segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

LITERACIA EMOCIONAL PARA PROFESSORES: UMA FALÁCIA DO DISCURSO POLÍTICO, MAS NÃO APENAS POLÍTICO

Li o título que reproduzo abaixo de uma notícia do jornal Público de hoje e lembrei-me da famosa frase de Bertolt Brecht: "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém diz que são violentas às margens que o comprimem". 

Imagem recortada daqui. Sublinhados meus
Declaro que não li nem sequer consultei (mais) este estudo (de matriz psicológica) referido no corpo da notícia. E também não prestei a atenção que se justificaria à própria notícia É a fadiga do deja vu...

Interessa-me, porém, o destaque dado à ligação estabelecida entre o problema (nada surpreendente) e a solução apresentada pelo governo.

O problema é os professores sentirem-se tristes, denotando mal-estar. Nada de novo: temos, desde há várias décadas, estudos internacionais e nacionais cujos resultados vão, muito consistentemente, no mesmo sentido. E talvez nem precisássemos de estudos para perceber esta realidade, tão evidente ela é. 

Mas porque é que muitos professores se sentem assim? Entre as várias causas apontadas, uma das mais relevantes prende-se com as políticas e medidas educativas que desviam os professores do que consideram ser o cerne do ensino e pelo qual se sentem responsáveis. Não conseguirem levar os alunos a aprender o que se esperaria que aprendessem em contexto escolar, aliado a ambientes institucionais agrestes, onde o relacionamento humano e o estímulo intelectual se dissolvem, constituem a principal base do  designado "sofrimento ético".

Tal não decorre da falta de formação favorável à aceitação (acrítica) das políticas e medidas que se lhe destinam, mas do facto de muitos professores terem clara consciência de que uma parte substancial dessas políticas e medidas não serem realmente educativas.

Imputando-se aos professores o problema, desvincula-se a tutela do mesmo. São estes profissionais (e as instituições que os preparam) que têm de robustecer a sua "literacia emocional", dada a sua ignorância ou incapacidade na matéria.

Com as emoções "afinadas" estão aptos para, contidos nas margens que se lhes impõem, seguirem sem turbulências para... onde? 

domingo, 8 de dezembro de 2024

"PORTUGAL EM SELOS 2024". DEDICADO (TAMBÉM) A EUGÉNIO LISBOA

Jorge M. Martins acaba de publicar um novo álbum de arte dos CTT, em edição bilingue, com o título Portugal em Selos 2024. Na apresentação diz-se:

"Em 2024 comemoram-se os 500 anos do nascimento de Luís de Camões, poeta épico português, ilustre personagem do Renascimento, homem de grande cultura e de riquíssima vivência que, em redor de 1572, escreveu Os Lusíadas, inequivocamente uma das mais importantes obras da literatura de língua portuguesa. Jorge M. Martins (...) não esquece esta importante efeméride e, capítulo a capítulo, propõe um diálogo entre as emissões de selos deste ano e a grande epopeia de Camões."

A obra, de grande empenho e beleza, é dedicada à memória de "três companheiros de uma 'mesa de amigos', alimentada a poder de livros": Eugénio Almeida Lisboa (1930-2024), Alfredo Campos Matos (1928-2023) e João Bigotte Chorão (1933-2019).

Eugénio Lisboa, o último a partir, deixou belíssimos e empenhados textos a propósito dos livros que o tocavam. Por certo, da sua mão sairia um belo texto acerca deste livro, que possivelmente partilharia com o De Rerum Natura.. Imaginemo-lo...

Novos Classica Digitalia

NOVIDADES EDITORIAIS

 

Fora de Série [estudos]


- Cláudia Cravo & Susana Marques (Coords.), Re)visitar os Clássicos greco-latinos em sala de aula (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 157 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2613-0


[Este volume reúne vários contributos que exploram, na sua maioria, textos de autores portugueses, de diferentes épocas, com o propósito comum de revisitar os clássicos greco-latinos em sala de aula. Esta diversidade de colaborações pretende inspirar os docentes do ensino básico e secundário a promoverem, nas suas aulas, diferentes  abordagens didático-pedagógicas, que possam motivar os alunos para a receção da Antiguidade Clássica na língua e na literatura portuguesas.]


Série “Autores Gregos e Latinos” [textos]

 

Reina Marisol Troca Pereira & Joaquim Pinheiro, Plutarco. Vidas Paralelas. Filopémen e Flaminino. Introdução, tradução do grego e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 100 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2647-5


[O objetivo deste livro é fornecer em língua portuguesa uma tradução do par biográfico Filopémen-Flaminino, com uma breve introdução e notas de apoio à leitura e compreensão do texto. O par biográfico Filopémen-Flaminino é o único do corpus biográfico de Plutarco com dois heróis contemporâneos. Esta dinâmica temporal tem consequências na descrição e no processo comparativo. De facto, Plutarco entrelaça o declínio helénico com a expansão romana na narrativa biográfica. Oscilando entre a philonikia e a philotimia, misturam-se factos históricos com a interpretação ética e moral. Estes elementos temáticos fornecem, sem dúvida, valiosos elementos sobre a identidade greco-romana.]

 

Adriana Nogueira, Diógenes Laércio. Vidas de Filósofos Ilustres. Livro IIIntrodução, tradução do grego e notas (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2024). 204 p.

DOI: https://doi.org/10.14195/978-989-26-2643-7

  

[Diógenes Laércio, autor que terá vivido no séc. III d.C., fez-nos saber que o seu propósito era dar a conhecer as doutrinas e os filósofos em todas as suas dimensões. Esta foi uma obra – uma primeira história da filosofia grega –  citada ao longo das épocas e que ainda hoje continua para muitos dos autores aqui referidos a ser a única fonte de informação disponível, à qual não faltam, para além das suas teorias e escolas a  que pertenciam, as máximas atribuídas às personagens ou as anedotas que as envolviam. De Anaximandro a Menedemo, passando por Sócrates, o Livro 2 de Vidas de Filósofos Ilustres permite-nos conhecer melhor vários filósofos da linhagem em que Sócrates se insere e que a ele se seguiram.]

USO MASSIVO DE ECRÃS E TECLADOS NA ESCOLA: PROTESTOS E DECISÕES

A notícia é do Diário de Coimbra do passado dia 4 de Dezembro: mais dois Agrupamentos de Escolas decidiram restringir o uso de telemóveis, com vista, dizem, a "preservar a saúde mental e física dos alunos".

A reportagem dá conta do consenso obtido entre, como agora se diz, os diversos parceiros educativos. Dá também conta da razoabilidade da restrição: a questão não se coloca entre proibir em absoluto ou deixar ao critério de cada um; coloca-se, isso sim, na adopção de medidas que fazem sentido em termos de aprendizagem e de protecção das crianças e dos jovens.
 
Imagem recolhida aqui
Um dia antes, a 3 de Dezembro, o jornal As Beiras noticiava um protesto realizado à porta de uma escola contra o uso exclusivo de manuais digitais no ensino básico. Esta é uma das escolas que entrou, a título voluntário, no projeto-piloto de transição digital.
 
O protesto surgiu na sequência de um manifesto da iniciativa de encarregados de educação, (ver aqui) contra o uso exclusivo de manuais digitais, que obteve 655 assinatura.
 
Cito o texto do jornal que reproduz extractos de uma declaração recolhida.
“É algo que não se compreende, porque todos os dados indicam que os pais não estão satisfeitos, os professores não estão satisfeitos e todos os países, nomeadamente europeus como a Finlândia e a Suécia, que tinham avançado com isso há anos, recuaram e estão a reintroduzir novamente os manuais em papel (...). Por isso, só por outras razões, eventualmente económicas e de negócio, mas que não são os interesses destas crianças e destas comunidades educativas, que têm o direito de exigir acesso aos manuais em papel, que todos os estudos indicam que em, termos pedagógicos e de saúde, são mais favoráveis para a aprendizagem e para a saúde das nossas crianças.”

O que nos dizem estas duas notícias? No meu entender dizem-nos que estamos no bom caminho do uso dos recursos pedagógicos. E isso decorre da investigação séria que se tem realizado e da atenção que cada vez mais professores, directores e encarregados de educação lhe conferem.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

OS DIAS CONTADOS

OS LUSÍADAS APRESENTADOS EM COIMBRA


 

Toda a Física Divertida: recensão por João Lopes dos Santos na Brotéria

Recensão de João Lopes dos Santos ao meu livro Toda a Física Divertida ( Gradiva , 2024), publicado na Brotéria:

Diz-se que, para matar a conversa num evento social, nada melhor do que anunciar-se como físico teórico. As pessoas atribuem-nos logo elevada inteligência e pouco interesse. A parte do “pouco interesse” não aconteceria, de certo, ao autor dos dois livros “Física Divertida” e “Nova Física Divertida”—em boa hora agora reeditados num único volume—, o físico teórico Carlos Fiolhais.

Porque Carlos Fiolhais é um exímio contador de histórias. Cada um dos nove capítulos que compõem este volume, Carlos Fiolhais conta uma ou várias histórias. Mesmo quando fala de Física e não de físicos, dos seus sucessos e fracassos, das suas vidas, ou da relação que tiveram com Portugal, Carlos Fiolhais conversa. Não espere o leitor aquela prosa fastidiosamente precisa, despojada de emoção e de humor, inodora e incolor, com que tantos peritos e professores nos brindam quando lhes pedem para explicar algum fenómeno ao público. Se quiser saber o que esperar destes dois livros, imagine-se a conversar longamente com alguém que ama o assunto de que fala, que o conhece com profundidade e abrangência enciclopédica e está ansioso para partilhar o seu entusiasmo com o ouvinte.

Mas não conclua que Carlos Fiolhais escreve como fala. Num dos livros citados por Carlos Fiolhais, as “Feynman Lectures on Physics”, que além de Feynman tem mais dois co-autores, lê-se que passar à escrita as lições orais de Feynman foi um processo editorial de grande magnitude. Apesar disso, quem lê as “Feynman Lectures” ouve Feynman a falar. O mesmo acontece nestes livros, em que o autor usou muitas das inúmeras palestras que deu em escolas de todo o país. Carlos Fiolhais escreve muito bem, com uma prosa escorreita e refletida, que em muitas passagens exige atenção e releitura, porque a física que expõe o requer e não é divertida por ser fácil, mas sim porque quem a comunica o faz com graça, humor, sem pretensiosismo, transformando o quotidiano, recorrendo a analogias, metáforas, imagens: “V. Exa. quer o café aquecido com trabalho ou calor?”. Não hesita mesmo a personalizar os objetos físicos: luas malucas, eletrões que tocam campainhas e não são promíscuos, ao contrário dos bosões, fotões, “soluços” de luz, que dão pancada nos eletrões, são apenas alguns exemplos da linguagem desinibida de Carlos Fiolhais, com que se casam, em união feliz, os geniais desenhos de José Bandeira.

De que fala “Toda a Física Divertida”? Se não de “toda” pelo menos de muita física e não só. Nos seis primeiros capítulos (“Física Divertida”), três são da área da Mecânica Clássica, um dedicado à Luz, outro ao Eletromagnetismo e o último à Termodinâmica (ou na designação de Carlos Fiolhais ao “Calórico e às Máquinas de S. Nunca”. A “Nova física Divertida” tem três capítulos: “A Paradoxal Física Quântica”, a “Fantástica Relatividade” e “Dos Núcleos às Estrelas”.

Como é de esperar num livro desta natureza, as histórias deixam muitas interrogações, traçam um quadro impressionista dos assuntos, com grossas pinceladas que estimulam o desejo de saber mais, a quem é vítima da mesma “curiosidade apaixonada” pelo mundo que motivou a vida de Carlos Fiolhais. Em cada capítulo o autor vai muito mais longe nas implicações dos assuntos que discute do que é habitual nos textos universitários de Física, evidenciando sempre os problemas em aberto, mesmo em áreas com décadas ou centenas de anos de estudos; nesta reedição pôde abordar vários desenvolvimentos da Física, e sobretudo das suas aplicações, posteriores às datas das edições originais (1990 e 2006).

Na vastidão de assuntos que toca num volume relativamente breve, seria difícil não deixar escapar uma ou outra subtileza. Por exemplo, quando o autor refere que o movimento de um automóvel o encurta (verdade) e quanto mais rápido se mover, melhor caberá num curto túnel, esquece-se de chamar a atenção que, para o condutor do automóvel, é o túnel que fica mais curto!

Um lapso mais óbvio (o único que encontrei) é que não foi Voltaire que defendeu que vivemos no melhor dos mundos, mas sim Leibniz, crença que Voltaire parodiou no seu “Candide”.

As histórias contadas à volta da Física, os amores e desamores dos protagonistas, as passagens da sua correspondência, as citações de textos literários, as relações e as referências de físicos proeminentes a Portugal são um dos ingredientes que mais cor dão a estes livros. É impressionante o conhecimento enciclopédico do autor. Ficamos a saber, entre muitas outras curiosidades, que Kepler afirmou que não se coibiu de escrever sobre os seus fracassos porque os Portugueses, nos descobrimentos, também o fizeram; que Einstein (em 1925) achou que Lisboa dava uma impressão “maltrapilha mas simpática”; que um padre português, Teodoro de Almeida, escreveu no século XVIII uma obra em 10 volumes em que expôs e defendeu as ideias de Newton. Aliás se o leitor ficou com impressão que Carlos Fiolhais apenas passou à pena as inúmeras palestras que deu em escolas de todo o país, consulte a extensíssima bibliografia destes dois despretensiosos livros para perceber a origem da erudição do seu autor.

Carlos Fiolhais termina assim este volume:

O que se pode desde já prever — e eu vou apostar, contrariando um conselho da minha avó— é que, graças aos avanços da ciência e da tecnologia, o século XXI vai ser tão diferente do anterior pelo menos quanto o anterior foi daquele que o antecedeu.

Vai, portanto, haver muito mais Física Divertida para o autor nos contar. Mas para já, passe-se umas boas e agradáveis horas na companhia de “Toda a Física Divertida”.

Porto, 13 de Outubro

João Lopes dos Santos

DOZE LIVROS DE CIÊNCIA PARA O NATAL

Meu texto no JL:

Há já alguns anos que costumo divulgar uma selecção pessoal de livros saídos no final do ano, que procuram beneficiar da maior procura que as livrarias têm nesta época do ano (agora até há cheques-livro para alguns jovens). Embora o meu leque de leituras seja ecléctico – incluindo romance, poesia, história, banda desenhada, etc. - restringi esta lista a uma dúzia de livros de divulgação de ciência e tecnologia. A ordem é a alfabética do apelido do primeiro autor.  

1- Alves, Miriam e Kono, Yara. As Peças Mais Pequenas. Tudo o que vemos é feito do que não vemos, Planeta Tangerina. Uma jornalista portuguesa e uma artista brasileira fizeram um belo livro para crianças que explica que «tudo o que vemos é feito do que não vemos».  Na ciência, o essencial é invisível aos olhos: os átomos formam tudo à nossa volta e dentro de nós. Mas, mais do que descrever a ciência, a primeira autora fala do processo de descoberta. E a segunda ilustra o texto esplendidamente.

2- Baptista, António Manuel. A Ciência no Grande Teatro do Mundo, Tinta da China. Para assinalar o centenário do autor, professor de Física da Academia Militar, investigador na área da Física Médica no Instituto Português de Oncologia e comunicador de ciência pioneiro na rádio e televisão, a filha Cristina Ovídio preparou uma reedição de um livro que tinha saído na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva, que foi enriquecida por um prefácio do neto do autor e por um apêndice em que o professor Baptista fala do que deve aos seus professores. 

3- Bohannon, Cat. Eva. Como o corpo feminino determinou 200 milhões de anos de evolução humana, Objectiva. É o primeiro livro de uma escritora de ciência doutorada recentemente pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Qual foi o papel do corpo feminino na evolução biológica? A autora olha para a História Natural, revelando em 536 páginas as origens de órgãos como útero e funções como o aleitamento. Os 200 milhões de ambos do título justificam-se porque a autora olha para alguns vertebrados que foram antepassados remotos do Homo sapiens. 

4- Conway, Ed. Mundo Material. Uma história substancial do nosso passado e futuro. Temas e Debates. Um premiado jornalista de economia inglês realizou uma viagem pelo mundo para nos contar os materiais que se extraem da terra e o modo como são transformados para formarem os objectos de que precisamos. Por exemplo, de onde vem o silício dos nossos chips de computadores=?

5- Graydon, Samuel. Einstein no Tempo e no Espaço: Uma vida em 99 partículas,  Saída de Emergência. Uma visão da vida e obra de Einstein através de pequenos fragmentos, escritos por um jornalista de ciência britânico. Revela não só o génio, que ganhou o estatuto de mito imortal, mas também a pessoa, com algumas das falhas e fragilidades que caracterizam a nossa espécie.

6- Kissinger, Henry; Mundie, Craige; e Schmidt, Eric. Génesis. Inteligência Artificial, Esperança e o Espírito Humano, Dom Quixote. Um ensaio que nos dá ampla matéria de reflexão sobre os prementes desafios da Inteligência Artificial da autoria do político e estadista falecido em 2023 com cem anos, de um ex-director da Microsot e de um ex-CEO da Google. O primeiro e o terceiro autores já tinham analisado o assunto no seu livro, com Daniel Huttenlocher, A Era da Inteligência Artificial e o Nosso Futuro Humano (também na Dom Quixote).

7- Lewandowski, Cédric. O Nuclear, Guerra & Paz. Uma tradução de um livrinho da colecção francesa Que Sais-Je que resume o que é a energia nuclear, escrito por um quadro da EDF France, a empresa que gere um dos maiores parques de centrais nucleares do mundo.

8- Marçal, David. Como Perder Amigos Rapidamente e Aborrecer Pessoas com Factos e Ciência, Gradiva. O bioquímico e comunicador de ciência que escreve regularmente no Público disseca o mundo de hoje, largamente irracional, numa perspectiva eminentemente racional, baseada em factos e na ciência, neste livro com um título irónico e um prefácio meu. No mundo polarizado em que vivemos, é natural que alguns dos seus textos, bem escritos e documentados, sejam polémicos. 

9- Sapolsky, Robert M., Determinado. Uma ciência da vida sem livre-arbítrio. Temas e Debates. O professor de Neurologia da Universidade de Stanford, na Califórnia, e autor de Comportamento. A Biologia Humana no nosso melhor e no nosso pior (também na Temas e Debates), analisa nesta sua nova obra a complexa questão da nossa liberdade individual, que nos permite tomar decisões. É um problema não só biológico como filosófico.

10- Soares, Luísa Ducla, Carlos Fiolhais; e Daniel Completo, com ilustrações de Cristina Completo. No Mundo dos Porquês. A ciência cantada e contada. Canto das Cores. Livro infantil que apresenta cantigas sobre questões de ciência com poemas da primeira autora que o terceiro musicou (o código QR permite ouvi-las). Eu forneci respostas científicas simples. Só está acessível na editora.

11- Tulleken, Chris Van. Pessoas Ultraprocessadas, Porque comemos comida de plástico e não conseguimos parar de comer? Lua de Papel. O médico infecciologista inglês que é professor no University College de Londres e trabalha no Hospital de Doenças Tropicais dessa cidade insurge-se contra a indústria alimentar que coloca nos alimentos produtos químicos que criam habituação. Deveríamos talvez processar quem nos ultraprocessa!

12 - Tyson, Neil de Grasse e Walker, Lindsay. Para o Infinito e Mais Além. Uma viagem de descoberta cósmica, Gradiva. O norte-ameericano Tyson, autor de Astrofísica para Gente com Pressa (também na Gradiva), é um dos divulgadores de ciência mais brilhantes da era pós Carl Sagan, com quem aliás contactou. Walker é uma comunicadora de ciência. Juntos fizeram um belo volume ilustrado que nos conduz aos mistérios do cosmos, alguns deles bem longe da Terra. A tradução é minha. Como os outros livros desta lista, pode ser um belo presente de Natal.

Boas festas com boas leituras!

À MARGEM DAS REGRAS

Por A. Galopim de Carvalho

Em tempo de paz, sem perspectiva de guerra no horizonte, e feita a recruta, a vida no quartel, nos anos em que a vivi (1952-1954), era uma pasmaceira. Cumpridas as tarefas que a todos competiam, o resto do tempo era uma espera para o dia seguinte.

Uma regra de ouro de um miliciano era estar “desenfiado”, um termo militar, muito usado em artilharia, que quer dizer fora do alcance da vista. Outra regra era, no caso contrário, dar a impressão de que se ia em serviço, com passo firme, decidido e, de preferência, com um papel na mão. Estar à vista, parado ou a deambular sem destino, era condição quase certa para que um superior o chamasse e lhe desse uma qualquer incumbência que, na maior parte dos casos, ele havia recebido de um superior dele.

Por exemplo, o comandante do regimento encarregava o segundo-comandante de resolver uma dada tarefa. Este, um tenente-coronel, chegando ao seu gabinete, mandava uma ordenança chamar um major, a quem entregava da sua resolução. Por sua vez, este graduado declinava-a num capitão. E era nesta fase que um subalterno como eu podia ser apanhado, se estivesse à vista, com ar de desocupado.
– Ó nosso alferes!
– Eu, meu capitão?
– Sim, você! Vê aí mais alguém? Vá ao parque auto e confira este inventário. 

E agora, das duas uma: ou eu tratava, pessoalmente, do assunto ou, o que era mais certo, chamava um furriel, que sempre descobria um cabo que acabava por fazer o trabalho. Cumprido este, o nosso cabo entregava-o ao furriel e, através da mesma cadeia, mas agora em sentido inverso, o dito inventário, conferido, chegava às mãos do comandante. Era, pois, sempre em passo rápido, decidido, e com um rolo de papel na mão que, nas muitas tardes de ociosidade, atravessava a parada, a caminho das cozinhas ou da oficina do sargento carpinteiro. Das cozinhas porque aí, de vez em quando, me juntava a meia dúzia de rapazes da minha geração, independentemente das graduações de cada um, para saborearmos uns queijos do Redondo, um tinto das Cortiçadas, um coelho frito trazido pelo furriel Silva, caçador num fim de semana de licença, ou de umas farinheiras assadas vindas do fumeiro dos pais do 127 de 53.

O chefe cozinheiro, um soldado pronto, rapaz com quem eu jogara à bola (de trapo) no grande terreiro dos Salesianos, que participava nestas confraternizações, arranjava-nos um canto resguardado, sendo exímio na preparação dos petiscos, não raras vezes retirados do caldeirão do rancho, condimentados e apurados à parte e a preceito. Todos sabíamos que aquele convívio era passível de procedimento disciplinar, mas nunca houve uma denúncia e só são boas as recordações desses momentos. Outra das fugas que, com relativa frequência, fazia dentro do quartel, tinham por alvo a oficina do sargento carpinteiro. Autodidacta em muitos saberes e de uma notada sensibilidade poética, era um artista a trabalhar a madeira, encafuado no seu espaço, para ele um santuário. O quotidiano do quartel, praticamente, apenas o solicitava para trabalhos menos nobres, rudes, tais como fazer um caixote, colocar umas prateleiras, armar um alpendre ou um estrado na parada, em dia de cerimónia militar. Tudo isto ele fazia de bom grado, com rapidez e perfeito, granjeando a estima dos superiores, restando-lhe muito tempo para dar expressão à sua criatividade e alimento à sua curiosidade intelectual. 

Só passada a recruta, com mais tempo disponível, me apercebi que tínhamos ali um exímio marceneiro, restaurador de móveis antigos e, ao mesmo tempo, um filósofo. De estatura mediana, seco de carnes e meio dobrado pelo ofício, usava óculos de lentes cortadas a meio, só para ver ao perto, e lápis atrás da orelha. Ao canto da boca, pendida, estava sempre uma ponta de cigarro, daqueles que se enrolavam à mão, a maior parte do tempo, apagada. A passar constantemente os dedos pelos ralos cabelos, lisos, alourados, a virarem a branco, o mestre, como eu o tratava, andava o dia todo de cabeça descoberta. Perdera o bivaque ou, melhor, nunca sabia onde o deixava nem procurava encontrá-lo. Ao cruzar-se com um superior, levava a mão à altura da testa e, num gesto descontraído, e sem tirar a beata da boca, mesmo assim descomposto, fazia uma espécie de continência, sem parar. Do comandante, aos soldados, todos o aceitavam naquele seu modo de estar.

Um dia, um jovem capitão, recém-chegado ao Quartel, imbuído de militarismo, participou, por escrito, ao comandante, a falta de aprumo militar do sargento, referindo que, ao passar por ele, este lhe prestou a continência com o mesmo desalinho que lhe era habitual. Mas, o comandante, um coronel, de há muito na “casa”, chamou o jovem capitão e, pacientemente, explicou-lhe quem era o velho sargento, finalizando, com bonomia e numa bela expressão de caserna.
– Rasgue lá a merda do papel e deixe o homem em paz.

O sargento carpinteiro era uma espécie de paisano excêntrico dentro do quartel, uma excepção consentida na uniformidade própria da instituição militar A carpintaria, a um extremo do vasto campo de instrução, era um verdadeiro atelier de artista, cheio que nem um ovo, onde obras finas começadas se misturavam com restauros há muito por acabar. De chão nunca varrido, os montes de serradura e raspas acumulavam-se na base de pranchas e tábuas empinadas à parede onde, suspensa de pregos e escápulas, saltava à vista uma profusão caótica de tudo e mais alguma coisa. Ir para a oficina do sargento carpinteiro, de quem me tornei amigo, tinha o sabor da evasão. Só entrava ali, de tempos a tempos, uma ordenança a transmitir-lhe algum recado ou a chamá-lo, o que era para ele sempre uma interrupção forçada. Mais parecendo um civil, saía, então, do seu canto, com ferramentas e tábuas nas mãos ou aos ombros, em passo rápido, alheio a tudo e todos, só se sabendo ser um militar pelas divisas de segundo-sargento, quase imperceptíveis pela falta de solarine no latão de que eram feitas.

Com fama de bom jogador de xadrez, a chegada de novos aspirantes milicianos trazia-lhe parceiros para jogos intermináveis e entusiásticas conversas aos fins da tarde. A primeira vez que ali entrei trouxe-me à lembrança a oficina do mestre Roberto, onde, como já escrevi por diversas vezes, me iniciei no gosto de trabalhar a madeira, um gosto que nunca perdi. Os cantares das serras e serrotes, das plainas e garlopas, o som do ferro de pua, qual bicho da madeira, a abrir caminho, o do rebolo de amolar a dar desbaste às ferramentas de corte, voltaram aos meus ouvidos quase duas décadas depois. 

Também os cheiros das diversas madeiras, os do grude, dos vernizes e outros me trouxeram à memória aquele meu pequeno mundo onde brinquei julgando ser aprendiz. Com ele passei a conhecer muitas madeiras para além do pinho, do carvalho, do azinho ou da nogueira, que me eram familiares. Vinhático, cerejeira, andiroba, pau-santo, acácia, vidoeiro estavam ali para que as pudesse conhecer, algumas delas em antigos móveis restaurados ou à espera de o serem ou, ainda, em restos de outros. O mestre soprava-os do pó, explicava-me as suas particularidades específicas e falava-me das suas características como matéria-prima da sua arte. – Esta aqui – dizia ele, encorajado pelo meu interesse – é angelim. Resiste ao tempo como nenhuma outra. Só o fogo dá conta dela. Veio da Índia. E esta – deu-me a cheirar – é criptoméria. É oriunda do Japão, mas dá-se muito bem nos Açores.

Foram muitas as horas que passei “desenfiado” neste canto esquecido do quartel, umas dando largas a uma vocação que não tivera continuidade, outras, em longas conversas com o sargento. Curioso dos meus saberes no domínio da preparação académica que era a minha, ensinou-me outros, os que aprendera nos livros e os que a vida lhe facultara.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

NA ENCRUZILHADA DA TRANSIÇÃO DIGITAL

Um dos elementos mais centrais dos discursos curriculares vigentes – de origem política, económico-empresarial, social e, mesmo, académica – é a necessidade e urgência de transformar a educação escolar através da inovação que a tecnologia digital possibilita. Tais discursos colhem efetivamente, de modo que os sistemas de ensino se têm mobilizado para legitimar e realizar mudanças mais ou menos assinaláveis.

Neste cenário – que, na verdade, nada tem de novo –, a análise e a crítica tendem a ser afastadas, mesmo se ancoradas em trabalho filosófico e científico relevante. Acontece que a responsabilidade inerente à ação dos educadores obriga-os a manter a dita atitude, o que implica questionar, estudar e discernir, nunca perdendo de vista o ideal educativo e o que, em função dele, beneficia os alunos, entendidos como seres humanos em formação.

Considerando esta realidade, realizou-se recentemente um ciclo de conferências com o título Na encruzilhada da transição digital, integrado no projeto “O currículo escolar na contemporaneidade”, em curso no Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra (CEIS20). O ciclo que decorreu de uma colaboração entre esse Centro, a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da mesma universidade e a Associação de Professores de Latim e Grego, teve lugar na Escola Secundária Infanta Dona Maria, em Coimbra (ver aqui e aqui).

Em concreto, o ciclo incidiu na dita “transição digital” em contexto escolar, com especial incidência no uso massivo de ecrãs e teclados, explorada a partir de quatro áreas disciplinares: da Educação e da Pedagogia, da Psicologia e da Medicina, bem como da Filosofia e da Ética. 

Trata-se de uma transição, à qual se apontam virtudes inauditas e perigos sérios; onde se veem avanços consecutivos e revisões previdentes; onde se reúnem entusiasmos e ceticismos em diversas tonalidades. Por isso mesmo, deveriam ter sido procurados olhares de outras disciplinas como, por exemplo, das Neurociências, da Sociologia, da Economia, da Ciência Política, do Direito, da Antropologia, sem esquecer o da Tecnologia, mas entendeu-se que os escolhidos seriam prioritários no campo curricular. 

De um modo geral, os conferencistas insistiram na ideia de que as tecnologias digitais devem estar ao serviço da educação, e não o contrário, como aparenta acontecer. Há, portanto, que reajustar o modo como elas são integradas na escola, que deve ser pautado pela ponderação e não pela pressão e sedução exercidas por entidades não, diretamente, educativas. Notaram que o sentido a imputar à educação é de formação humana, a qual, na tradição humanista, aspira ao desenvolvimento de capacidades superiores, não se restringindo ao nível funcional. Embora tenham reconhecido o potencial educativo de algumas destas tecnologias, alertaram para os riscos de uma implementação apressada, desajustada ou descontextualizada. Ficou clara a necessidade de respeitar o papel do professor e de outros educadores bem como de manter as interações significativas na aprendizagem.

Os conferencistas basearam-se em relatórios supranacionais e documentos oficiais nacionais, em estudos científicos e reflexões filosóficas, bem como em dados empíricos que recolheram. Todavia, nem sempre expressaram as mesmas posições, reforçando a ideia de que há questões em educação que não têm uma resposta linear, sendo importante a sua exploração.

Este é o momento para tal, para refletirmos sobre os caminhos que estamos a trilhar um pouco por todo o mundo, ponderando as consequências das nossas escolhas, uma vez que nos situamos no domínio particularmente sensível que é a educação. Sobretudo, devemos ir mais além do que os discursos simplistas e superficiais nos indicam e, mesmo, daquilo que os documentos normativo-legais e curriculares preveem. Estes documentos, guias estruturantes, que não podemos ignorar, são muitas vezes influenciados por agendas económico-tecnológicas com fins diferentes dos educativos e pouco ajustados às realidades escolares e à finalidade última da educação.

Por isso, é essencial que não nos deixemos conduzir cegamente pela promessa da inovação tecnológica (que, atente-se, não constitui um valor em si mesma, toda a inovação pode ser positiva ou negativa em função, nomeadamente, de critérios teleológicos e axiológicos) sem perguntarmos quais as reais vantagens do uso de certa tecnologia na formação humana. Precisamos, sobretudo, de evitar aderir cega e acriticamente a soluções simplistas ou reducionistas que nos são oferecidas a todo o momento, à distância de um clique, de uma hiperligação, de uma “bengala” tecnológica.

A ponderação ajuda-nos a resistir à imposição das tendências mais imediatistas, permitindo traçar caminhos que respeitem a complexidade e heterogeneidade do processo educativo, no pressuposto de que as decisões que tomarmos hoje se refletirão no futuro. É que, ao contrário de outras áreas onde os erros podem ser corrigidos e os sistemas podem ser ajustados, mesmo que com custos económicos, as decisões tomadas para a educação são frequentemente irreversíveis, comprometendo a formação de crianças e jovens. Essa irreversibilidade torna qualquer implementação de “modas” pedagógico-didáticas, que muitas vezes se reduzem a imposições do mercado e conjunturas político-económicas, questionáveis, se não tiverem um respaldo ético e científico consolidado.

Na verdade, a educação escolar é um campo onde a prudência deve prevalecer, pois cada escolha toca diretamente o direito fundamental, que todos têm, de chegar aos mais elevados patamares de desenvolvimento humano. Como educadores e futuros educadores, precisamos de preservar a essência da educação como um contexto de interação significativa onde esse desenvolvimento acontece. O digital pode ser um aliado poderoso, mas nunca substituto da relação pedagógica, onde o “milagre” do ensino e da aprendizagem acontecem.

Enfim, e voltando ao título – Na encruzilhada da transição digital –, encruzilhada quer dizer cruzamento, entroncamento, lugar onde diversos caminhos se intersetam, mas que exige decisão quanto ao percurso a seguir. Por onde devemos ir? Cabe-nos, de facto, escolher os caminhos que se afiguram mais seguros e sustentáveis, que valorizem os alunos e os professores e a escola como instituição educativa, que reconheçam a educação como uma tarefa humana. 

Isto implica um diálogo contínuo e desinteressado tão difícil de conseguir, mas absolutamente indispensável.

Maria Helena Damião, Célia Mafalda Oliveira, Cátia Delgado e Isaltina Martins

O GRANITO PARA LÁ DE GEOLOGIA

Por A. Galopim de Carvalho

Anta Grande do Zambujeiro

Entre os muitos monumentos megalíticos, de tipo dolmen, existentes em Portugal, a Anta grande do Zambujeiro, junto à Herdade da Mitra, próximo de Valverde (concelho de Évora), é uma das maiores existentes na Península Ibérica. Declarada Património de Interesse Nacional, em 1971, encontra-se actualmente em sério risco de colapso e num lamentável estado de degradação. 

Datada de há 6000 a 5500 anos, é formada por uma câmara poligonal, limitada por sete grandes esteios, na ordem dos 8 metros de altura bem cravados no chão, O chapéu com cerca de 7 metros de diâmetro, está partido e jaz a poucos metros da câmara. Entra-se aqui por um corredor com 12 metros de comprimento, 1,5 metros de largura e cerca de 2 de altura. À entrada um enorme esteio tombado, que não chegou a ser utilizado.

Todo o espólio reunido na escavação (por Henrique Leonor Pina) está guardado, mas não estudado, no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora.

Oportunamente, propus à autarquia que incluísse no programa de Évora capital europeia da Cultura, em 2027, a conclusão do projecto concebido para a sua conveniente utilização como monumento visitável.

Cromeleque dos Almendres

Exemplo maior do megalítico europeu, o cromeleque dos Almendres orientado segundo a direcção poente-nascente, desce do chamado Alto das Pedras Talhas (413 m de altitude) por uma encosta suave bem alentejana voltada a leste na Herdade dos Almendres, localizada na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, a cerca de 12 km a oeste da cidade de Évora, com fácil acesso a partir da estrada nacional de Évora para Lisboa, ao km 10.

Diga-se, antes de mais, que a palavra cromlech, do galês antigo, que quer dizer pedra grande arredondada, já era usada no século XVII para designar este tipo de monumento megalítico. Nela, o elemento lech significa pedra.

Muitos dos megálitos (nome de cada uma destas pedras grandes, do grego mega, grande, e lithos, pedra) ali reunidos têm a forma ovóide dos grandes recipientes de barro, as ditas talhas, em que, no Alentejo, se fermentava o mosto e guardava o vinho e, daí, o nome do sítio. São todos de granito (lato sensum), entre granodioritos e quartzodioritos, de vários afloramentos da região, alguns transportados de distâncias superiores a 2 km.

Guindado à condição de maior conjunto de menires da Península Ibérica, o Cromeleque dos Almendres é considerado um dos maiores e mais importantes monumentos deste tipo no mundo, bem mais antigo do que o conhecidíssimo Stonehenge, e pôs o Alentejo e Portugal na rota de especialistas neste domínio do saber.

Datado de há cerca de 7000 anos, no Neolítico, segundo alguns autores, este cromeleque, que é constituído por dois recintos geminados, um maior de forma elíptica, a poente, e um menor e circular, a nascente, edificados em épocas distintas, aponta no sentido da sedentarização do povo que aqui viveu. Estudos arqueológicos realizados no local por especialistas fazem supor que o conjunto foi edificado em diferentes etapas, durante o Neolítico, Uma no final do Neolítico antigo (fim do sexto milénio a.C.), com a reunião de um conjunto de menhires de pequeno tamanho, agrupados em três círculos concêntricos (o maior com cerca de 20 m de diâmetro). Outra com a formação de duas elipses concêntricas (a maior com cerca de 44 m por 36 m) coladas a oeste dos citados círculos de recinto mais antigo. Uma última, no Neolítico final (terceiro milénio a.C.) com modificações dos dois recintos, em particular do menor, transformado num átrio do recinto maior.

Quando completo, o conjunto dos menhires teria ultrapassado a centena, de tamanhos diversos. Destes, ainda restam noventa e dois, desde os mais pequenos, pouco ou quase nada afeiçoados, aos maiores (com 2,5 a 3 metros de altura), lembrando as ditas talhas, em muito bom estado de conservação, uns com pequenas covas centimétricas (covinhas) e outros decorados, exibindo relevos ou gravuras.

Classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1974, e como Monumento Nacional, em 2015, o Cromeleque dos Almendres, descoberto em 1964 por Henrique Leonor Pina foi, desde então, objecto de várias acções de escavação e restauro. Faz parte do universo megalítico eborense e está relacionado com diversas antas, com destaque para a do Zambujeiro, bem perto dali, e dois outros monumentos próximos, os Cromeleques da Portela de Mogos, e Vale Maria do Meio.  

Menhir dos Almendres

Importante megálito de granito porfiróide, menhir é o que o vulgo chamava pedra alçada ou “pera fita” de forma fálica, com cerca de 3,5 metros de altura a partir da superfície do terreno e secção, grosso modo, elíptica com 1,20 x 0,80 metros. 

Está localizado na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, no concelho de Évora, no topo de uma encosta, 1,3 km a nordeste do Cromeleque dos Almendres, supondo-se haver íntima relação, entre ambos, dado que o seu alinhamento coincide com o nascer do Sol no Solstício de Verão.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

BANCOS DÃO AULAS, PROFESSORES OPERAM EM BANCOS. NÃO SOA BEM, POIS NÃO?

MAS, O QUE É QUE NÃO SOA BEM?
POR CERTO, OS PROFESSORES A OPERAREM EM BANCOS. 
POIS A PRÁTICA "BANCOS A DAR AULAS" TEM COLHIDO. 
TEM COLHIDO JUNTO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, DE ESCOLAS E DE PROFESSORES.

Como presumo que seja do conhecimento muito geral, no ensino obrigatório, a Educação para a Cidadania, agora designada por Cidadania e Desenvolvimento, inclui a Educação Financeira

Desde o seu surgimento que, tal como em quase todas as outras áreas de educação para a cidadania (que são pelo menos dezassete), nela participam empresas, sobretudo bancos e seguradoras.

No passado ano lectivo essa participação foi reformulada dando origem à iniciativa "Banco da Minha Escola", promovida pela Associação Portuguesa de Bancos (APB). Atente-se no slogan e nas palavras da responsável pelo projeto de Educação Financeira dessa Associação (ver aqui, os destaques são meus.

Imagem recortada daqui

"Numa iniciativa inédita a nível nacional, a Associação Portuguesa de Bancos (APB) e os principais bancos a operar em Portugal vão andar nas escolas de Norte a Sul do país a promover a literacia financeira. Ao longo do ano letivo, mais de 50 colaboradores dos bancos associados da APB, vão trocar o banco pela escola e ajudar 3 800 alunos do 3º ciclo e ensino secundário, a conhecer e compreender alguns conceitos fundamentais para o planeamento e gestão financeira do seu dia-a-dia (....

O projeto [Banco da Minha Escola] só é possível graças ao apoio dos bancos que integram o Grupo de Trabalho de Educação Financeira da APB e dos respetivos voluntários (...)

O empenho e envolvimento das escolas e dos professores, que já trabalham com a APB nestas iniciativas, tem sido também fundamental (...)

Tal como tem sido referido pelo presidente da APB (...), dispor dos conhecimentos práticos necessários para lidar com o dinheiro no dia a dia, é hoje um saber básico tão importante para a vida social como o ler, escrever e contar (...)

Sentimos que, quer as Escolas, quer os Professores, necessitam de apoio para este tipo de conteúdos mais específicos e estamos certos de que, enquanto setor, podemos e devemos ter um valor acrescentado nesta matéria. Por isso, decidimos avançar com este projeto de forma mais estruturada e contínua ao longo do ano letivo.

Um Projeto com mais de uma década Desde que foi criado, em 2011, e com a ajuda de 14 bancos associados, o projeto de Educação Financeira da APB tem procurado fomentar os níveis de literacia financeira da população em geral, com particular foco nos segmentos considerados mais vulneráveis, como os jovens e os seniores."

Sendo considerado um projecto de sucesso (não duvido que o tivesse sido para os bancos), neste ano pôr-se em marcha a segunda edição, abrangendo mais escolas e, obviamente, mais professores e mais alunos.

Imagem recortada daqui
 
Quem sem interessar pelos desígnios da escola pública, para os quais todos contribuímos, deve consultar o projecto de Educação Financeira no site da Associação Portuguesa de Bancos (aqui). Presumo que fique devidamente esclarecido.
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Nota
: Não, não sou contra educar para a cidadania na escola pública; de resto penso que educar implica necessariamente formar para uma existência cidadã. Porém, o que se abriga debaixo do cada vez maior guarda-chuva que se teima em designar por educação para a cidadania é... o que o leitor percebeu.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

MANIFESTO PARA O ENSINO E APRENDIZAGEM EM TEMPO DE GenAI

 Por Maria Helena Damião e Cátia Delgado

Assinado por académicos de diversos países do mundo, foi publicado no passado dia 29 de Novembro, na revista Open Praxis, o seguinte Manifesto com foco no ensino superior (aqui):

No RESUMO, os seus muitos autores explicam o espírito que os moveu: 

No manifesto examina-se criticamente o desenvolvimento da integração da IA Generativa (GenAI), chatbots e algoritmos no ensino superior (...). A GenAI, apesar de lhe serem imputadas vantagens na personalização da aprendizagem e na eficiência das acessibilidades, está longe de ser uma ferramenta neutra. Os algoritmos moldam a interacção humana, a comunicação e a criação de conteúdos, levantando questões profundas sobre o que é o ser humano, sobre a sua acção e sobre os preconceitos que veicula. A evolução da GenAI coloca-nos desafios na manutenção da ideia do humano, no que respeita à salvaguarda da equidade e de experiências de aprendizagem significativas. Neste manifesto destaca-se que a GenAI não é ideológica e culturalmente neutra. Em vez disso, reflecte visões de mundo que podem reforçar os preconceitos existentes e marginalizar diversas vozes. Como o uso da GenAI remodela a educação, faz correr o risco de desgastar elementos humanos essenciais - criatividade, pensamento crítico e empatia - e pode substituir interações com soluções algorítmicas. Este manifesto apela a medidas robustas e baseadas em evidências para uma tomada de decisão consciente no sentido de garantir que o GenAI melhore, em vez de diminuir, a capacidade humana de agir, bem como relembrar a responsabilidade ética na educação.

Em concreto, explicam PORQUÊ UM MANIFESTO? 

(...) o aparecimento público [da GenAI] no final de 2022 gerou, sem dúvida, especulações substanciais, exagero e até esperança. Em tempos tão incertos e especulativos, é crucial adoptar uma abordagem colectiva para navegar efectivamente no futuro, objectivo que os autores procuram alcançar com este trabalho colectivo. Com este manifesto, resistimos à aceitação acrítica da GenAI; em vez disso, procuramos uma perspectiva equilibrada analisando criticamente tanto os seus desafios como as suas possibilidades. Um manifesto, por definição, serve tanto como aviso como chamada de atenção, instando-nos a reconsiderar abordagens anteriores, à medida que avançamos (Latour, 2010) (...). Em vez de se repetirem slogans que compõem a narrativa educacional, aprofunda-se a compreensão da GenAI, procurando-se aumentar uma consciencialização que nos ajude a navegar na formação do futuro. [ver no manifesto dois quadros que sistematizam os aspectos considerados mais negativos e mais positivos da da GenAI, bem como a sua explicação]

E fazem, "humildemente", um AGRADECIMENTO "aos pioneiros que sonharam a inteligência além do pensamento humano". Dizem:

"O seu brilho iluminou o nosso caminho e seus legados permanecem em cada linha de pensamento e cada pergunta ainda sem resposta. Por isso, somos-lhes eternamente gratos"

Destacamos dois deles:

• Para Isaac Asimov, cujas Três Leis da Robótica sussurraram possibilidades através da ficção, despertando a imaginação e inspirando os dilemas éticos de um futuro que ainda está por vir.
• E Alan Turing, cuja pergunta atemporal (As máquinas podem pensar?) ainda ecoa, permitindo-nos explorar as profundezas da cognição e da criatividade. O (...) Teste de Turing, continua a ser um farol que nos guia através do labirinto do que significa conhecer, sentir, ser.

Vale muito a pena pelo menos passar os olhos por este Manifesto.

APRENDER A GOSTAR DE SABER

É com o maior gosto que o De Rerum Natura deixa aqui nota da apresentação do mais recente livro do Professor António Galopim de Carvalho. Agradecemos ao autor ter-nos facultado o índice e o texto do Prefácio.

ÍNDICE

ARTE
Modernismo ao alcance de todos
Arte Nova de Art Déco
O Surrealismo e a barrística de Rosa Ramalho
FICÇÃO
As férias da Inês
O fim do trabalho “de sol a sol”
Presbiopia na Feira de São João
Os “filhos da curta”
Apocalipse
FILOSOFIA
Pensar sobre o pensamento
Espreitar para dentro da filosofia
O berço da civilização ocidental
2200 anos antes da Tabela Periódica
GEOGRAFIA
Um saber nascido na Grécia antiga
Grande mestre e grande humanista
A “Planície” alentejana
A nova “Tetralogia mediterrânea”
Desertos e desertificação
Montes Hermínios
O Würm em Portugal
Arquivos da Natureza
Tagus, amnis hiberus maximus
O pré-Tejo e a sua foz
GEOLOGIA
O renascer da geologia clássica em Portugal
O pai da Tectónica de Placas em Portugal
Um grande professor e um cidadão de excelência
Primórdios da Geologia
Rochas, um conhecimento ao alcance de todos
Galopimito
Lapis philosophorum
As Pedras as palavras
Solo, a fronteira entre a roca e a vida
Geologia do vinho
Petrificados
Catastrofismo, Criacionismo e Uniformitarismo
A subalternização da Geologia no nosso país
É preciso elevar a cultura geológica dos portugueses
Reflexão sobre o ensino da Geologia
Açores, um laboratório de Geologia vulcanológica desperdiçado
HISTÓRIA
Transmutação, uma metáfora da purificação espiritual
Feudalismo para gente com pressa
Nos primórdios da grande epopeia
LITERATURA
O soneto em José Caniné
Decameron, obra-prima pioneira da literatura realista mundial
François Rabelais, o mais notável fundador da moderna literatura francesa
MEMÓRIAS
À margem das regras
Alfredo Cadeireiro, pintor de mobília alentejana
Literatura à mesa, depois do jantar
Os magalas
À luz do acetileno
A minha primeira crónica
A vénia pela matemática
O repentista
REFLEXÕES
Sobre o ensino da Geologia em Portugal
Os profissionais da comunicação social e nós
Uma vida em 366 palavras
Um esclarecimento
As mochilas escolares

PREFÁCIO

"O livro de alguém que continuará a existir depois de todos partirmos. Este prefácio arrisca-se, e logo ao primeiro parágrafo, a ser profundamente redundante, mas ainda assim arrisco: António Galopim de Carvalho é um farol, um dos poucos que nos consegue iluminar com uma sabedoria feita de procura da simplicidade, de encontro diário com um mundo que continua a valer a pena nos seus olhos ávidos e inquietos, esperançosos e otimistas – mesmo quando escreve palavras tristes ou cansadas é sempre a esperança que nos ocorre.
“Aprender a Gostar de Saber” é um livro obrigatório. Pode ser lido hoje ou amanhã, mas pode também ser lido numa qualquer eternidade pelos netos dos nossos netos. Há memória, mas o passado em tudo o que faz é sempre futuro. Quando nos escreve sobre o que lhe sabia a comida na infância, conseguimos sentir o cheiro do que nos faz falta; quando nos conta de episódios que só a ele importariam, são os nossos episódios que vamos buscar; quando nos fala de ser professor, ambicionamos uma escola que não existe; quando nos exalta com a geologia, navegamos num sonho mais largo; quando nos confessa detalhes familiares da sua relação com Isabel, ou dos seus dois filhos, é ternura e compromisso e amor; quando nos diz do Alentejo, e dos seus cismas, percebemos tudo o que é aquele lugar e as suas sombras.

António Galopim de Carvalho deixa-nos estes textos quando acaba de completar 93 anos. Nasceu em 1931, antes de Hitler se apresentar a mundo, antes até da Guerra Civil Espanhola. Os seus olhos viram muito sobre a história e a condição humana. Nasceu num lugar agreste e isolado e nunca foi bom aluno até ser um grande aluno na universidade. Quem seria capaz de dizer em Évora que aquele menino, irmão de Francisco José, estrela da música portuguesa, um dia viria a tornar-se um dos melhores portugueses, um dos cientistas mais reconhecidos, um dos professores mais aplaudidos, um dos defensores da nossa identidade histórica mais apaixonados e o diretor do Museu de História Natural mais emblemático e popular? Quem adivinharia? Bastaria estar atento às suas fotografias de criança e adolescente. Aqueles olhos cheios de curiosidade e espanto, aquela vontade de saber, de se encontrar, de partir à conquista de um mundo maior, mais largo, menos aprisionado a um destino que nos obriga a desistir de sonhar. Bastaria isso para termos percebido que o pequeno António um dia poderia ser o que quisesse ser. E ele foi o que quis ser. Com Isabel, sua companheira de sempre, navegou para fora de pé sem ter garantias de nada, apenas a sua curiosidade o poderia ajudar na tentação do acomodamento.

“Aprender a Gostar de Saber” é um livro para pais com crianças na escola. Um livro para os mais velhos e mais novos. Uns encontrarão o que são ou poderiam ter sido. Outros, ensinamentos que são puro ouro para quem caminha sem bússolas visíveis. Um livro também para os que gostam de viver e para os que têm dúvidas. Uns por perceberem o quanto a sua intuição estava certa, os outros pela constatação de que perderam um tempo que agora podem recuperar.

António Galopim de Carvalho é um dinossáurio. Não é o avô ou o pai dos dinossáurios, ele é um deles. Há 65 milhões de anos resistiu à extinção quando não se esperava que o fizesse. E hoje, tantas dezenas de milhões de anos depois, há quem não acredite que conseguiremos resistir à turbulência que causámos ao planeta. Oiçamo-lo então. Passemos pelos seus textos sem pressa, aprendamos com quem sabe do que está a falar. Afinal, ele é eterno e veio para nos contar estórias que fiquem antes do sono. Estórias que nos impeçam de adormecermos para a necessidade de não desistirmos, de continuarmos a combater por uma ideia de bem. Eis é um livro obrigatório de um homem que continuará a existir depois de todos partirmos. Um farol que ilumina quem o lê com a luz dos sábios."

Outubro 2024
Luís Osório

sábado, 30 de novembro de 2024

NO PRINCÍPIO ERA O MAGMA

Por A. Galopim de Carvalho
 
Após a acreção do protoplaneta que antecedeu a formação deste maravilhoso corpo planetário que nos deu berço, e na sequência dos processos que determinaram a sua diferenciação como planeta (nomeadamente e em especial, a contracção gravítica e a formação núcleo), a Terra acumulou uma quantidade de calor tal que se converteu numa imensa “bola” incandescente.
 
Durante as primeiras centenas de milhões de anos, este nosso hoje “Planeta Azul” esteve envolvido num “oceano” de magma, em resultado da fusão da sua parte mais externa, “oceano” cuja profundidade teria sido da ordem de algumas centenas de quilómetros. Foi a partir da capa mais superficial deste invólucro ígneo que, por arrefecimento posterior, se formou a primitiva crosta terrestre (com mais de 4000 milhões de anos, praticamente desaparecida na sequência da contínua renovação da crosta determinada pela chamada tectónica de placas), separada de uma outra entidade, que se lhe segue em profundidade, também ela já parcialmente arrefecida, a que foi dado o nome de manto.

Entendendo por magmatismo o processo natural através do qual um material fundido, a que se convencionou chamar magma, conduz à formação das rochas (ditas magmáticas), temos de concluir que este processo geológico é uma constante na história do nosso planeta (e do Sistema Solar) e que está na origem de todos os tipos de rochas (petrogénese). Com efeito, não haveria rochas sedimentares sem as magmáticas preexistentes, nem rochas metamórficas sem que, pelo menos, tivesse existido um destes dois tipos de rochas. É, assim, lícito pensar que o mesmo acontece nos planetas telúricos, nossos vizinhos, e noutros de outros sistemas planetários da nossa e de outras galáxias.

O magmatismo é, pois, uma das fases da evolução da matéria no quadro universal da sua história, como são, entre outras:
- a nucleossíntese que dá nascimento aos elementos químicos, em grande parte no interior das estrelas e na sequência das explosões (supernovas) que lhes ditam o fim; e
- a quimiossíntese que, por junção dos elementos químicos, dá origem aos compostos, entre os quais os minerais, fase esta que inclui o magmatismo e os restantes processos petrogenéticos, para além de outros, como são os biogénicos.

Foi através do magmatismo que a Terra, em formação, libertou uma atmosfera primitiva, rica (entre outros componentes) em vapor de água e dióxido de carbono. Foi a partir deste vapor de água que se formou, por condensação, grande parte da hidrosfera. E, na medida em que a vida foi gerada nas águas, torna-se evidente a sua dependência do processo magmático. Assim, é lícito pensar que, sem magmatismo, a biodiversidade, tal como a conhecemos, não teria existido.

Também os seres das profundidades oceânicas associadas a fontes hidrotermais e a chaminés negras (um ecossistema muito particular que só há mais de três décadas foi conhecido) dependem absolutamente da actividade magmática, neste caso, submarina.

Do mesmo modo, a atmosfera actual (a que hoje respiramos e que diariamente poluímos em nome do chamado desenvolvimento), na qual o oxigénio resulta da actividade biológica das plantas com clorofila, é uma consequência, embora indirecta, do magmatismo.

Os magmas que, desde a existência de uma litosfera (conjunto da crosta e da capa rochosa do manto nascidas da diferenciação do planeta) geraram e continuam a gerar as rochas que, por isso, apelidamos de magmáticas, nasceram e continuam a nascer da fusão de rochas da crosta ou do manto superior, a temperaturas que variam entre cerca de 850°C, num xisto argiloso, em profundidade, na crosta continental, e em presença de água, e cerca de 1300°C num peridotito do manto, na ausência de água. No que se refere às pressões, o fenómeno pode verificar-se entre cerca de 3 a 4 atmosferas, a 10 km de profundidade, e várias dezenas de atmosferas, 100 km mais abaixo.

Ao nível da crosta a fusão dos materiais rochosos, isto é, a geração de um magma acontece associada ao metamorfismo de grau mais elevado, no decurso da formação de uma cadeia montanhosa (orogénese). No manto, a fusão é praticamente anorogénica, isto é, não envolve compressões tangenciais. Está, sim, relacionada com movimentos verticais e diminuição de pressão ou com penetração de fluidos aquosos.

A comparação frequente do magma com a lava incandescente ou ígnea saída dos vulcões, embora sugestiva, não é correcta. Deve acentuar-se que a lava já não é, exactamente, um magma, dado que, ao descomprimir-se na saída para o exterior, perde parte dos seus componentes gasosos (vapor de água, dióxido de carbono, entre outros) e, ao arrefecer, permite a cristalização (solidificação) prematura de alguns minerais (como é o caso dos cristais de olivina ou de augite em alguns basaltos) que, por acção gravítica, decantam no fundo da câmara magmática, saindo também desse fundido, empobrecendo-o. Um material assim, como o que se vê transbordar do vulcão e fluir à superfície, em que coexistem grãos cristalinos (sólidos), material ainda fundido e apenas parte dos gases que inicialmente o formavam, já não deve ser considerado um verdadeiro magma embora tenha mobilidade.

É curioso assinalar que, na origem, a palavra “magma significa” “massa empedernida”. Não obstante este significado, a petrologia adoptou essa mesma palavra para designar o material ainda em fusão (na totalidade ou em parte) que, por arrefecimento, consolida e, só então, se torna pedra.

Do ponto de vista composicional, o magma pode ser então definido como um fundido de substâncias químicas, na grande maioria silicatos, existente em zonas mais ou menos profundas do planeta que, em virtude da temperatura e da pressão a que está sujeito, se mantém, pelo menos em parte, no estado líquido e, como tal, flui, ou seja, tem mobilidade. Neste banho e com uma representação muitíssimo inferior à dos silicatos, podem existir óxidos, em particular os de ferro, de titânio e de crómio, sulfuretos, fosfatos e carbonatos.

Como numa sopa quente, além do caldo, que nesta imagem exemplifica a parte fundida, podem coexistir no magma fases sólidas, representadas pelos minerais, e gasosas (vapor de água, dióxido de carbono, gás sulfídrico e outros) que lhe são próprios, de que podemos ter uma ideia através das manifestações secundárias do vulcanismo, como são as mofetas e as sulfataras. As fases sólidas, quando presentes no magma, estão expressas pelos minerais que, por serem mais refractários (isto é, com um ponto de fusão mais elevado), cristalizaram prematuramente no seio do líquido magmático, o que não impede a mobilidade do conjunto, que poderá fluir enquanto houver uma fase fluida, ainda que residual, a assegurar-lhe essa característica implícita na própria definição de magma. É o que acontece, como se disse atrás, com os cristais de olivina e ou de augite em certas lavas de natureza basáltica. Como ingredientes fundamentais do magma figuram quase sempre pouco mais de uma dezena de elementos químicos, os mais abundantes na crosta terrestre, e, por isso, ditos principais ou maiores (do inglês “major elements”), cujas percentagens, respectivamente, em peso e em volume são:
Oxigénio (O): 46,6% peso; 93,8 % volume
Silício (Si): 27,7% peso; 0,8 % volume
Alumínio (Al): 8,1% peso; 0,5 % volume
Ferro (Fe): 5,0% peso%; 0,4% volume
Cálcio (Ca): 3,6% peso%; 1,0% volume
Sódio (Na): 2,8% peso; 1,3% volume
Potássio (K): 2,7% peso; 1,8 % volume
Magnésio (Mg): 2,1% peso; 0,3 % volume
São estes, pois, os principais constituintes dos minerais das rochas magmáticas, entre os quais, como se disse, os silicatos que, por si só, representam cerca de 99% da crosta terrestre. A análise química destas rochas revela, ainda, manganês, fósforo, titânio, carbono, enxofre e hidrogénio praticamente sempre presentes, embora em muito menores percentagens.

Parte da água inicialmente contida no magma entra na composição de certos minerais, outra perde-se, quer em profundidade, no interior da crosta, indo alimentar outros processos petrogenéticos, quer à superfície, no vulcanismo. É esta água no estado de vapor que, com o dióxido de carbono e outros gases de menor representatividade igualmente libertados do magma, se evola nas erupções vulcânicas, originando os espessos “fumos” brancos que se dispersam no ar, acompanhando quer as projecções sólidas de piroclastos, quer a saída e progressão da lava.

Para além dos já referidos elementos principais ou maiores (por definição, aqueles cujas percentagens, em peso, nas rochas é superior a 1%), há ainda a considerar os elementos menores (do inglês, “minor elements”), entre os quais bário, chumbo, cobre cobalto, níquel, ouro, prata e muitos mais, cuja presença nas rochas se situa, em termos percentuais, abaixo de 1%. Nestes há que distinguir elementos secundários (entre 1% e 0,1%) e elementos vestigiais ou elementos-traço (do inglês, “trace-elements”) que, como o nome indica, estão representados em quantidades ínfimas. A presença de elementos-traço na composição dos minerais e das rochas é hoje fácil e rotineiramente pesquisada nos estudos petrológicos e geoquímicos. Consoante o rigor exigido pelas análises ou possibilitado pelos equipamentos disponíveis, a sua quantificação é expressa em ppm (partes por milhão) ou em cifras ainda menores, em ppb (partes por milhar de milhões). O termo oligoelemento (do grego, “oligós”, ínfimo), usado por alguns autores, é ambíguo, pois tem sido usado quer como sinónimo de elemento menor quer como de elemento-traço.

No que se refere ao nosso planeta, o magmatismo foi e é uma constante na respectiva dinâmica global, quer sob a forma de vulcanismo e subvulcanismo (ascensão de magma que acaba por arrefecer e solidificar a pequena profundidade, antes de atingir a superfície, como aconteceu com os maciços de Sintra, Sines e Monchique), quer de plutonismo (arrefecimento e solidificação em profundidade). Pelo que conhecemos da história da Terra, temos de admitir que o magmatismo sempre antecedeu e antecede os outros dois processos petrogenéticos (a sedimentogénese e o metamorfismo). Com efeito, só depois das primeiras rochas (magmáticas) formadas à superfície da Terra estarem expostas aos agentes externos é que pôde ocorrer a sua erosão seguida de sedimentação e/ou a sua transformação em rochas metamórficas

Teresa Barata - Fotografias do Sol

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

UMA ESTRATÉGIA DE MARKETING EM ASCENSÃO: ESTUDOS DE EMPRESAS E FUNDAÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO

Atente o leitor nos seguintes títulos do Público (aqui) e do Diário de Notícias (aqui)

  

Abstraindo-se da alusão à importância do brincar na infância, algo lhe causa estranheza?

Talvez sim...

Talvez tenha notado como estranho o mesmo que eu noto sempre que vejo títulos congéneres, aludindo a estudos científicos (aqui seriam precisas aspas) sobre temas educativos realizados por empresas e  fundações ligadas a empresas. Em Portugal começam a abundar.

Acontece que, por muito neutros que esses estudos se apresentem, a verdade é que não podem deixar de estar vinculados à "filosofia" das entidades que os financiam, mesmo que elas confiram a maior liberdade aos investigadores (que, tacitamente, saberão até onde podem ir). Além disso, a sua realização e (amplíssima) divulgação estão, como é natural, incluídas nas estratégias de marketing das ditas entidades. Não será, em primeiro lugar, o velho amor desinteressado ao conhecimento que as move.

Não me parece, pois, que se possam considerar estudos científicos, no sentido mais nobre que esta expressão tem. Com isto não quero dizer que os estudos produzidos nas academias e centros de investigação públicos estejam acima de qualquer suspeita, até porque a relação entre empresas/fundações e academias/centros de investigação vê-se progressivamente reforçada, além de que as lógicas comerciais não estão apenas à porta destas últimas entidades, já entraram.

E devo dizer que há estudos e... estudos promovidos por empresas/fundações. Se uns apresentam dados que, muito em função de quem os assina, poderemos considerar confiáveis, outros são obviamente para afastar.

Quanto a este que mobilizou a imprensa internacional (verifiquei e assim é), valerá a pena passar os olhos pelo relatório (aqui e aqui). As imagens (confesso que não dei muita atenção ao texto) são... tão óbvias!


quinta-feira, 28 de novembro de 2024

MINERAIS E CRISTAIS, MINERALOGIA E CRISTALOGRAFIA

Por A. Galopim de Carvalho 

Os minerais estão no nosso quotidiano. Nas pedras das calçadas, na areia com que se faz o vidro, nas matérias-primas de todos os metais que nos asseguram a sociedade industrial, nas joias de quem as pode usar e no sal de que nós, portugueses, abusamos.

Todos falamos de minerais com base num conhecimento vulgar, empírico, ligado à experiência do dia-a-dia. Minas, minérios e mineiros fazem parte do vocabulário popular por razões óbvias ligadas a um vasto e velho sector primário da economia. Não há sítio onde não se fale de minas, nem que seja de minas de água. “Mina”, nome que recebemos através do francês “mine”, significa escavação na terra e parece radicar na cultura céltica, vivida por um povo ao qual se deve a metalurgia do ferro.

O conceito mais divulgado de mineral diz que, além de natural, tem de ser sólido, ter uma composição composição química variável dentro de limites bem estabelecidos e ter uma estrutura cristalina bem definida, caracterizada por uma disposição geométrica dos seus átomos, segundo redes tridimensionais, próprias de cada espécie. 
 
Diz-se, então que os minerais têm estrutura cristalina. Um outro conceito, mais simples e mais abrangente, diz, simplesmente, que mineral é todo o elemento ou composto químico, geralmente cristalino, gerado por um processo geológico.

Desde a Antiguidade e até, pelo menos, ao século XVIII, acreditou-se que os cristais de quartzo hialino, isto é, incolor e transparente, eram ocorrências de água no estado sólido, num grau de congelação tão intenso que era impossível fazê-los voltar ao estado líquido.

Aristóteles (384-322 a.C.) chamava “cristal” ao gelo (krystallos, em grego) e foi sob este nome que esta espécie mineral passou aos domínios da alquimia, primeiro, e da mineralogia, depois. Um seu aluno, Theophrastus (372-287 a.C.), distinguia o cristal-água (o gelo) do cristal-pedra (o quartzo hialino). Os romanos mantiveram este entendimento, latinizando o nome para cristallus, como se pode ler num dos 38 volumes da História Natural, de Plínio, o Velho, (23-79 d. C.).

Foi o carácter transparente e incolor do cristal-pedra que acabou por dar o nome ao vidro industrial de alta qualidade, a que hoje chamamos simplesmente cristal. A expressão cristal-de-rocha, aplicada ao quartzo hialino, surgiu muito mais tarde (no século XIX) para distinguir o mineral do produto manufacturado. A palavra cristal acabou, depois, por se generalizar aos corpos poliédricos minerais ou orgânicos, naturais e artificiais, tendo sido, por isso, usada como étimo do nome da disciplina que os estuda – a Cristalografia – afirmada como ciência no início do século XIX com René-Just Haüy, em França. 
 
Minerais e cristais são, pois, duas realidades indissociáveis. Por tradição, o conceito de cristal implicava o carácter poliédrico (facetado) do sólido, fosse ele uma substância mineral ou orgânica, natural ou produzida artificialmente. Tal concepção foi abandonada a partir do momento em que se tornou conhecida a estrutura íntima, à escala atómica, dos corpos no estado sólido.

Assim, cristal é hoje entendido como uma porção uniforme de matéria cristalina, matéria que, como se disse atrás, é caracterizada por uma disposição geométrica dos seus átomos, segundo redes tridimensionais, próprias de cada espécie.

Um tal arranjo geométrico é posto em evidência, entre outras manifestações, pelas faces do cristal. Mas nem sempre a matéria cristalina se manifesta com a configuração de um cristal, no sentido vulgar do termo, isto é, no de um corpo poliédrico, total ou parcialmente limitado por faces planas. Um grão de quartzo, no seio do granito ou solto e na areia da praia, não tem forma poliédrica, mas é matéria cristalina.

Com a mesma composição química do quartzo, a opala, uma variedade de sílica amorfa, isto é, não cristalina. Amorfo é também o vidro vulcânico, principal constituinte de rochas como a pedra-pomes ou a obsidiana. Ainda que cristalinas, não são consideradas minerais as substâncias inorgânicas produzidas artificialmente (bicarbonato de sódio, sulfato de magnésio, etc., à venda nas farmácias) e as orgânicas (açúcar), sejam elas naturais ou artificiais. 
 
Hoje em dia, são muitos os chamados sintéticos, isto é, substâncias química e estruturalmente semelhantes a determinadas espécies minerais, produzidas (sintetizadas) em laboratório e/ou industrialmente. O quartzo o diamante, o rubi e muitas outras gemas sintéticas não são, pois, minerais. A sua produção com fins tecnológicos, gemológicos ou outros, é hoje uma rotina.

A Mineralogia é a ciência que estuda os minerais, nela se separando uma Mineralogia Pura, interessada nos aspectos científicos fundamentais, do saber pelo saber, e uma Mineralogia Aplicada, visando a utilização dos minerais como matérias-primas nas mais variadas indústrias e utilizações. Vinda da Antiguidade, com destaque para as civilizações chinesa, babilónica, hindu e egípcia, através da tradição e dos textos eruditos dos clássicos gregos e latinos, recuperados pelos árabes, a Mineralogia percorreu a Idade Média de mãos dadas com a Alquimia, tendo aí crescido, deixando para trás muitas das concepções fantasiosas e místicas dos escolásticos. 
 
A Mineralogia afirmou-se e desenvolveu-se como Ciência, juntamente com a Química, ao longo dos séculos XVIII e XIX, fazendo-a progredir e tirando dela o essencial do seu desenvolvimento com acentuada organização sistemática.

A Mineralogia fez nascer, deu corpo e aprofundou uma nova disciplina científica, de cariz geométrico e matemático - a Cristalografia Morfológica - que usou como complemento até às primeiras décadas do século XX. Alargou-se, depois, ainda mais, com a Cristaloquímica, numa abordagem à organização espacial das redes cristalinas em função da natureza dos elementos químicos que as constituem para, a partir daí, se irmanar com a Física do Estado Sólido, com recurso às modernas tecnologias de análise.
 
A Mineralogia acompanha hoje o caminho da Cristalografia Estrutural, nova disciplina de âmbito alargado a todos os sólidos cristalinos, sejam eles inorgânicos ou orgânicos, naturais e artificiais ou sintéticos.

LITERACIA EMOCIONAL PARA PROFESSORES: UMA FALÁCIA DO DISCURSO POLÍTICO, MAS NÃO APENAS POLÍTICO

Li o título que reproduzo abaixo de uma notícia do jornal Público de hoje e lembrei-me da famosa frase de Bertolt Brecht: "Do rio que t...