sexta-feira, 26 de julho de 2024

PREFÁCIO A «De que somos feitos?», de Dan Levitt (Lua de Papel)

  


Meu prefácio ao mais recente livro de ciência da Lua de Papel:

 No tempo de Apolo na cidade de Delfos na Grécia Antiga havia uma inscrição, que ainda hoje constitui para nós um desafio: «Conhece-te a ti mesmo.» Toda a história da ciência é uma tentativa de resposta a este imperativo. Temos realizado progressos impressionantes: hoje sabemos muito mais do que ontem. Não somos estranhos num mundo estranho, somos antes seres cada vez mais conhecidos num mundo cada vez mais conhecido. Uma das principais conclusões da ciência é que os seres vivos, entre os quais se encontra a nossa espécie, são feitos dos mesmos átomos existentes noutros lados do Universo e que obedecem a leis físico-químicas válidas universalmente. No entanto, somos especiais, no sentido em que, tanto quanto sabemos, somos a única espécie que consegue conhecer o Universo, incluindo essa parte do Universo que é o nosso próprio corpo.

«De que somos feitos?» é a pergunta colocada neste livro por Dan Levitt, autor de documentários científicos e históricos de grande sucesso. Ele responde com conhecimento de causa – estudou ciências na faculdade, leu livros de divulgação científica e entrevistou numerosos cientistas – e com uma escrita capaz de nos prender ao fio da narrativa. Mistura de forma bastante sedutora ciência e história. Conta não só os factos da ciência, mas também os modos, por vezes inesperados, como os fomos descobrindo.

Somos feitos de células, que por sua vez são feitas de moléculas, sendo estas constituídas por átomos. Levitt sumaria logo no início, indicando valores que assombrarão o comum dos leitores:

«Cada pessoa é um mosaico em constante mudança, uma colónia de trinta biliões de células, cada uma constituída por mais de uma centena de biliões de átomos que se agitam em movimentos vibratórios desenfreados. Cada pessoa contém mil milhões de vezes mais átomos do que todos os grãos de areia existentes nos desertos da Terra. Quem pesa 70 quilogramas anda por aí com carbono suficiente para fazer 11 quilogramas de carvão, com sal suficiente para encher um saleiro, com cloro suficiente para desinfectar várias piscinas de jardim, e com ferro suficiente para fazer um prego de 7,6 centímetros. Se listasse todos os seus elementos, veria que cerca de sessenta elementos da Tabela Periódica estão representados dentro de si. Se os pudesse vender, encaixaria uns fantásticos 1942,29 dólares.»

Uma vida humana é resultado de uma experiência singular: não tem preço. Estou em crer que cada um dos leitores valerá muito mais do que a referida quantia. Mas esse é o nosso valor material: é, digamos assim, o que valeríamos no mercado de matérias-primas se puséssemos à venda aquilo de que somos quimicamente feitos.

A verdade é que somos feitos principalmente de água, uma substância muito comum no nosso planeta, que é um bom solvente e que preenche as nossas células (cerca de 60% do nosso corpo é água!). Depois existem dentro de nós uma miríade de moléculas orgânicas, designadamente as proteínas, que são as máquinas-ferramentas e elementos estruturais das nossas células, e o ADN, a longuíssima molécula que guarda o código da vida, que contém as receitas para fazer as proteínas. Consideremos uma molécula de água, cuja fórmula química é H20, ou seja, é constituída por dois átomos de hidrogénio, o elemento químico mais leve, e por um átomo de oxigénio. De onde vieram esses átomos? O átomo de hidrogénio pode ter sido feito no início do Universo, o Big Bang, datando, portanto, de há 13,8 mil milhões de anos – mais precisamente de quando, 300 mil anos após o instante inicial, os electrões se ligaram aos núcleos atómicos para formar os átomos. Mas o oxigénio teve de ser feito numa estrela. Não há nenhuma maneira de fazer oxigénio em abundância a não ser no coração de uma estrela maior do que o nosso Sol. Se estamos aqui é porque explodiu uma estrela – o evento chama-se «supernova» – anterior ao Sol espalhando no espaço o material das suas entranhas. O nosso astro-rei é, portanto, uma estrela de segunda geração, que «recicla» material pré-existente. Carl Sagan disse «Somos matéria das estrelas.» E Levitt, na mesma linha: «Mais de 88 por cento [dos nossos átomos] foram cozinhados num verdadeiro inferno de fogo, uma enorme gigante vermelha. Isso inclui o oxigénio que alimenta os nossos movimentos, o cálcio nos nossos ossos, o sódio e o potássio que enviam os nossos sinais nervosos, e todos os elementos, excepto o hidrogénio, que existem no nosso ADN.»

Além de oxigénio, cada um de nós tem dentro de si outros elementos pesados. O mais importante, porque entra em toda as moléculas orgânicas, é o carbono. Vale a pena dar de novo a palavra a Levitt, porque ele a maneja com grande estilo: «Uma pessoa de 68 quilos contém de massa, 42 quilogramas de oxigénio, 16 quilogramas de carbono, sete quilogramas de hidrogénio, 1,8 quilogramas de nitrogénio, quase um quilograma de fósforo e meio de enxofre. Por acaso, estes seis elementos também estão entre os mais abundantes no Universo. O hidrogénio é o mais abundante de todos, o oxigénio é o 3.º, o carbono o 6.º, o nitrogénio o 13.º, o enxofre o 16.º e o fósforo o 19.º. De certa forma, isso faz com que a compreensão da origem da vida seja um verdadeiro jogo de Scrabble da química.»

Sabemos hoje muita coisa sobre a vida. Por exemplo, como funciona a fotossíntese e o significado do código genético – assuntos tratados neste livro, mas não sabemos ainda como surgiu a vida na Terra. Não conhecemos vida fora da Terra, embora conheçamos exoplanetas e andemos activamente em busca de vestígios de vida extraterrestre. Na Terra, há vida inteligente, como mostra a nossa capacidade de investigar o Universo. O nosso cérebro – que é o órgão da inteligência – tem cerca de 170 mil milhões de células,, aproximadamente o mesmo número das estrelas na Via Láctea, das quais 86 mil milhões são neurónios. Os neurónios estão ligados entre si formando uma rede extremamenete densa. Apesar de todos os avanços nas neurociências, o funcionamento do cérebro continua a ser em muitos aspectos misterioso. A única parte do Universo que o pode compreender é a mais complexa de todas.

O leitor aprenderá muito neste livro de Levitt sobre aquilo que sabemos. Mas poderá aprender sobretudo o modo como é que chegámos ao actual conhecimento. O nosso cérebro tem, por vezes, enormes dificuldades em aprender coisas novas, pois sofre do que o autor chama «vieses» cognitivos, por exemplo o viés «é demasiado estranho para ser verdadeiro» ou «se as nossas actuais ferramentas não o detectaram, então não existe». Logo no primeiro capítulo, o autor mostra como até os maiores sábios se podem enganar atrapalhados pelos seus preconceitos. Albert Einstein enganou-se a respeito da possibilidade do Big Bang.

No final da leitura, o leitor, embora materialmente possa não ter mudado muito (de facto muda, porque as células estão sempre a renovar-se, os neurónios menos do que as outras), terá decerto mudado. Terá aprendido mais sobre si próprio e sobre o mundo. E, mais importante do que isso, estará mais bem preparado para saber ainda mais. O seu corpo não mudará muito, mas as capacidades do seu cérebro aumentarão. Boa leitura!

 

LIvros de ciência para o Verão

Minhas sugestões de livros saídas na imprensa regional:

O Verão é um excelente período para leituras. E, em mais um Verão, deixo uma lista de livros de ciência ou relacionados com a ciência, que têm em comum o facto de terem saído há pouco tempo em Portugal. A ordem é a alfabética do apelido do autor:

1- Nicklas Brendborg, As Medusas Envelhecem ao Contrário. Aprenda os segredos da longevidade com a Natureza.  Contraponto.
Um jovem biólogo dinamarquês que estuda o envelhecimento analisa esse tema, num livro que, começando por examinar as medusas e outros exemplos de longevidade no reino animal, desvenda algumas descobertas científicas e deixa alguns conselhos práticos para manter a juventude. Uma mensagem forte é que a herança genética só é responsável por uma parte pequena da longa vida: o resto cabe-nos a nós ao regularmos a nossa interacção com o ambiente.

2- Vítor Cardoso, O Eclipse do Tempo. Guia para entrar em buracos negros. Oficina do Livro.
Um astrofísico português com grande currículo no estudo de buracos negros, professor no Instituto Superior Técnico e no Instituto Niels Bohr em Copenhaga, escreveu uma obra de divulgação sobre o tempo e os «monstros cósmicos» que engolem o tempo, precisamente os buracos negros. O prefácio é do Nobel da Física Reinhard Genzel, o astrofísico alemão que ajudou a determinar a massa do superburaco negro que está no centro da nossa galáxia, e o posfácio de Emanuele Berti, que dirige a Sociedade Internacional de Relatividade Geral e Gravitação.

3- António Galopim de Carvalho. Ao Romper da Aurora. Âncora.
O professor jubilado de Ciências da Terra da Universidade de Lisboa, autor de muitos outros livros, reúne aqui muitos dos textos que escreveu para redes sociais à volta da sua vida. O título explica-se porque o professor gosta de escrever de madrugada.

4- Jeff Goodell. O Calor é que Te Vai Matar. O que está realmente a acontecer no planeta e as dramáticas previsões do clima. Lua de Papel.
Um livro. de um jornalista norte-americano, sobre alterações climáticas globais, este com a tónica no problema dramático em que o sobreaquecimento do planeta se pode tornar se não conseguirmos conter as emissões do dióxido de carbono. Um sério aviso, na linha de outros como os de Elizabeth Kolbert e David Wallace-Wells.

5- Benjamin Labarut. Maniac. Relógio d’Água.
Biografia romanceada do genial físico e matemático norte-americano de origem húngara John von Neumann, da autoria de um escritor contemporâneo muito original. Labarut é um holandês que em jovem se mudou para o Chile, que começou a ficar famoso com um livro muito premiado: Um Terrível Verdor.

6- Filipa Almeida Mendes. Vou Emagrecer. Avenida da Liberdade.
Uma jovem jornalista do Público resume o essencial das últimas novidades da biomedicina para tratamento da obesidade: fármacos, como os da empresa dinamarquesa Nordisk, utilizados para o tratamento da diabetes revelaram eficácia no emagrecimento, mesmo para quem não é diabético.

7- David Reich. Quem Somos e Como Chegámos até Aqui. Gradiva.
Aprofundando os trabalhos do sueco Svante Pääbo, Prémio Nobel da Medicina pela sequenciação do genoma do homem de Neandertal, outro especialista em genética humana, este norte-americano, informa-nos como o estudo das nossas porrigens está a ser extraordinariamente alargado graças ás técnica de descodificação genómica.

8- Carlo Rovelli. Há Lugares no Mundo onde a Gentileza É Mais Importante do que as Regras. Objectiva.
O físico italiano Rovelli é um dos nomes cimeiros da divulgação da Física. Este livro, que surge na sequência de outros sucessos do mesmo autor, contém um conjunto de crónicas originalmente saídas na imprensa italiana. Na sua diver0sidade, exibem os dotes de escrita do autor para além claro do seu conhecimento da ciência e da história e da sua sensibilidade para ligar a ciência com as artes.
 

9- Mary-Jane Rubenstein. Astrotopia. A perigosa religião da corrida ao espaço. Zigurat.
Uma professora e investigadora na área de Religião e Ciência discute as relações entre as visões utópicas da conquista do espaço, transmitidas por empresários multimilionários como Elon Musk e Jeff Bezos, e as visões religiosas tradicionais. O nosso destino estará mesmo no espaço?

10- Carl Sagan. Contacto. Gradiva.
Reedição, com nova capa, de um bem-sucedido romance de ficção científica, sobre o contacto entre terrestres e extraterrestres longínquos, da autoria do cientista planetário e grande divulgador de ciência norte-americano. O livro serviu de argumento para um filme, protagonizado por Jodie Foster.

11- Stefano Sandrone. Vida de Nobel. Guerra & Paz.
Conjunto de entrevistas a Prémios Nobel, conduzidas por um neurocientista italiano, a duas dúzias de laureados Nobel, 9 da Química, 4 da Física, 8 da Medicina e 3 da Economia. É inspirador ouvir estas vozes de grandes cientistas, não só sobre a sua visão da ciência, mas também sobre a sua visão do mundo.

12- Lixing Sun. Os Mentirosos da Natureza e a Natureza dos Mentirosos.  Batota e dissimulação no mundo vivo. Temas e Debates.
Um biólogo chinês discute como a mentira pode ser uma estratégia na luta pela vida que está omnipresente na evolução biológica. Os humanos que mentem mais não fazem do que seguir exemplos dados por muitas espécies. A impostura não se restringe ao mundo humano…

13- Neil de Grasse Tyson, Cartas de um Astrofisico. Objectiva.
Tyson divide com Rovelli a proeminência na divulgação da Física, agora que Sagan e Hawking já não estão entre nós. Estas são cartas que o divulgador da ciência norte-americano e director do Planetário Hayden em Nova Iorque, escreveu sobre ciência, crença, filosofia e vida foram respostas a pessoas que lhe colocaram questões.

Boas leituras!

PS) E tarde, mas ainda a tempo, pois só o recebi agora:

- Dan Levitt, De que somos feitos? Lua de Papel. Com prefácio meu. Com o elucidativo subtítulo "A história dos átomos do seu corpo, desde o Big Bang até ao jantar de ontem, este livro de um realizador norte-americano de documentários  científicos conta-nos como temos dentro de nós quer partículas do Big Bang quer átomos feitos em estrelas.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA

Por A. Galopim de Carvalho 
 
“Direi tantas vezes quantas as necessárias que classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada”, entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se de facultar conhecimento, civismo, cidadania, em suma, à sociedade liberta do sufoco em que vivera.

E, aqui, insisto em repetir, a Escola falhou completamente. Já o disse tantas vezes e a verdade é que os números não me desmentem.

Acontece que o eco deste falhanço, na opinião pública e nos media, fica demasiado aquém da urgência e importância que a Educação e a Escola Pública deviam merecer. A generalidade dos pais, já “educados” na mesma Escola Pública, pródiga em distribuir diplomas, mas muito parca em facultar conhecimento, quer é que os filhos passem e, se possível, com boas notas.

Os governantes sabem muito bem o que deveriam fazer neste domínio da sociedade. Bastava adoptarem procedimentos de sucesso já experimentados noutros países. Será que não o podem fazer? É um facto que o poder do feiticeiro reside na ignorância dos seus irmãos tribais, o que, traduzido para a nossa sociedade, diz que, quanto mais ignorante for o povo mais fácil é governá-lo. Será que é isto que tem vindo a acontecer?

Continuamos, alegremente, a desprezar o nosso maior património centrado na educação, na formação, na preparação dos alunos para uma cidadania plena. E não estou só nesta afirmação. Recordo, uma vez mais, as palavras do então Primeiro-ministro António Costa, em finais de 2015, na cerimónia de entrega do Prémio Manuel António da Mota, no Palácio da Bolsa, no Porto.

“De uma vez por todas, o país tem de compreender que o maior défice que temos não é o das finanças. O maior défice que temos é o défice que acumulámos de ignorância, de desconhecimento, de ausência de educação, de ausência de formação e de ausência de preparação.”

Por vezes começo a perder a esperança de ver a mudança tão desejada. Não quer dizer que baixe os braços e a prova disso é que estou aqui, uma vez mais, a “arregaçar as mangas.”

Comecei, em princípios deste mês e continuo a sondar algumas personalidades das ciências, da arte, da cultura e da política que possam subscrever um Manifesto para a Reforma da Educação passível de merecer a maior e melhor atenção por parte do Governo, da Comunicação Social e, mesmo, por parte de uma grande parcela da população que anda distraída.

Uma vez alcançado o acordo dos Professores com o Ministério da tutela sobre a recuperação do tempo de serviço, tenho quase a certeza de que uma parte muito considerável da enorme massa humana que se manifestou nas ruas do Portugal inteiro, se sinta confortavelmente satisfeita e desinteressada do problema, de maior importância, a nível nacional – a inegável degradação da Escola Pública. Estou mesmo em crer que a necessária e urgente Reforma da Educação não é, sequer, popular, nem para os alunos desmotivados e com diploma garantido, que os há em quantidade preocupante, nem para os maus professores, os tais que sempre recusaram as avaliações a sério, que não são assim tão poucos e que veem na Escola um emprego assegurado até à aposentação.

Neste capítulo, os Sindicatos têm tido um papel contrário ao do interesse nacional, ao porem ao mesmo nível os bons e os maus profissionais. Por outro lado, receio que, concluído o citado acordo, o Ministério se sinta desobrigado de atender às restantes reivindicações, as mais sérias e profundas, as que visam uma completa reforma deste importante pilar da sociedade que se deseja melhorar. Neste capítulo será preciso não esquecer que a liberdade de acção do Ministro detentor da respectiva pasta está condicionada pela política global do Governo, em particular da parcela do OGE que lhe for concedida. Mas, atenção, qualquer Ministro ou Secretário de Estado, que aceite trabalhar no quadro de uma governação que lhe cerceie os meios necessários para desenvolver a política de Educação que se impõe, fica conivente com ela. Ponto final.

É para mim evidente que os sucessivos Ministérios da tutela só fizeram o que os seus governos permitiram. Mas também é verdade que foram coniventes com as limitações que lhes terão sido impostas. Consciente desta degradação, dirigi a, no passado dia 11, a Sua Excelência o Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Educação, com cópia para Sua Excelência o Senhor Ministro da tutela, o documento intitulado “Escola Pública”.

Acontece que, seguindo as pisadas dos seus antecessores: “moita-carrasco”, uma maneira tradicional de dizer que Suas Excelências não responderam. É uma realidade muito nossa, a que eu já estou habituado. Os nossos governantes (com raras excepções) não respondem aos cidadãos. Via de regra, comportam-se como reis e senhores, de que nós somos simples vassalos que ousamos dirigi-lhes a palavra.
 
A. Galopim de Carvalho

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Qual é o segredo da Física Divertida?

Prefácio do David Marçal ao meu livro «Toda a Física Divertida», que acaba de sair na Gradiva:

Carlos Fiolhais já chegou ao seu livro número 70, tendo agora mais livros do que anos de vida. Mas Física Divertida foi o primeiro, saído em 1991 e entregue na Gradiva em disquete (se não souber o que é poderá “googlar”, algo que não podia fazer nessa altura). Foi escrito com base em inúmeras palestras dadas em escolas de muitas partes do país, que o autor percorria primeiro num Renault 5 (pode “googlar” também) e depois numa carrinha Rover. Alcançou o topo de vendas rapidamente, tendo sido feitas sucessivas reedições. José Mariano Gago, físico que mais tarde haveria de ser o primeiro e mais marcante ministro da Ciência e Tecnologia em Portugal, escreveu no Expresso uma recensão, em que elogiava o editor Guilherme Valente, chamando-lhe “o reitor da Universidade da Gradiva, tão ou mais exigente do que as demais”, proclamando a ascensão à cátedra pelo autor com aquela obra. Física Divertida ganhou dimensão transatlântica com a tradução para brasileiro, coisa rara num livro publicado em Portugal, surpreendendo o próprio autor com a sua prosa em português do Brasil (os electrões passaram a ser “electrons”, mantendo a sua carga negativa, e a impulsão passou a “empuxo”, continuando a ser para cima).

 Qual é o segredo de Física Divertida? Como confessa Carlos Fiolhais, a receita de sucesso “consiste em misturar e mexer bem ingredientes que são conhecidos e que se encontram avulsos por aí”. E o que o que é que se encontra avulso por aí? Para começar o humor, e não só nos “bonecos do José Bandeira”, mas também no texto. 

O sentido de humor de Carlos Fiolhais é omnipresente, descodificando amiúde a realidade com uma punch line. Somos amigos há muito e as vezes que lhe vi perder o sentido de humor contam-se pelos dedos de uma mão, cingindo-se a situações em que não consegue encontrar as chaves e outras que tais. Mas logo as encontra, as chaves e a graça no acontecido. A importância das chaves também se explica pela física clássica: ao contrário dos electrões, nós temos de ir de um sítio para o outro passando por todos os pontos intermédios, não podemos dar um “salto quântico” do exterior para o interior, sendo pois conveniente ter chaves para abrir portas. 

Outro ingrediente da receita é a história. A da ciência e a história em geral, na verdade as duas são apenas uma, pelo menos desde o século VI a.C. quando os gregos Tales e o seu discípulo Anaximandro, ambos de Mileto, formularam os primeiros princípios da ciência (não da moderna, pois ainda haveria um longo caminho até Galileu nascer). Para Carlos Fiolhais a física não está circunscrita, alastra-se para a vida. Deixamo-nos embalar nas histórias sobre o mundo, o nosso de hoje e os mundos passados e futuros, sem darmos conta da física, que a espaços vai espreitando certeira no livro, como uma personagem que se impõe. Quase sem repararmos estamos, de repente, a fazer experiências mentais com recurso a princípios físicos recém aprendidos, aplicados a situações do dia a dia, do nosso ou de outras pessoas. Esses são os ingredientes e a receita não é secreta, pois está aí à vista de todos! 

 Muitos livros passaram e, em 2007, saiu a Nova Física Divertida. Se a Física Divertida é sobre física clássica, Nova Física Divertida é acerca da física moderna – a paradoxal física quântica, a fantástica teoria da relatividade e as bombásticas física atómica. Aqui as coisas são um pouco diferentes. A física clássica está alinhada com o senso comum: todos sabemos o que acontece quando largamos uma fatia de pizza do topo da torre de Pisa. A física clássica pode ajudar-nos a calcular que velocidade atinge e quanto tempo permanece no ar, mas, na verdade, ninguém fica surpreendido quando a pizza se esmaga no chão nem tem dúvidas de como ela lá chegou. 

 Já na física moderna as coisas são contra-intuitivas e muito matematizadas, sendo a matemática não só uma ferramenta que proporciona e torna útil a teoria, mas não raras vezes indissociável da sua plena compreensão. Numa entrevista feita em 1979 ao Nobel da Física Richard Feynman, um físico divertido, o entrevistador, a propósito dos avanços da física do século XX, pergunta-lhe se somente um reduzido número de indivíduos seria capaz de entender o que se está a fazer. Feynman responde afirmativamente, «a não ser que descubramos um meio de abordar os problemas que os torne mais facilmente compreensíveis.» Esta entrevista está publicada no livro Uma tarde com o Sr. Feynman, recentemente republicado pela Gradiva. 

 O cepticismo de Feynman quanto à possibilidade de real compreensão pública da física moderna é justificado, face ao seu carácter e à sua complexidade. No mundo do muito pequeno (à escala dos átomos e das partículas que os constituem) e do muito grande (das galáxias, dos buracos negros e do Big Bang) as coisas não funcionam como estamos habituados. E não devemos confundir popularidade – Albert Einstein, por exemplo, é uma figura extremamente popular – com compreensão. Mas Feynman também abre uma porta, antevendo a possibilidade de a física moderna se tornar compreensível através de um novo meio de a abordar. É por essa porta que entra Carlos Fiolhais, sem nunca ter perdido as chaves! Com os mesmos ingredientes de antes – o humor e as histórias da vida e do mundo – confeccionou a Nova Física Divertida. 

 Em 1991, quando saiu a Física Divertida, não havia exoplanetas (bem, eles já lá estavam a orbitar estrelas longínquas, nós é que não os tínhamos ainda detectado). Nem havia o Telescópio Espacial James Webb, que os permite analisar. Ainda faltavam alguns anos para os telemóveis se generalizarem e as pessoas tinham em casa tubos em vácuo por onde eram disparados electrões em direcção a ecrãs fluorescentes. No nosso país famílias inteiras passavam horas, sem medo, no enfiamento desses electrões, podendo escolher entre 16 Toda a Física Divertida a RTP1 e a RTP2. 

Havia quem dispusesse de um videogravador, podendo assistir também a programas previamente gravados ou a filmes que alugava num videoclube. Em 2007, ano da Nova Física Divertida, não havia partícula de Higgs (bem, havia, mas ainda não tinha sido encontrada), já todos tinham telemóveis, mas não havia Whatsapp. As famílias dispunham-se de frente a ecrãs de cristais líquidos, LCD (Liquid Crystal Displays), que se alinhavam quando era aplicada uma corrente eléctrica, podendo escolher entre vários canais por cabo. 

Hoje podemos ver televisão em ecrãs de LED (Light Emission Diode), graças à invenção do LED azul, que deu origem ao Nobel da Física de 2014, atribuído a dois japoneses e a um norte-americano. São precisos LED de três cores para fazer uma imagem colorida: vermelhos, verdes e azuis. E o sinal televisivo chega por fibras ópticas, que conduzem luz laser, um conceito que Einstein anteviu. Além de uma multidão de canais o telespectador pode ver séries e filmes à la carte, usando serviços como a Netflix ou a Amazon Prime Vídeo. 

 Mas, na verdade, as coisas não estão assim tão diferentes. Embora o conhecimento e a tecnologia tenham continuado a avançar, não deitámos fora a maior parte do que já sabíamos, pois, a ciência é cumulativa. As leis da física clássica continuam iguais – em 1991 não tínhamos encontrado nenhum planeta a orbitar uma estrela que não o Sol, mas sabíamos, que, se o encontrássemos, a força que o mantinha em órbita seria descrita pela lei da gravitação universal de Newton. Em 2007 já usávamos dispositivos GPS (Global Positioning System) para saber onde estávamos no nosso planeta, que só funcionam graças à teoria da relatividade de Einstein formulada no início do século XX. A aventura continua: em breve poderemos usar computação quântica, aproveitando a misteriosa física quântica. 

 A Física Divertida e a Nova Física Divertida tornaram-se clássicos. Eles aqui estão juntos pela primeira vez num só volume, para as novas gerações, porque a física moderna continuou a física clássica, mantendo-a na sua maior parte. As leis da física que a humanidade  descobriu e descobre continuarão válidas mesmo depois de ter desaparecido o último ser humano, por algum incrível azar ou pelo inevitável falecimento do Sol daqui a cinco mil milhões de anos. A Física Divertida e a Nova Física Divertida talvez não sobrevivam à humanidade, mas, enquanto cá estivermos, vale a pena deleitarmo-nos com a graça da física, que é como quem diz a graça do mundo.

 David Marçal 

 Cruz-Quebrada, 15 de Fevereiro de 2024

O Essencial é invisível aos olhos

Meu artigo na revista Geoscope das Aldeias de Xisto:

Não estamos limitados pelos nossos sentidos. Podemos, como fez Galileu, ampliar a nossa visão por meio de um instrumento: o telescópio. Com a sua ajuda, não são apenas os nossos olhos que veem mais, é também o nosso cérebro que compreende melhor o Universo.

Mas os telescópios não usam apenas luz visível. Hoje somos capazes de recolher não apenas essa luz, mas também luz invisível de todos os tipos, desde os raios gama as ondas de rádio. Descobrimos como ver o invisível, ainda que seja preciso subir acima da atmosfera. E a imagem de conjunto que formamos no nosso cérebro com todas as imagens recolhidas é estonteante: o imenso, talvez mesmo infinito, espaço vazio é ocupado por uma multidão de estrelas, a maior parte delas emitindo principalmente luz invisível, suspeitando nós que todas elas têm planetas em seu redor.

O que chamamos visível resulta de uma circunstância paroquial: o facto de habitarmos um pequeno planeta de uma estrela média. A evolução ao longo de milhões de anos equipou-nos para enxergar a nossa freguesia. Das aldeias de xisto distinguimos à vista desarmada umas centenas de estrelas. Mas a evolução tecnológica, bastante mais rápida, permitiu-nos, com meios como o radiotelescópio da Pampilhosa da Serra, descobrir que o mundo é muito maior e mais rico. A imagem global pode ser expressa pela famosa frase dita pela raposa ao Principezinho: “o essencial é invisível aos olhos”.

FÉRIAS DE SONHO

 Depoimento de Verão que dei ao Correio da Manhã:

 No Verão do ano passado, viajei, com amigos, num veleiro pelos mares do Sul da Turquia.

 Não sei o que mais me espantou, se a multidão nas ruelas de Bodrum (antiga Halicarnasso), se o azul-turquesa das águas do Mar Egeu, se as ruínas gregas da ilha de Cnidos (onde foi achada uma Afrodite), se os restaurantes de peixe na costa, se o ancião barbudo que surgiu de manhã num bote a vender pão (em turco «pide») e mel («bal»).

 Depois, dando um salto aéreo até Istambul (antiga Constantinopla), mergulhei nos bazares, nas mesquitas e, claro, no harém do Palácio do Sultão.  Senti-me, eu próprio, um sultão.

NOVIDADES DA GRADIVA

 

Novidades Gradiva Julho 2024 | Já disponível: "Toda a Física Divertida", de Carlos Fiolhais. De €19,50 por €17,55.


«Física Divertida e Nova Física Divertida tornaram-se clássicos. E aqui estão juntos pela primeira vez num só volume, para as novas gerações, porque a física moderna continuou a física clássica, mantendo-a na sua maior parte.» 

Do prefácio de DAVID MARÇAL

 

Caso inédito de sucesso em Portugal nos anos de 1990, Física Divertida, de Carlos Fiolhais, foi publicado num desses raros momentos de alinhamento dos astros em que livro, autor, ilustrador e leitores se aguardavam mutuamente abrindo assim uma nova via de acesso ao conhecimento até então ignota. À semelhança de outros livros de divulgação científica que a Gradiva publicou, Física Divertida cativou leitores de todas as idades e acumulou dezenas de edições.

Veja aqui o booktrailer!

Quando mais tarde surgiu Nova Física Divertida, que complementava o conteúdo do primeiro volume dedicado à física clássica com a física moderna (desde a física quântica e a física relativista até às físicas atómica, nuclear e de partículas), o sucesso do autor repetiu-se, e uma nova leva de leitores voltou a fascinar-se com o facto de a ciência poder ser não só interessante como ainda divertida.

A reedição integral revista e aumentada destes dois textos impunha-se agora não só porque os leitores continuavam a procurar os livros de Carlos Fiolhais, mas também porque o autor continua a pensar que a divulgação dos aspectos lúdicos da física pode destruir inapelavelmente a ideia preconcebida da física como ciência obscura e maçadora. Cuidadosamente actualizada com os mais recentes avanços científicos, Toda a Física Divertida traz de volta a uma nova geração de leitores a singular capacidade de comunicação de Carlos Fiolhais bem como o seu reconhecido sentido de humor.

Já disponível: "O Livro das Despedidas", de Velibor Colic. De €15,50 por €13,95.

«Chamo-me Velibor Čolić, sou refugiado político e escritor. A minha fronteira é a língua; o meu exílio é o meu sotaque.»

Inspirando-se no seu próprio exílio, Velibor Čolić narra em O Livro das Despedidas a vida de um refugiado político descrevendo na primeira pessoa a condição de desenraizado dos imigrantes e a peregrinação desesperada daqueles que nunca encontrarão verdadeiramente a sua casa.

Fugido da Guerra na Jugoslávia, Velibor Čolić desembarca em França e inicia uma segunda luta: a de tentar recuperar a sua identidade através da aprendizagem de uma nova língua reconstruindo-se a partir dela.

Escrito originalmente em francês e publicado pela prestigiada editora Gallimard, O Livro das Despedidas surpreende pela liberdade narrativa jazzística que a cada fragmento oferece uma improvisação sobre um momento significativo do seu percurso de refugiado em vias de se tornar escritor.

Enquadrado pela gíria dos bairros que percorre, O Livro das Despedidas oferece aos leitores uma verdadeira homenagem à literatura na sua mais cristalina essência. E por detrás do sarcasmo e dos infortúnios do acaso, é possível encontrar um homem cheio de esperança, pronto para partilhar a sua história.

Destaques e relançamentos
"Porque confiar na ciência?", de Naomi Oreskes.

Porque Confiar na Ciência?
Naomi Oreskes

 

€15,00 9,00

 
Neste livro, baseado numa série de palestras proferidas na Universidade de Princeton e publicado originalmente pela Princeton University Press, Naomi Oreskes defende que é a evidência do contributo social do conhecimento científico que o torna fiável. Baseando-se na história da ciência, a autora explica‑nos que o processo de construção da ciência não é perfeito – aliás, nada do que é feito pelos humanos o é – e revela‑nos o modo como o consenso científico emerge, dando‑nos uma certa garantia de que o conhecimento científico obtido é fiável.
"Explicar os Humanos", de Camilla Pang.

Explicar os Humanos
O que a ciência nos pode ensinar acerca da vida, do amor e dos relacionamentos
Camilla Pang

 

€15,00 9,00

 
Explicar os Humanos, escrito­ de ­fora para ­dentro, isto é, tendo a autora como primeira destinatária da sua leitura, é uma explicação tão original quanto incisiva da ­natureza­ humana e ­da ­estranheza­ de­ algumas­ normas­ sociais. A­ perspectiva­ singular­ que ­Camilla Pang tem ­do mundo diz ­muito ­sobre todos nós a cada um de nós, constituindo um guia fascinante­ para ­uma ­vida coerente ­e feliz.
"A Chave, a Luz e o Bêbado", de Giogio Parisi.

A Chave, a Luz e o Bêbado
Giorgio Parisi

 

€14,50 8,70
 

Neste pequeno livro, Giorgio Parisi, prémio Nobel de Física em 2021, explica como se desenvolve a investigação científica fundamental. Numa conversa animada muito compreensível, um dos mais extraordinários físicos teóricos da actualidade conta como a física evoluiu modernamente, de que problemas se ocupa, que interacções existem entre a pesquisa de base e o desenvolvimento tecnológico, que cenários se poderão abrir na sinergia entre a física dos sistemas complexos e a biologia.
"O Pequeno Livro de Cosmologia", de Lyman Page.

O Pequeno Livro de Cosmologia
Lyman Page

 

€16,00 9,60

 
O Pequeno Livro de Cosmologia oferece uma visão rigorosa e vertiginosa do Universo. Escrito por um dos maiores cosmólogos mundiais, este livro curto mas perspicaz, descreve o que os cientistas estão a descobrir com medições precisas do brilho térmico do Big Bang – o fundo cósmico de microondas (CMB) – e o modo como as suas descobertas estão a transformar a nossa visão do cosmos.

PREFÁCIO A «De que somos feitos?», de Dan Levitt (Lua de Papel)

    Meu prefácio ao mais recente livro de ciência da Lua de Papel:   No tempo de Apolo na cidade de Delfos na Grécia Antiga havia uma inscri...