Na continuação do texto A constante luta entre clássico e moderno
João Boavida
A natureza das coisas
Na continuação do texto A constante luta entre clássico e moderno
João Boavida
Sei que há, em instituições de ensino superior e em escolas públicas, grandes entusiastas do Projeto de Monitorização Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica (MAIA), tutelado pelo Ministério da Educação. Ao que percebo, os entusiastas são os seus mentores e replicadores oficiais, não os professores que o aplicam.
Estes, a menos que esteja muito enganada no juízo que faço, tendem a ser críticos do projecto: dos seus fundamentos, da sua metodologia e dos resultados a que conduz (ver, por exemplo, aqui). Uns explicam-no abertamente, outros em círculos restritos. Há ainda outros que, na dúvida, mantêm reserva.
De qualquer maneira, estando numa escola que se tenha voluntariado para a sua aplicação, é muito difícil aos professores, mesmo que estejam conscientes da falta de sentido educativo do que fazem, dos erros pedagógicos que replicam, das consequências nefastas que daí advêm, deixarem de participar no turbilhão inexplicável de critérios, grelhas, registos... que o processo em causa implica.
Turbilhão que, focado na obsessão de avaliar, a todo o momento, todos em relação a tudo, com base numa técnica, supostamente objectiva, faz perder o verdadeiro foco da educação: o aperfeiçoamento humano. Falo de uma perfeição que, na educação escolar, tenta conseguir-se através do conhecimento académico e da estimulação de capacidades do educando, subordinados ao respeito pelos valores éticos.
O foco da educação é este e não pode deixar de o ser, não pode ser outro. Por uma razão simples, que devia ser evidente: só através da aprendizagem da humanidade cada ser humano tem possibilidade de se tornar verdadeiramente humano. Desistir de tal fim é desistir de cada ser humano e da humanidade
Digo isto de outro modo: o foco da educação não é, não pode ser a recolha de uma torrente de dados, obtidos através de manifestações de comportamentos directamente observáveis (voltamos, desvirtuando, ao behaviorismo clássico, tão criticado por aqueles que o usam!). A obtenção de alguns dados relativos à aprendizagem tem uma função instrumental de apoio à decisão, no quadro das funções social e pedagógica da avaliação (destas duas funções deixei registo aqui).
Uma vez que o MAIA desvia o rumo da educação para o que não é educativo (para o que é meramente instrumental), o seu futuro só pode ser a extinção!
Lá, as coisas tinham dimensões Índicas.
As trovoadas eram mesmo a sério.
Juro-vos que estas coisas são verídicas
e não puras balelas do império.
As irmãs Brontë enchiam-me as medidas
e desvairava com a Senhora de Rênal!
Eram amores que deixavam feridas,
como se fossem na vida real.
Na vida real, também os havia:
amei (às escondidas), a valer,
uma menina que quase não via!
E dava-me um enorme apetecer,
vê-la, chegada, airosa, da Manhiça,
linda e amorosa comigo. Chiça!
Eugénio Lisboa
Amor Cão e outras palavras que não adestram é o último livro de poesia de Rosa Alice Branco (n. 1950, em Aveiro), vindo juntar-se a cerca de uma dúzia de outros livros do mesmo género literário. Já o primeiro (Animais da Terra, Limiar, 1988) falava de animais. Mas outros se seguiram na mesma linha: Da Alma e dos Espíritos Animais (Campo das Letras, 2001) – «espíritos animais» é a expressão de John Maynard Keynes para designar as emoções que influenciam as nossas decisões espontâneas –, Animal Volátil (Afrontamento, 2005, com Casimiro de Brito), e, o título mais original, o Gado do Senhor (&etc), que foi não só traduzido para inglês como recomendado pela Chicago Review of Books em Dezembro de 2016 como «um dos dez melhores livros desse mês». A poesia de Rosa Branco, que entrou no excelente catálogo da Assírio & Alvim com Traçar um Nome no Coração do Branco (2018), encontra-se, em parte, reunida na obra Soletrar do Dia: Obra poética (Quási, 2002).
De onde vem o interesse da autora não só pelos animais, mas também por aquilo – e tanto é! – que há de animal em nós? Tem a ver, julgo eu, com a sua formação científica e o seu interesse pelo tema da percepção na Filosofia. Rosa Branco fez o curso de Farmácia na Universidade do Porto, para satisfazer a vontade do pai, o artista plástico e cineasta Vasco Branco, activo nos círculos de oposição ao Estado Novo no centro do país, que se tinha também formado em farmácia. Depois doutorou-se em Filosofia Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa, precisamente sobre o problema da percepção, orientada pelo saudoso Fernando Gil. A perceção humana está carregada de herança biológica. A autora fala dos animais para falar do humano, a parte do mundo que afinal mais nos interessa. A poeta, que ensina teoria da percepção na Escola Superior de Artes e Design do Porto, fala-nos em Amor Cão, com invulgar capacidade lírica, das percepções canina e humana. Somos, em muitos aspectos, semelhantes aos nossos «melhores amigos».
O livro é composto por 44 poemas todos eles iniciados por uma epigrafe do médico e etologista austríaco Konrad Lorenz (1903-1989), Prémio Nobel da Medicina em 1973, autor, entre outros livros traduzidos entre nós, de E o Homem Encontrou o Cão (Relógio de Agua 1987). O cão (Canis lupus familiaris) é o mais antigo animal domesticado pelo homem, a partir do lobo (Canis lupus), ainda antes da Revolução Neolítica, há 10 000 anos, quando o homem se sedentarizou, iniciou a agricultura e começou a domesticar outros animais. O cão é, para muitos zoólogos, uma subespécie do lobo e não uma espécie distinta. Foi longo e complexo o processo de cruzamento de espécies e de adaptação ao meio que tornou possível a presença de um lobo em nossa casa.
Todos os poemas são glosas de frases seleccionadas do referido Nobel, que remetem para a nossa história natural e para a nossa relação com os canídeos. O poema 44 explica: «(…) Se Lorenz dá sentido aos sons/ que imitam o verso, é porque o sigo como cão lupino, / predador e animal vagabundo a uivar à sua porta/ o acolhimento feroz da escrita (…)» Sobre o comportamento canino já muito antes de Lorenz o povo exprimia em provérbios a sua sabedoria (por exemplo, «Cão que ladra, não morde») e aplicava-a aos humanos. Boa observadora do comportamento de canídeos e humanos, Rosa Branco discorre em tom filosófico sobre as alegrias e as tristezas de uns e de outros. De vez em quando deparamos com vocabulário científico: «decifrar as leis que regem ao astros e os seres/ é o mesmo astronómico desafio (…)» (poema 3) ou «Talvez ela [a mãe] suspeite que o ADN da criança/ tenha os dentes sujos do animal/ cravados no escuro do coração» (poema 7). As metáforas animais para descrever a vida humana estão omnipresentes, por exemplo: «(…) A verdade é que a fome/ dos lobos é igual a da tribo que caminha sem termo, pequena alcateia de homens uivando por carne» (poema 8). Sabemos hoje que o nosso paralelismo com o mundo animal é mais do que metafórico. Já Antero de Quental no seu soneto «Evolução» tinha percebido a teoria darwiniana ao escrever: «Rugi, fera talvez, buscando abrigo/ Na caverna que ensombra urze e giesta.» Temos dentro de nós toda a nossa história animal.
É assaz interessante, como nota Lorentz na epígrafe do poema 26, que a palavra «cadela» tenha uma conotação tão negativa na língua portuguesa. Mas cães e cadelas dão-nos muitas recompensas, designadamente o ladrar intenso quando vêem os donos. Aposto que a autora também tem um ou mais cães em casa, pois só essa circunstância lhe permite falar da percepção canina com tanta fidelidade (para usar uma palavra normalmente associada a cães) como o faz. Como ilustração, o poema 18 mostra como um cão sabe esperar pelos donos até que eles regressem: «(…) O cão espera/ como se espera a vida, ensaia coreografia da chegada,/ colado à porta em passos elegantes para nada.» O livro fala das violências canina e humana: por exemplo, no poema 11, no qual um homem primitivo seduz um chacal dando-lhe carne fresca (o poema conclui: «um marido irado é só doméstico na violência.») ou no poema 22, que fala de um ataque de um pitbull, mortal para vítima e para o cão, que foi abatido por «instância dos vizinhos (comenta o dono, no fim: «Devia era ter abatido os vizinhos»), ou, ainda, no poema 26, que retrata um crime doméstico em que a mulher é assistida pelo seu cão («A Lady/ arrebita as orelhas e lambe a mulher, cheia de solidariedade/ cúmplice. Afinal a dona é canina camo ela»).
Encerro com um excerto do poema 15, sobre a coreografia do reencontro entre donos e cães, que espero convide a ler o livro: «Depois de um tempo fora,/ o dono regressa como pura luz no horizonte,/ exaltação do big-bang na alegria esfusiante da cadela/ em loucas correrias e carinhos. Antes da viagem/ já lhe farejava a partida espiava as malas,/ não saía do dono nem comia, e a respiração arquejante/ deixava adivinhar a neurose que a consumia./ Quando por fim chegou/ um uivo desmedido atingiu-o no peito/ e logo a cadela saltava de alegria em torno das pernas,/ aconchegada nos braços estendidos.» Raramente a relação entre cães e homens foi, entre nós, tão bem tratada na arte poética. Eu tenho duas cadelas (mãe e filha, esta de pai incógnito). Sempre me tendo dado bem com a mãe, mas fiquei um dia muito zangado com a filha por ela, em pequena, me ter roído alguns livros valiosos. Cresceu, deixando de me destruir livros, e já lhe perdoei. Depois de ler Amor Cão fiz-lhe umas festas e ela gostou tanto como eu.
Novo texto de Eugénio Lisboa :
Quando, em 1978, fui para Londres, na qualidade de conselheiro cultural da nossa embaixada, contaram-me uma história que nunca mais esqueci. Foi-me contada pelo chanceler, Fernando Mendes, homem competentíssimo, de quem me viria a tornar amigo.
Fora trabalhar, na embaixada, ainda muito novo e logo a seguir ao fim da segunda guerra mundial, quando, em Inglaterra se vivia num regime de muito severo racionamento de tudo, incluindo bens alimentares. Passava-se ali uma “fome de rabo”. Fernando Mendes dava-nos pormenores impressionantes da forma como se vivia mal, naqueles tempos de frugalidade. E, como era costume com os ingleses, a frugalidade era para todos, incluindo ministros e até para a família real, no Palácio de Buckingham.
Para ilustrar isto, de forma impressiva, contou-me a história da ida da nossa famosa violoncelista, Guilhermina Suggia, a Londres, nesse período de austeridade, para ali dar um concerto. Tendo ficado hospedada, no Palácio de Buckingham, como convidada da família real, ali comia as suas refeições. Depois de um jantar frugalíssimo, como era de regra, Suggia foi dar o concerto, a meio do qual, desmaiou… de fome. Sim, que o violoncelo exige um grande dispêndio de energia! Isto é um exemplo do espírito de cidadania democrática, que, nessa altura, em muito contrasta com o que se passa nas democracias ditas populares, nas quais o povo passa a tal fome de rabo, enquanto os senhores do poder e adjacentes passam a viver em palácios sumptuários, como aconteceu, por exemplo, em Budapeste, ou em condomínios de luxo, onde nada falta. Vi isso em Moçambique, no princípio da independência, quando os Senhores do poder popular, se recusavam a beber os melhores vinhos a não ser em copos de cristal, surripiados “alfandegariamente” e “legitimamente” a portugueses que dali partiam, sem saberem para que destino e com uma mão à frente e outra atrás. E afirmavam, alto e bom som, que “tinham direito”, um direito que, curiosamente, se não estendia ao resto do povo. Isto passou e passa-se, de resto, em todas as democracias populares, sem excepção. Mas não se passava, e não por acaso, na decadente e burguesa democracia inglesa. Os regimes julgam-se por actos e decisões e não por palavreado sonoro e oco. Não há maiores depredadores do que os indivíduos cheios de razão histórica e de legitimidade ideológica. Para eles, vale tudo, até o massacre em massa dos adversários políticos, como foi o caso de um dos piores poetas que já existiram e que se chamou Agostinho Neto. Eugénio Lisboa
Em França, neste ano lectivo, no exame nacional de francês de candidatos ao bac (bacharelado) saiu um texto para comentar retirado do livro “Jours de colère” (Gallimard), de uma escritora premiada, Sylvie Germain.
Sylvie Germain foi, de facto, a principal visada e, ao que se refere em notícias publicadas, de modo particularmente violento. Ouvida, disse:
“… pessoalmente não me sinto preocupada. Estou, porém, bastante preocupada com o sintoma que revela. É grave que os alunos que chegam ao final da escolaridade demonstrem tanta imaturidade e desprezo pela língua, pelo esforço de reflexão assim como pela imaginação e também tão pouca curiosidade e abertura de espírito. O trecho destinado a análise não era delirante, o vocabulário era acessível, mas alguns alunos, contentam-se com um vocabulário tão reduzido, rico apenas em insultos e invectivas, que qualquer escrita um pouco elaborada constitui para eles um desafio, um ultraje.”
Disse também a escritora:
“não sinto raiva, só desolação diante de tanta cegueira e falta de questionamento (se eles não passarem no teste de francês será, segundo eles, por causa do meu texto… não por falta de trabalho e reflexão), da sua grosseira rejeição da cultura que lhes é proporcionada no ensino secundário. Querem diplomas sem nenhum esforço, proclamam-se vítimas e elegem como perseguidores aqueles mesmos que eles insultam e ameaçam. Em que adultos se tornarão?”
E acrescentou:
“Tudo isso é tão absurdo quanto angustiante (…) Só posso desejar aos alunos que aprendam a ler, que se esforcem por pensar por si mesmos, que amem as palavras, e também que avaliem o seu peso, significado preciso e as possíveis consequências quando as utilizam.”
Os adultos, responsáveis pela sua educação, fazem-lhes crer que sim, que eles são o centro do universo, que devem seguir os seus interesses, necessidades, espontaneidades, que podem pautar-se pelas suas emoções e perseguir a felicidade (que felicidade?), põem-lhes nas mãos instrumentos programados ao milímetro para reagirem aos mais leves estímulos, nomeadamente aos que contrariam as suas vontades, que de forma pré-definida se lhes incutem. Isto está entranhado no espaço mediático (que se tornou o espaço público de convivência), familiar e, mesmo, escolar.
Os comportamentos dos mais novos que nos inquietam (e, por isso, são notícia) constituem o “sintoma” de que a escritora fala, não são causa.
A causa somos nós, adultos, que manipulamos conscientemente para obtermos proveitos (e muitos o fazem de modo altamente especializado), que nos demitimos (cada vez mais o fazem, vencidos que se sentem), ou nos alheamos (sob o pretexto de não ser assunto nosso, outros que o tratem) da sua educação.
Acontece que não há volta a dar: como adultos, somos todos, sem excepção, responsáveis pela novas gerações. Os desvios, os erros que agora estamos a cometer têm consequências óbvias no futuro: serão os adultos que não educámos devidamente que ficarão no mundo. Isto também é notado pela escritora.
Para prevenir casos como este, alguém avançou uma solução: por uma questão de segurança, não escolher textos de autores vivos para exames.
Um penso rápido numa ferida aberta que sangra cada vez mais!
Se formos por aí, o título da obra em causa torna-se proverbial: outros “dias de cólera” chegarão!
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Texto baseado sobretudo em notícias do jornal Le Figaro. As imagens foram recolhidas nas mesmas fontes:
No primeiro dia de ir à escola
– chamava-se Escola Paiva Manso –
de orgulho, senti-me gabarola.
Terminara o tempo de crianço
e olhava, com grande deslumbramento,
aquele edifício cheio de luz
– que tamanho de casa, um portento! –
mas que palavra nenhuma traduz.
Aquilo era maior do que eu,
que vivia, pobre, nos subúrbios
e, ali, me sentia um pigmeu.
Foi assim que os meus Descobrimentos
começaram: a descobrir advérbios
e outros magníficos condimentos!
De Eugénio Lisboa
P: Contou que vem de uma família onde ninguém tinha estudado e de uma povoação onde não havia livros, e que descobrir a escola foi um “milagre”. O milagre de que toda a criança precisa é encontrar um bom professor?
R. Para mim é uma prioridade. Muitos directores e professores têm dito que a pandemia fez compreender que o futuro do ensino é a telemática. Não, isso é uma loucura. A tecnologia é uma interrupção brutal da relação entre o professor e o aluno. A única maneira de transmitir o conhecimento é a presencial. Sem a comunidade não há transmissão de sabedoria. Leio sempre aos meus alunos uma carta maravilhosa que Camus enviou ao seu professor de Argel no dia em que lhe concederam o Prémio Nobel (…) [esse professor] mudou-lhe a vida. Nenhuma plataforma digital pode fazê-lo, só um bom professor (...) muitos professores que fazem isto em absoluto silêncio, não os conhecemos. E somente a escola pública pode garantir a eliminação das desigualdades, e hoje está a destruir-se a escola e a universidade públicas em toda Europa para aplicar as leis americanas e britânicas.
P: A formação de professores está a ser precarizada? (...)
R. A escola não dá importância ao inútil. No discurso que Boris Johnson fez, há uns meses, aos estudantes britânicos disse que deverão escolher não a área que de que gostam, mas a que lhes pode trazer algum benefício. Para mim, isto é a destruição total da educação. Por isso, a ética das profissões está a decair (…): se há médicos que exercem medicina para ganhar dinheiro, não são bons médicos porque não têm amor. Não posso vender a minha dignidade (…). Outro aspecto incrível é os alunos pensarem que têm de estudar para aprender uma profissão. Há uma poesia maravilhosa de Kavafis, Ítaca, em que ele fala com o leitor para lhe dizer que a importância da viagem de Ulisses não é chegar a Ítaca, mas a experiência da viagem. Há que fazer entender aos estudantes que o importante é a viagem que fazem com o professor e os colegas, a experiência da escola. A ideia da escola/universidade-empresa não tem sentido.
P. Neste presente cruel que mercantiliza as nossas vidas, dar prioridade a essa experiência pode acabar com a expulsão do sistema…
R. Pode ser um risco, compreendo, mas tive muitos alunos que demonstraram que quando se estuda com paixão e amor, num momento ou noutro, há sempre uma possibilidade de ganhar a vida com dignidade. Na loucura da avaliação das universidades há um parâmetro que diz que uma boa universidade é aquela que leva o estudante a ganhar muito dinheiro (…). A escola sempre formou cidadãos cultos, democráticos, solidários. Hoje a ideia é que temos de produzir “frangos de aviário” com vontade de ganhar dinheiro e que só pensam em criar empresas.
P. O senhor é um dos maiores defensores das Humanidades (...). O que pensa ao ver as mudanças nos currículos que eliminam a filosofia ou a aprendizagem de memória? (…)
R. Estamos a destruir as coisas fundamentais. Há muitos pedagogos que dizem que aprender de memória uma poesia não tem sentido. Para mim, são estúpidos. Quando aprendes uma poesia de memória, com o coração – em inglês e francês diz-se by heart e per coeur –, fica em ti. E um dia quando olhas para uma coisa, ela surge do teu interior e compreendes coisas que antes não podias. Há um testemunho incrível de Primo Levi. Aprender La divina comédia de Dante permitiu-lhe, numa noite, proporcionar um momento de felicidade aos outros judeus presos no campo de concentração. Não te podem roubar as coisas que aprendeste. É maravilhoso como metáfora da sua importância. A ideia de hoje em dia é que tens de aprender só coisas práticas, esquecendo que a ciência, para criar, também necessita de fantasia e de imaginação (…)
P. Há um paradoxo no mundo actual: graças às novas tecnologias, temos ao nosso alcance o acesso a toda a cultura que queremos, mas ao mesmo tempo estão ressurgindo as ideologias mais extremistas: nacionalismos, populismos, a extrema direita…
R. É preciso fazer uma pequena precisão a esta leitura (...) pensamos que informação significa conhecimento, mas são duas coisas diferentes. Temos mais informação, mas não conhecimento. A internet é uma mina de ouro para quem sabe; para quem não sabe é muito perigosa. Um dia fiz uma experiência com os estudantes e pesquisei Giordano Bruno numa meia centena de sítios: um delírio total (…). Sobre o conhecimento se não tenho uma autoridade não posso falar. A internet é uma armadilha enorme, foi isso que criou a gente que invadiu o Capitólio dos Estados Unidos. O “senhor com os cornos” é uma imagem da ignorância dos lideres como Trump, Bolsonaro, Le Pen, Salvini… que contam histórias mentirosas.
P. O que deve fazer um filósofo, um intelectual, num mundo como o de hoje?
R. Tem de falar contracorrente. O problema de hoje é que não temos sentido crítico. O intelectual tem de ser um herético, como o era Giordano Bruno, que diz as coisas que a sociedade não quer escutar. Desafortunadamente, nas universidades os intelectuais parece que se resignaram, não têm vontade de reagir. Creio que temos de lutar, porque cultivar a utopia é fundamental para mudar o mundo.
De João Boavida
A propósito de dois artigos aqui publicados por Eugénio Lisboa – “Uma grande mixórdia” e “A obrigação do romance” – peço licença para um pequeno contributo.
Em primeiro lugar, é indubitável que muita gente sente que há livros que são pastosos, confusos, em suma, insuportáveis, ou até mesmo incompreensíveis mas, por receio de serem acusados de menos competentes ou modernos pelos que valorizam o último grito acima de tudo, não o dizem.
Eugénio Lisboa tem coragem de remar contra esta maré e de dizer que o rei vai nu quando considera que ele de facto vai sem roupa alguma. É saudável, refrescante e faz um excelente serviço pois ajuda a colocar alguma ordem no campo opaco, minado e até às vezes invertido que é o mundo editorial. É, neste sentido, um organizador de valor e, portanto, um valorizador do próprio valor.
Veja-se, a este propósito, o seu recente livro "Vamos ler!" (Lisboa, Guerra & Paz, 2021). Frequentemente as críticas que se fazem em Portugal, são elíticas, enroladas, ora contextualizantes, ora descontextualizantes, por vezes as duas coisas em simultâneo, mas, quando queremos uma síntese do valor de um livro e de uma boa razão para o ler (ou não) não a temos porque em geral pouco ou nada nos é dito sobre isso.
Por outro lado, há críticos que são habitualmente encomiásticos de quase tudo sobre que escrevem, o que é de desconfiar porque os talentos não andam por aí aos pontapés. Para lá de um frequente aparato teórico e retórico, que muitas vezes é mais confusão e conversa de espanta tolos que teoria, era bom que das críticas resultasse uma ideia objetiva quanto possível sobre o valor de um livro e, portanto, do benefício literário e cultural em lê-lo.
Estou de acordo que uma preocupação primeira da literatura é ser legível e compreensível (não fácil, nem apressada, nem simplória). Um texto ilegível é um contrassenso, e quem o fizer incompreensível por pedantismo ou não por conseguir a clareza que as ideias, por muito complicadas que sejam, devem ter, um texto assim, mesmo que a muitos embasbaque, não irá longe.
É certo que a originalidade sempre levantou objeções, e romper com os quadros dominantes chegou frequentemente a provocar reações violentas. E sabemos também que, por vezes, essas novidades trazem grandes contributos para a evolução de um dado campo artístico.
Mas no nosso tempo a vertigem tornou-se um valor e a mudança pela mudança uma necessidade quase absoluta, o que, evidentemente, não pode ter boas consequências na qualidade de muito do que se produz.
Ora, a grande preocupação de quem escreve é ser lido e a leitura deve produzir prazer em quem lê, como muito bem diz Eugénio Lisboa. É certo que a originalidade é um valor, mas ser realmente e autenticamente original não é para todos porque a originalidade é um bem escasso que só muito poucos alcançam e, portanto, a procura dela a todo o custo, e sempre, não pode dar bom resultado.
Para lá da procura exasperada de originalidade por um autor, o que o torna frequentemente intragável e destruidor de leitores potenciais – desse livro e doutros que não têm culpa – devia interessar-lhe acima de tudo a qualidade literária. E ao crítico ser da verdadeira qualidade o divulgador e o valorizador.
É claro que um romance que provoca interesse não é necessariamente bom, mas o bom leitor encontrará interesse num livro, desde que bom. E um leitor menos educado acabará por descobrir que faz parte do entusiasmo com que se lê um livro a sua qualidade. Portanto, interesse do leitor e qualidade do romance, desejo de ler e entusiasmo pelo que se lê são realidades convergentes e que se implicam; que se vão cada vez mais implicando à medida que evoluímos como leitor. E que, portanto, exigimos do escritor e nos leva a escolher os escritores que melhor respondem a esta exigência.
O bom escritor faz o bom leitor e, inversamente, o bom leitor exige qualidade ao escritor, que será esquecido se a não tiver ou não se preocupar com isso.
João Boavida
Na continuação do texto A constante luta entre clássico e moderno João Boavida É isso mesmo, volto ao tema, do moderno e do clássico. Se um...