxaquecas. Napoleão sofreu de outras doenças, entre as quais a sífilis, que ainda hoje são objeto de controvérsia por médicos interessados pela história.
O naturalista inglês Charles Darwin (1809‑1882), o famoso autor da Origem das Espécies, publicado pela primeira vez em Londres em 1859, tendo‑se logo tornado um best‑seller, não só no Reino Unido como em todo o mundo, foi um homem bastante doente durante uma boa parte da sua vida. Apesar de haver alguma incerteza, há um diagnóstico de enxaqueca feito por muitos médicos que estudaram a sua biografia. Havia decerto outra doença (ou doenças), agravada por situações de stresse. Devido ao seu estado de saúde débil, Darwin isolou‑se na sua casa de campo em Downe cultivando as suas orquídeas e evitando ao máximo encontros sociais. A defesa do darwinismo, que exigia energia e veemência, foi feita por outros.
A poeta norte‑americana Emily Dickinson (1830‑1886) sofria provavelmente de dores de cabeça intensas que deviam ser de enxaqueca. A sua situação de saúde reflete‑se na sua obra, feita de modo solitário. Dá a entender uma dor de cabeça intensa no seu poema «Senti um funeral no meu cérebro» (aqui na tradução de Augusto de Campos):
"Senti um funeral no meu Cérebro,
E Carpideiras indo e vindo
A pisar — a pisar — até eu sonhar
Meus sentidos fugindo —
E quando tudo se sentou,
O Tambor de um Ofício —
Bateu — bateu — até eu sentir
Inerte o meu Juízo
E eu os ouvi — erguida a Tampa —
Rangerem por minha Alma com
Todo o Chumbo dos pés, de novo,
E o Espaço — dobrou,
Como se os Céus fossem um Sino
E o Ser apenas um Ouvido,
E eu e o Silêncio estranha Raça
Só, naufragada, aqui —
Partiu‑se a Tábua em minha Mente
E eu fui cair de Chão em Chão —
E em cada Chão achei um Mundo
E Terminei sabendo — então —"´
O clérigo inglês Lewis Carroll (1832‑1898), célebre autor de Alice no País das Maravilhas (1865) e da sua sequela Alice do Outro Lado do Espelho, de várias obras de matemática e também praticante de fotografia (ficaram famosas as suas fotografias de meninas), sofria de uma forma rara de enxaqueca com aura. Com razoável probabilidade o livro Alice no País das Maravilhas emergiu dessas suas perturbações de saúde. Hoje na literatura médica usa‑se mesmo o termo «síndrome de Alice no País das Maravilhas» para designar certas alucinações associadas a enxaqueca.
Os exemplos de Dickinson e Carroll estiveram longe de ser casos isolados no que respeita à sublimação artística de crises de enxaqueca. Além da literatura, também há exemplos nas artes visuais, como indicarei a seguir.
Consta que o pintor impressionista francês Claude Monet (1840‑1926), o autor de obras como Impressão, Nascer do Sol, que está no Museu Marmottan Monet em Paris, sofria de enxaquecas. Apesar de ter tido não apenas essa doença como até crises depressivas, o artista deixou uma produção pictórica notável. Foi o mais célebre dos pintores impressionistas, um movimento do qual ele pode ser considerado pioneiro. O Jardim de Giverny que serviu de inspiração a muitas obras, anexo à casa onde viveu durante mais de quatro décadas, pode hoje ser visitado. O pintor francês teve de interromper o seu trabalho por causa das crises de dor e distorção visual.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844‑1900), crítico de muitas atitudes e valores do seu tempo, foi um homem doente desde criança. Quando tinha vinte e tal anos teve de abandonar uma posição de professor na Universidade de Basileia, na Suíça, por sofrer de dores de cabeça insuportáveis. Sofria de enxaqueca sem aura, mas, mais grave do que isso, na parte final da sua vida padeceu de uma doença psiquiátrica progressiva que culminou numa demência profunda e na morte por pneumonia.
O pintor holandês Vincent van Gogh (1853‑1890), um pós‑impressionista que é considerado um dos nomes mais famosos da história da arte, padeceu de enxaqueca tal como Claude Monet. Como na altura esta enfermidade era associada a doença mental, chegou a estar internado no hospício de Saint Remy, em Arles, no Sul de França, durante uma crise. Foi aí, em 1889, que terminou o seu famoso quadro Noite estrelada (figura 3). Pode ser uma representação de uma enxaqueca com aura. Van Gogh apareceu morto com um tiro numa pensão, pensando‑se que cometeu suicídio.
Na transição do século xix para o xx, o médico austríaco Sigmund Freud (1856‑1939), distinguiu‑se como o fundador da psicanálise, a corrente da psiquiatria com um método peculiar de analisar a mente humana. Freud foi com grande probabilidade doente de enxaqueca. Escreveu sobre a natureza e origem das dores de cabeça que o atormentavam, que tentou contrariar tomando cocaína.
(...)"
Âna Carvalhas
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