quinta-feira, 10 de julho de 2025

HIDROCABORNETOS

Por A. Galopim de Carvalho
 
A palavra "hidrocarboneto" surgiu como um termo descritivo da composição química de compostos formados apenas por átomos de carbono e de hidrogénio, podendo apresentar uma grande diversidade de estruturas, isto é, de arranjos entre os átomos de cada um destes dois elementos. Os átomos de carbono são relativamente grandes e tetravalentes negativos (C4-) e os de hidrogénio são pequenos e monovalentes positivos(H+). Assim, um átomo de carbono coordena à sua volta quatro átomos de hidrogénio, gerando a estrutura mais simples e menos pesada, que é a do gás metano (CH4). 
 
 
Acontece que, à semelhança do silício, o carbono tem capacidade para formar ligações com outros átomos de carbono, quer com apenas um (ligação simples), quer com dois (ligação dupla), quer com três (ligação tripla). Assim, podem edificar-se polímeros (moléculas compostas pela repetição do mesmo motivo) representados por longas cadeias lineares, ramificadas ou cíclicas (em anel), mais ou menos complexas. Tais características determinam uma grande diversidade de hidrocarbonetos. Os mais simples e leves são gasosos, os mais complexos e pesados são muito viscosos e aparentemente sólidos, situando-se os líquidos a meio termo. 
 
Asfalto

Também referido por betume, tem cor castanha a negra, com a aparência do alcatrão, essencialmente constituído por hidrocarbonetos de elevado peso molecular, é coeso, com a aparência de um sólido às temperaturas e pressões normais na superfície. Conhecido na Antiguidade como “betume da Judeia” é, em grande parte, resíduo resultante da volatilização natural de hidrocarbonetos líquidos e gasosos no seio de um depósito petrolífero. Contem, ainda, à mistura, compostos sulfurados, azotados e oxigenados em maior percentagem do que os petróleos brutos. Muitas vezes resulta da oxidação parcial de misturas de hidrocarbonetos líquidos empobrecidos nos componentes mais leves e, daí, ser considerado um oxibetume. Todavia, alguns asfaltos podem resultar directamente de matéria orgânica, sob certas condições de origem e de evolução. Deve acrescentar-se que os termos asfalto e betume são igual e vulgarmente usados como nomes dos produtos artificiais de composição semelhante e idêntico aspecto. Por asfaltito, termo petrográfico, entende-se um asfalto com ponto de fusão acima de 110ºC, e por gilsonito, uma variedade de asfalto muito dura.

O asfalto tem sido usado na: pavimentação de rodovias, ciclovias, arruamentos, pistas de aeroportos e outros pisos, como aglomerante em misturas com brita, gravilha e areia; impermeabilização de coberturas e lajes, em construções civis, barreiras contra humidade e fundos de reservatórios e canais; produção de tintas, vernizes e outros.

O petróleo bruto

crude oil ou crude (do latim crudus, “cru”, “bruto”, “não refinado”), para o qual também se conhecem a designação ramas de petróleo ou, simplesmente, ramas, é uma mistura de hidrocarbonetos líquidos à temperatura e pressão da superfície, com maiores ou menores percentagens de outros hidrocarbonetos, sólidos e gasosos, em solução. Pode incluir, ainda, ceras, resinas e compostos azotados, sulfurados e oxigenados. Em termos de composição química média, contêm 85% de hidrogénio, 13% de carbono, sendo a parte restante essencialmente constituída por enxofre, azoto e oxigénio. A densidade das ramas oscila entre 0,83 e 0,96. O conhecimento destes parâmetros tem grande interesse, pois a gama de produtos possíveis de extrair do petróleo bruto pode ser prevista a partir daqueles valores. A viscosidade (variável que depende, entre outras, da composição e da temperatura) é outro factor importante na avaliação da qualidade das ramas. O aspecto do petróleo bruto pode variar entre o de um líquido como o conhecido petróleo de iluminação, comercial, e o de um óleo negro e viscoso, tanto mais pastoso quanto mais deficiente for em componentes leves. Via de regra, os hidrocarbonetos líquidos são tanto mais escuros quanto mais elevado for o número de átomos de carbono nas respectivas moléculas.

Da mesma maneira que o carvão substituiu a lenha e alimentou a Revolução Industrial, o petróleo veio substituir, em grande parte, o carvão durante o século XX, estando o seu declínio já à vista, enquanto o gás natural tem ganho terreno entre os combustíveis tradicionais, e os xistos betuminosos foram e têm sido encarados como uma perspectiva futura. Uma visão que entra em confronto com a necessidade e urgência de estancar o aquecimento global.

O petróleo, em oposição aos óleos vegetais e animais, começou por substituí-los em muitos dos seus tradicionais usos, em especial a iluminação. Das candeias de azeite dos nossos avós passou-se aos candeeiros a petróleo iluminante (querosene) dos nossos pais e da nossa infância.

Uma outra utilidade do petróleo, da maior importância, é a sua aplicação como matéria-prima da Petroquímica, a indústria que criou e utiliza os derivados do petróleo e do gás natural como base na produção de uma vasta panóplia de materiais objectos e equipamentos que caracterizam o nosso viver individual e colectivo.

O gás natural é composto, essencialmente, por hidrocarbonetos gasosos às temperaturas e pressões normais à superfície do globo, dos quais o metano é o mais comum e abundante (e também o mais estável) com cerca de 85%. Entre os outros hidrocarbonetos, menos frequentes e geralmente subordinados, distinguem-se o etano, o propano e o butano. A estes componentes essenciais estão sempre associados, embora em pequena quantidade, outros gases, como azoto, dióxido de carbono e gás sulfídrico.

O gás natural pode ocorrer isoladamente ou em associações com concentrações de petróleo bruto e, neste caso, quer dissolvido no líquido (subsaturado), quer separado dele (saturado) e cativo acima da camada petrolífera.

terça-feira, 8 de julho de 2025

"TENHO ESPERANÇA NA RAZÃO E NA CONSCIÊNCIA HUMANA, NA DECÊNCIA"

Na continuação do texto Bárbaros à porta


Entendem dois políticos responsáveis pelos trabalhos na Assembleia da República e juristas e constitucionalistas que ler uma lista de nomes de crianças duma turma, em redes sociais e nessa Assembleia, não viola nenhuma regra jurídica nem constitucional; é "liberdade de expressão". 

Pode ser que assim seja, não sei e, portanto, não me pronuncio, mas sob o ponto de vista ético e, mesmo moral, é um acto bárbaro e, por isso mesmo, condenável. E sob o ponto de vista educativo, é absolutamente reprovável por referência aos valores (éticos) que definem a cidadania.

Assim, fez bem o Ministro da Educação em falar sobre o sucedido, distanciando-se dos seus dois colegas parlamentares (de outro partido). E também fez bem em estabelecer a ligação com a "disciplina" de cidadania, no respeito pelos valores da nossa Constituição (ver aqui). Nem outra coisa seria de esperar quando essa área está colocada nas prioridades das alterações curriculares em curso.
 
Entretanto:
- vários políticos de vários partidos rejeitaram o que consideram ser um comportamento populista, demagógico, instrumentalizador,  vergonhoso... tanto mais que se trata de crianças.
- sete associações de pais e encarregados de educação de escolas de Lisboa apresentaram uma “Carta Aberta de Repúdio às Declarações Xenófobas e à Exposição Indevida de Menores” dirigida ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República e partidos representados no parlamento e ao presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Além disso estão a ponderar apresentar queixa formal à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) e à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) (ver aqui);
- um partido político diz estar a fazer a mesma ponderação; 
- a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) disse ter recebido dezenas de queixas e, depois de uma análise, decidirá se avança para averiguações oficiais (ver aqui).
 
Como Sygmund Bauman disse numa entrevista, já no fim da sua longa vida, “tenho esperança na razão e na consciência humana, na decência”. Também eu tenho!

Por muito que certas pessoas e grupos façam para espalhar o caos e a perfídia, por muito que gritem e esbracejem, não conseguem destruir os padrões civilizacionais que regulam a nossa vida em comum. No respeito pelas instituições democráticas que preza esses valores, podemos, de modo sereno, fazê-los valer.

Termino esta nota, recomendando vivamente a leitura de um excelente artigo saído ontem no Público e assinado por Marine Santos (ver aqui)
_________
Nota: Recortes recolhidos no jornal Expresso de 8/7/2025 em artigos de Liliana Coelho e de Isabel Leiria.

OS EXAMES COMO INDICADOR DO ESTADO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

Não tenho prestado grande atenção aos exames nacionais, aos seus enunciados e critérios de correcção, mas no que ouvi e li destacam-se dois aspectos: 1) aumento do número de perguntas de escolha múltipla com diminuição do número de perguntas que implicam elaboração escrita e 2) digitalização da avaliação, tanto na realização de provas pelos alunos como na sua correcção pelos professores. 

Vejo os mesmos aspectos presentes no ensino superior, devidos, neste caso, à organização do ano escolar por semestres, às diversas épocas de avaliação que preveem e ao curto intervalo entre elas, ao controlo, feito por meio de plataformas, dos diversos passos dos processos avaliativos, mas também aos muitos alunos que, em geral, cabem a cada professor, à dificuldade de escrita que revelam e à falta de preparação para responder a solicitações mais complexas. Isto para não falar da evidente desvalorização do ensino em favor da investigação; a carreira depende dela, não do trabalho pedagógico, visto como uma perda irremediável de tempo e de esforço.

Assim, o artigo que António Carlos Cortez ontem publicou no Diário de Notícias é mais do que uma nota sobre os exames nacionais, é uma análise realista do sistema de ensino, no seu todo.

Dele destaco a passagem que se segue, ainda que valha a pena lê-lo do princípio ao fim (aqui):

"... o que se está a fazer na educação em Portugal é, por via de uma verdadeira política de terraplanagem das artes e das humanidades a preparar a sociedade futura portuguesa para um modo acrítico de ser e de estar neste país. O que vemos é mesmo uma política de terraplanagem em relação à língua portuguesa. 

Os exames digitais anunciam o óbvio: a dominação do Poder sobre as gerações desmemoriadas nascidas já no século XXI. Depois de 12 anos sem terem de ler nada de nada, nem de saber escrever seja o que for, é da mais leviana falsidade dizer-se que, pelo facto de serem exames digitais, os alunos estão a ser preparados para um mundo cada vez mais competitivo. 

O que acontece é justamente o contrário: as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade."

segunda-feira, 7 de julho de 2025

BÁRBAROS À PORTA

Roubo o título a Eugénio Lisboa. Ele haveria de compreender e de me desculpar.

Dois deputados eleitos, de um partido político reconhecido pelo Tribunal Constitucional e no qual os portugueses votaram generosamente nas última eleições, leram:
1) numa rede social os nomes próprios e apelidos, de crianças que estão numa sala de jardim-de-infância, notando que a maior parte era estrangeira;
2) em reunião plenária da Assembleia da República os mesmos nomes, ainda que não referindo os apelidos.
E porquê? Porque querem provar que as crianças estrangeiras tiram lugar nas escolas às crianças portuguesas.

Discutem agora os juristas se o acontecido é ou não crime, invocando sobretudo o Código Penal e o Regime Geral de Proteção de Dados (RGPD). Não tenho competência para me pronunciar nessa matéria, mas tenho competência para dizer que aquilo que esses deputados fizeram não é coisa de gente decente.

Talvez não entendam o que significa "dignidade humana", nem "protecção de menores", nem "reserva de dados pessoais"...
 
Talvez não saibam que há uma Declaração dos Direitos da Criança, onde se diz que:
"Todas as crianças, absolutamente sem qualquer exceção, serão credoras [dos] direitos [enunciados nesta Declaração], sem distinção ou discriminação por motivo de (...) origem nacional (...) nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou de sua família."
E um desses direitos é, como se sabe, a educação.
 
Talvez não saibam que na Constituição da República Portuguesa se diz que:
"As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado (...) especialmente contra todas as formas de (...) discriminação e contra o exercício abusivo (...) de instituições"
e que
"A todos são reconhecidos os direitos (...) ao bom nome e reputação (...) à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação"
 
Talvez não saibam que, na sua Deliberação n.º 1495/2016, dirigida às escolas, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, diz que:
"Há um vasto conjunto de informação pessoal dos alunos (...) que constitui não só uma intrusão na privacidade das crianças como também um sério risco para a sua segurança (...). É disso exemplo (,,,) a publicação de um quadro com a constituição das turmas, com a identificação do ano de escolaridade e da turma, o nome completo dos alunos, a sua idade (...)"
 
Por este tão triste quão lamentável acontecimento são igualmente responsáveis aqueles que, tendo tido acesso à "constituição da turma", a facultaram. Um dos elementos do partido diz terem sido pais...
 
Quem, além da descrição, viu as imagens de ambas as leituras pensará, por certo, que a barbárie está à porta, mas também deve pensar no que pode fazer para não a deixar entrar.

domingo, 6 de julho de 2025

OS "ESTUDOS" COMO CONDIÇÃO E FORÇA DE DECISÕES POLÍTICAS

"Temos de usar evidência (informação científica), temos de usar os estudos [...]
Depois da avaliação e com a evidência que se vai somando, também em outros países,
faremos essa avaliação e se houver evidência nesse sentido [de proibição],
não teremos problemas nenhuns [em fazê-la] [...].
É natural que no próximo possa haver uma alteração política".

Fernando Alexandre, Ministro da Educação, Lusa/Expresso, 2024.

O Conselho de Ministros do passado dia 3 aprovou um Decreto-Lei que regula a utilização, em contexto escolar, de equipamentos digitais com acesso à internet. Entre eles estão os telemóveis.

Nesse normativo, que há-de sair, o Governo proíbe, a partir do próximo ano lectivo, o uso dos mencionados equipamentos nos 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico. Na base da decisão estará um estudo encomendado, em setembro de 2024, pelo Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI), ao Centro de Planeamento e de Avaliação de Políticas Públicas (PLANAPP), com o objectivo de conhecer a utilização dos telemóveis nos recintos escolares. 

Não consegui encontrar o estudo (nem no sítio do mencionado Centro), mas presumo que seja sério. Reproduzo as principais conclusões (julgo que derivadas da auscultação de directores de escolas onde os telemóveis foram proibidos) que estão disponíveis online:

"... mais de metade das escolas que proibiram o uso de smartphones registaram uma diminuição do bullying e da indisciplina do 2.º ciclo para o ensino secundário, e a esmagadora maioria dos alunos passou a conviver mais nos intervalos, a fazer atividade física e a utilizar os espaços de recreio durante o recreio".

[Luís Afonso dedicou ao estudo um episódio d´A mosca]

Ora, estas conclusões coincidem com as de uma infinidade de outros estudos que têm sido amplamente divulgados, pelo que faz sentido perguntar: o MECI precisava deste para legitimar a proibição? Terá ele maior fiabilidade do que a muito conhecida e reconhecida revisão exaustiva de estudos que Desmurget realizou (ver, por exemplo, aqui ou aqui)? Não bastaria que alguém no MECI recolhesse e sintetizasse informação credível?

Além disso, apesar de os políticos poderem (e em alguns casos deverem) ter em conta estudos científicos para tomarem decisões, a verdade é que há outros factores nesse processo, tão ou mais importantes, que são omitidos. 

E porque é que isso acontece? Porque os políticos sabem que as suas decisões serão mais bem acolhidas se forem invocadas "evidências" para as mesmas, e isto apesar da desvalorização do conhecimento científico, que tende a grassar. Não invocam, por exemplo, fundamento filosófico ou ético (que precede sempre o científico) porque a este ninguém está disposto a dar crédito...

Os estudos passaram a ser os "tira-teimas" da política educativa. O raciocínio é algo como: não podemos apresentar uma decisão sem termos um estudo específico; encomenda-se e ele aparece feito; se indica tal, é tal que decidimos, e decidimos bem porque era o que o estudo indicava. Isto é a política a esconder-se atrás de estudos e, eventualmente, a desculpar-se com eles.

Acontece que em Educação (mas não só) há estudos para todos os gostos (e são várias as entidades, com as suas agendas, que os assinam): uns vão num sentido e outros no sentido contrário, pelo que todas as decisões que se tomem podem ser justificadas.

O filósofo espanhol Daniel Innerarity, numa entrevista a propósito do seu livro A sociedade do desconhecimento, nota que a política não deve limitar-se a transladar as verdades científicas para as decisões. Não é verdade que os políticos decidam melhor se derem ouvidos àquilo que especialistas lhes dizem, entre outras razões porque há muitos especialistas que se contradizem entre si.  

À margem desta reflexão, e na linha do que tenho dito neste blogue, entendo que a decisão de inibir o uso de telemóveis na escola, está certa. Mas isto se partirmos do princípio que os alunos vão à escola para desenvolverem as suas capacidades, para serem educados.

sábado, 5 de julho de 2025

VIOLINOS COM BÁRBAROS À PORTA

A voz de Eugénio Lisboa na poesia que nos deixou,

Quando uma orquestra toca Mozart,
enquanto o Titanic se afunda,
dá um grande exemplo da bela arte,
que dentro de nós se tornou fecunda.

Mas quando, distraídos, percutimos,
com os bárbaros mesmo já à porta,
os sons de um violino que fruímos,
somos o que o bom senso não suporta.

Ignorar fogo ou vento que nos mata,
brincando com soldadinhos de chumbo
ou comendo pastelinhos de nata,

é como enfrentarmos enorme Jumbo,
tentando matá-lo com alfinete,
enquanto fruímos um bom banquete!

Eugénio Lisboa

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Apontamentos — para reflexão

 Há um interesse global em estupidificar as pessoas

António Carlos Cortez, em entrevista recente ao Semanário Expresso (ler aqui) 

1.

No final do século passado, "foi êxito estrondoso na Alemanha" o livro do professor de literatura Dietrich Schwanitz intitulado Cultura — tudo o que é preciso saber, tradução portuguesa de 2004, edições D. Quixote. Logo a abrir, numa "Introdução sobre o estado das escolas", o autor, lembrando o naufrágio de Robinson Crusoe, escreve:

"No que à cultura diz respeito, encontramo-nos na situação de Robinson. Naufragámos. Isto é grave, mas não é uma catástrofe, desde que não percamos o moral, não entremos em pânico, sejamos capazes de aprender e tenhamos determinação e persistência suficientes para nos reorganizarmos."

E continua:

"O ensino transformou-se num reino das trevas. No seu interior evaporaram-se as ideias sobre o que devemos, afinal, aprender. Uma reflexão séria, apoiada numa base científica sólida, sobre os objetivos do ensino, é algo que não se vislumbra acontecer em parte alguma."

2.

O escritor Afonso Cruz, no seu mais recente livro, sugestivamente intitulado O vício dos Livros II (Companhia das Letras, Maio de 2025), reflecte, em textos curtos, sobre os problemas inerentes à relação entre os livros e os leitores, na procura de resposta a questões: como tornar a leitura apelativa? como levar os jovens a ler? como levar os adultos a ler? O escritor deve escrever para o leitor?

São questões de sempre que estão intimamente ligadas a outras — literacia, conhecimento, educação e cultura. É na escola que tudo começa...

Num desses capítulos, o autor, cita John Carey, professor emérito de Literatura Inglesa, que num livro publicado em 1992, no qual analisa a relação entre a literatura e as massas entre 1880-1939, escreveu:

"Os intelectuais não poderiam, evidentemente, impedir a alfabetização das massas. Mas podiam impedi-las de ler literatura, tornando-a extremamente difícil de ser compreendida — e foi isso que fizeram. O início do século XX assistiu a um esforço deliberado, por parte da intelectualidade europeia, de excluir as massas da cultura. Em Inglaterra, o movimento ficou conhecido como modernismo. Noutros países europeus, recebeu nomes diferentes, mas os ingredientes eram essencialmente os mesmos, revolucionando as artes visuais e também a literatura. O realismo do tipo que se supunha que as massas apreciavam foi abandonado. O mesmo aconteceu com a coerência lógica. A irracionalidade e a obscuridade foram cultivadas."

Os escritores não estavam sozinhos... Este elitismo faz parte das políticas culturais da época e de uma determinada definição de cultura, defendida e apoiada pelas determinações oficiais, em termos de educação, de divulgação do livro. Cultura era, então, a alta cultura... Havia, assim, os intelectuais cultos e o povo inculto.

3.

Lembremos:

— Entre nós, o Estado Novo, criou, em 1936, o Instituto Alta Cultura, designado Instituto para a Alta Cultura a partir de 1952, com o fim de apoiar a investigação científica e a divulgação da cultura portuguesa. 

— Este Instituto só foi extinto em 1976. Deixou de ter funções na área da Investigação Científica, funções que passaram para o Instituto Nacional de Investigação Científica (INIC), agora Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), um I.P. que iniciou a sua actividade em 1997.

Perdeu-se, entretanto, o termo "Cultura", ficando apenas "Investigação"...

Mas os Programas de Governo iam manifestando a sua preocupação com as questões culturais:

— no primeiro governo após o 25 de Abril de 74, havia o Ministério da Educação e Cultura

— em 1983, surge, pela 1.ª vez, um Ministério da Cultura.

E a CULTURA foi passando de Secretaria de Estado a Ministério, e vice-versa.

Significativamente, ou não, no actual governo a designação passou a ser "Ministério da Cultura, Juventude e Desporto".

Isaltina Martins

quinta-feira, 3 de julho de 2025

DE "SABEMOS QUE NÃO SABÍAMOS" AO DECIDIR O QUE TEMOS DE FAZER

Não sei se entendi bem: há poucos dias, o Ministro da Educação, Ciência e Inovação, reconheceu a impossibilidade de saber quantos alunos, quantas turmas não tiveram aulas, na escolaridade obrigatória, por falta de professores nos últimos dois anos lectivos. Isto depois de, antes, ter apresentado números que validavam o sucesso de medidas tomadas pela sua equipa, números que se viu não corresponderem à verdade. A verdade, tão óbvia que é, parece querer esconder-se...
Com tantos departamentos e serviços que o Ministério integra, com tantas solicitações de dados que, em contínuo, faz às escolas e que são colocados em plataformas digitais para o que for preciso, com uma Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, para tratar esses dados, e uma Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, que terá uma ligação privilegiada às escolas, com tantos parceiros educativos sempre dispostos a colaborar para o bem do sistema, é compreensível essa impossibilidade?
 
O Governo, pela voz deste Ministro, reconheceu que “não sabia que não sabia”. E talvez não soubesse exactamente a quantos alunos, a quantas turmas faltaram professores... Demos-lhe o benefício da dúvida...
 
E continua: “agora sabemos que não sabíamos, mas vamos passar a saber”. Esta terá sido a conclusão resultante de uma auditoria que solicitou a uma certa empresa, na sequência da polémica causada por 
 
“... lacunas e insuficiências que põem em causa a solidez dos dados reportados pela Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, referente ao número de alunos sem aulas a uma disciplina, bem como a possibilidade de verificação desse mesmo número para os anos letivos de 2023-2024 e 2024-2025″.
 
A mesma empresa reconhece que "o sistema actual não é suficientemente robusto para que se tirem conclusões sobre o número de alunos sem aulas", não permite apurar esse número “com exactidão” e sugere como modo mais fiável a "recolha e compilação dos sumários das aulas (...) diretamente das escolas”. Ratificada a sugestão pelo Ministério, transforma-se em medida a partir do próximo ano letivo para “monitorizar com rigor, credibilidade e transparência” o problema “em diferentes momentos e ao longo do ano letivo” (ver aqui e aqui).
 
Ficam três questões que se me afiguram primordiais:
 
Essa monitorização será mais uma tarefa para as escolas quando o Ministro veio reconhecer em carta recente dirigida aos professores a sua sobrecarga burocrático-administrativa e pedir-lhes ajuda para a superar (ver aqui)?
 
Não terá o Ministro conhecimento de estudos realizados no país sobre o problema em causa, a pedido do próprio Ministério e amplamente noticiados, com destaque para o de Nunes et al. (2021), cujo título é suficientemente ilustrativo (Estudo de diagnóstico de necessidades docentes de 2021 a 2030)? 
 
Que importância terá "monitorizar com rigor, credibilidade e transparência" a falta de professores, se nada se fizer de relevante para seleccionar e formar devidamente os que são necessários no sistema?

No respeitante a este último aspecto, que me diz particular respeito, deixo duas notas.
 
Não vejo que esta equipa ministerial nem a anterior tenham prestado a devida atenção aos dados do mencionado estudo, solicitado pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência. E são muito objectivos e claros os que expõe relativamente à falta de professores, bem como as projeções e recomendações que apresenta.

Também não vejo que tenham prestado a devida atenção ao relatório Formação profissional de docentes que, na sequência desse estudo e da discussão que desencadeou, nomeadamente no Conselho Nacional de Educação, o Ministro da Educação e o Secretário de Estado do Ensino Superior encomendou a um grupo de trabalho que foi criado com a missão de apresentar propostas de alteração ao regime jurídico de formação inicial de professores.
 
O que tenho percebido é uma evidente falta de ensejo e de mobilização, em primeiro lugar, por parte da tutela para que a escola pública tenha professores que realmente o sejam. Não basta atribuir a alguém a designação de professor para que esse alguém passe a ser professor, nem basta fazer retoques cosméticos nos cursos de formação (mestrados em ensino) para que eles passem a ser contextos efectivos de formação.
 
Em suma, o problema da falta de professores, passará pelo inventário em causa, mas está muito, mesmo muito, para além disso; está em encarar o ensino como uma profissão de elevadíssima competência, autonomia e responsabilidade.

"O PODER DA LITERATURA". UMA HISTÓRIA, UM LIVRO

Talvez haja quem se recorde de, nos anos oitenta do passado século, certa professora, chamada Maria do Carmo Vieira, e os seus alunos do 11.º ano da Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa, terem redigido uma carta aberta em defesa do café Martinho da Arcada, frequentado por Fernando Pessoa e que, à altura, estava destinado a "mudar de ramo". A carta deu origem à Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA), cujas solicitações tiveram acolhimento político e governamental (ver aqui e aqui). 

A história é mais complexa do que isto, mas o que me interessa aqui sublinhar, porque toca o cerne, a alma, da educação escolar, é a possibilidade de se construir na escola, na relação entre professores e alunos, por via do conhecimento, algo de novo, capaz de tornar o mundo um pouco melhor. Não é certo que sempre assim aconteça, não é certo que, no caso, a literatura tenha sempre o poder de mobilizar o que de melhor há nas pessoas em prol do bem-comum, mas por vezes pode... A educação cidadã é isto mesmo, não aquilo que o Ministério da Educação, desde há longa data, quer que seja.

Perceber-se-à melhor o que digo com a leitura do livro que Maria do Carmo Vieira publicou recentemente, descrito no texto de apresentação como "um manifesto apaixonado sobre o poder de a literatura inspirar novos interesses e paixões e desencadear mudanças na sociedade" e sobre "o papel fundamental do professor de Português como transmissor de um legado cultural, que desafia imposições e métodos, evidenciando o contraste entre o sentido da literatura, arte da palavra, e o utilitarismo de um texto funcional."
 
Na feira do livro de Lisboa encontrou-se a professora e dois desses seus alunos numa maravilhosa conversa que pode ver abaixo.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

"NESTE CAMINHO DO DIGITAL"

Há escassos dias, o actual Ministro da Educação Ciência e Inovação dirigiu uma carta (ver aqui) aos Professores e Diretores para lhes agradecer o "empenho e mobilização" nas provas finais do 9.º ano em formato digital, agradecendo também ao pessoal não docente e da tutela que trabalharam nas ditas provas. Iniciada a carta por um singelo "Caro/a sr./a Professor/a", presume-se que tenha querido dar destaque aos Professores. 
 
O texto não é longo, mas toca aspectos essenciais do sistema de ensino. De entre eles, destaco três.

1. Começo pela frase abaixo reproduzida que revela um dos sentidos que se tem visto atribuído à escola pública: 
 
"desenvolver competências que serão cada vez mais relevantes para a empregabilidade."
 
Tornar os alunos potenciais empregados (de alguém) será, segundo o Ministro, e muitos concordarão, o fim último da escolaridade, o qual, com alguma facilidade, se traduz em competências avaliáveis por via digital. Permite obter "evidências" que constarão em relatórios e estudos vários, a que a comunicação social dará destaque.
 
Porém, aqui surge uma dúvida: que lugar é reservado ao empreendedorismo, que já teve (ou ainda tem) igual estatuto? Um fim substitui o outro? É que este leva cada sujeito a desenvolver competências para ser empresário de si próprio, não é um emprego que há-de procurar, mas um negócio.
 
2. O que se destaca na carta é a "transição digital", designada no Programa de Governo por "Estratégia para o Digital na Educação":
 
"apoiar e preparar alunos e famílias para lidar com um mundo cada vez mais digital"
"
preparação dos nossos alunos para um mundo cada vez mais digital"
 
Uma consideração a fazer é que o Estado pode determinar que a escola apoie e prepare alunos para um mundo cada vez mais digital (ainda que isso seja contestável), mas não o pode fazer em relação às famílias. Esta opção, além de fantasiosa, é ilegítima: as famílias já não estão ao obrigo da escolaridade obrigatória e o Estado não tem mandato para as "educar" seja para o que for.

Outra consideração a fazer é que a escola continua a seguir as "exigências" que certos sectores da sociedade impõem. Ainda que não se perceba bem o alcance da "
preparação... para um mundo cada vez mais digital", presume-se que ela não consista numa reflexão profunda sobre esse mundo, mas sim no uso de ferramentas digitais, mesmo que em nada beneficiem a aprendizagem.

3. Não entro na discrepância entre os vários problemas que os jornais relataram sobre a aplicação da mencionada prova, alguns deles reconhecidos pelo Ministério (ver aqui) e o tom optimista, ainda que moderado, do Ministro, reafirmando que:
 
"a avaliação externa da aprendizagem em contexto digital é parte fundamental do sistema educativo, sendo este um dos compromissos assumidos pelo MECI".
 
É, portanto inabalável "neste caminho do digital" e, para o trilhar, conta com todos nós, directores, professores, formadores...
 
Uma nota final: na assinatura da carta consta o nome do Ministro, sendo dispensada a menção ao cargo. Presumo que se trate de uma estratégia de igualização àqueles a quem se dirige. Acontece que, no sistema, a diferentes tarefas e responsabilidades correspondem diferentes cargos, logo espera-se que um Ministro se assine como tal, sem subterfúgios.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

"O QUE PASSARÁ A SER HUMANO?"

... muitas dessas vozes acolchoadas no medo do que por atavismo ou negligência não entendem ou que por iniquidade se recusam entender (...). É esse um sinal perturbador destes dias. A intolerância engrossa a voz e cerra os punhos. Perdeu o ignorante a vergonha da ignorância, antes a exibe em voz alta, em arruaça, em demonstração de despeito (...).
Sentimos o bafo de um poder demente aliado ao triunfalismo tecnológico (...). Os cidadãos são apenas público que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil condição de seguidores e os seus ídolos são fantasmas, assim ligados por fios invisíveis (...). Cada dia mais seguidores e menos cidadãos (...).
Que lugar ocuparemos adiante, como seres humanos (...). O que passará a ser o humano? Esta é, por certo, a pergunta central deste tempos de tantas sombras.

O texto acima é formado por extractos de uma breve crónica de Fernando Alves, na qual incluiu extractos do discurso de Lídia Jorge, preparado para o passado dia 10 de Junho. Tanto o radialista como a escritora tiveram o cuidado de notar que os elementos particularmente inquietantes aqui registados acompanham a aventura humana, mas há momentos em que eles põem em causa essa mesma aventura. Aquele em que estamos é, por certo, um deles. "O que passará a ser o humano?" num futuro próximo ou já neste presente?

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Uma reflexão de última hora

Por A.M. Galopim de Carvalho

Tenho dias em que o espelho da casa de banho e, sobretudo, o corpo físico me dizem, sem rodeios, os anos que já vivi. Não tenho qualquer problema em falar sobre um fim que se aproxima. Sinto-o, serenamente, todos os dias, como a areia a fugir por entre os dedos. Quero e procuro festejar a vida em felicidade e é neste sentimento que, antes que seja tarde, faço questão de deixar a todos os que amo, esta reflexão com o sabor de uma despedida natural, racional, tranquila e, direi mesmo, sorridente. 

Poder trabalhar e conviver fazem parte da felicidade que vivo, realmente. Felizmente, nada me impede de trabalhar e trabalhar, no meu caso, é escrever. Bem sentado, frente ao monitor, como já disse tantas vezes, não tenho idade, escrevo horas a fio, todos os dias (os reformados não têm Domingos nem feriados, nem férias) em Blogues, jornais online e, em especial, no Facebok, para mais de 40 000 seguidores, na grande maioria, desconhecidos. Deles recebo centenas de comentários repletos de apreço, simpatia e afectos, que me enchem de felicidade e comedido orgulho, permitindo-me um conviver que, embora à distância e me encoraja a continuar. 

Comodamente instalado, aqui, frente ao monitor, vivo a despreocupação e a alegria de uma crónica de tempos idos, volto a ser o que fui nos anos de maior pujança da minha vida, mas mal me levanto da cadeira, os joelhos e as pernas trazem-me ao presente.

Entretanto, fui publicando livros, dois na Gradiva, quatro na extinta Editorial Notícias, vinte e seis na Âncora Editora, que tem, neste momento mais dois prestes a sair, Os Homens não Tapam a Orelhas, em segunda edição, com prefácio do General Pedro Pezarat Correia, e Por Caminhos de Pedra Solta, com prefácio de Helena Roseta.

Tenho plena consciência, sem que isso me incomode, que estou a descer os últimos degraus de uma vida cheia de trabalho e de afectos. Mas continuo a escrever, tendo sempre no pensamento o monte de projectos que sei não irei concluir e, isso, sim, já me incomoda. E esta é razão da minha pressa, estado de alma que marca o ritmo do meu trabalho. 

Quero ver publicados dois originais em fase de revisão: A Professora, uma história de vida de uma companheira e amiga de há mais de 80 anos, com quem “fundi” a minha, vai para 68, e Do Laboratório à Cozinha, que reúne mais de uma centena de experiências culinárias, muitas delas já publicadas na minha página no Facebook

Durante quarenta e quatro anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas Universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à química e à física, foi uma constante na minha vida. 

Quando o limite de idade me arrumou, contra minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que, por amor à arte, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto no espaço da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; refogados, guisados e estufados tomaram o lugar de sulfatados, reduzidos e oxidados; átomos e iões foram substituídos por bagos de arroz, de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa. Quero com isto dizer que a cozinha é, por assim dizer, um outro percurso de prazer e, ao mesmo tempo, um escape. 

Tenho em mãos o que se deverá intitular Nós e as Pedras, uma pesquisa no sentido de mostrar aos meus concidadãos que tudo, mas mesmo tudo, o que nos rodeia, incluindo nós próprios e toda a biodiversidade, tem origem nas pedras, no conceito antigo da palavra, que abrangia as rochas e os minerais. É, talvez, um sonho concluí-lo, mas o desejo de o dar como tal, dá sabor aos meus dias. 

Há ainda, no horizonte, dar cumprimento a uma incumbência, que consiste em passar a livro toda a documentação escrita e fotográfica existente e a esperança de a poder cumprir é uma das razões da pressa a que aludi atrás. Finalmente, mais do que um sonho, antes uma deliciosa utopia: “E, assim, o tempo se transformou em palavras”. 

Acontece que não me seria difícil encontrar situações e pensamentos para concretizar esta ideia, mas… Todavia, sempre disse, escrevi o mostrei que assim era, que “a utopia é a força que transforma o sonho em realidade."

Lisboa, dia de São João de 2025

sexta-feira, 20 de junho de 2025

UM PROBLEMA ÉTICO DE PRIMEIRA GRANDEZA E DE ESCALA GLOBAL - 2

Ainda no documentário Young Addictions, objecto de texto anterior, vale a pena prestar atenção aos seguintes depoimentos:

Jeff Seibert (Ex-produtor executivo do Twitter). Estamos aqui em Silicon Valley, o centro do ecossistema tecnológico, a casa das grandes empresas tecnológicas mundiais e a sede da inovação tecnológica nas últimas décadas. Estou no setor da tecnologia há quase 20 anos. Criei três empresas diferentes e fui diretor de produtos de consumo no Twitter. Percebi que não havia alternativa. Deixei o Twitter e jurei nunca voltar a trabalhar numa empresa baseada em anúncios porque não queria roubar o tempo das pessoas. A partir de meados da década de 2000 em Silicon Valley começaram a perceber que era possível aplicar truques e técnicas de psicologia social para tornar as aplicações ainda mais viciantes. E começou a haver aulas em Stanford sobre como o fazer. Os funcionários destas empresas tornaram-se especialistas nisto.

Anne Lemke (Psiquiatra responsável pela Unidade de Medicina Dual no Diagnóstico Clínico de Dependências na Universidade de Stanford): Essas empresas contrataram neurocientistas que têm um conhecimento elevado sobre os padrões de recompensa e aplicam esse conhecimento para manter as pessoas agarradas. E fazem-no de muitas maneiras. O constante e interminável scroll é uma delas, porque nunca chegamos a sentir que já terminámos.

Jeff Seibert. A economia da atenção está basicamente a tornar-nos num produto. O que estas empresas estão realmente a vender é a nossa atenção. Um algoritmo é uma série de instruções que os computadores seguem com um certo objetivo. O algoritmo subjacente aos produtos das redes sociais está predefinido com o objetivo de ser o mais lucrativo possível.

Carissa Véliz (Doutorada em Filosofia pela Universidade de Oxford e autora de Privacidade é Poder”). E esse é um dos problemas que estamos a enfrentar, o facto de estes algoritmos não serem concebidos para melhorar a qualidade de vida das pessoas. São concebidos para fazer as empresas enriquecer e para tornar os jovens dependentes.

Jeff Seibert. O conteúdo (…) que as novas plataformas oferecem é cada vez mais simples. O Twitter usa texto e isso é demasiado difícil, é preciso energia para escrever e ler. Depois o Instagram é fotografia, é mais fácil de tirar e ver. E quanto ao vídeo? O Snapchat lançou vídeos de dez segundos. Agora, com o TikTok, é um fluxo interminável de conteúdo em vídeo. É tão hiponotizante que se torna muito atrativo para as crianças.

Anne Lemke. O vídeo vai diretamente para o nosso córtex visual. Combinando-o com música estimula-se o nosso sistema límbico ou cérebro emocional. Combinando estas coisas (…) temos uma droga muito potente e muito ativa nas nossas mãos. E esta nova droga digital chama-se TikTok. E ao contrário da cocaína que acaba, o TikTok é infinito.

Jeff Seibert. Esses algoritmos prestam atenção a tudo. O conteúdo das pesquisas, as fotografias em que clica, ao tempo que olha para essas fotografias. Tudo, cada interação é cuidadosamente monitorizada, registada e utilizada pelo algoritmo (…). Estão a tentar encontrar formas de cativar o mais cedo possível as crianças para que fiquem obcecadas por estas plataformas. Preocupa-me muito que as crianças cresçam a ver estas plataformas. A maioria das pessoas que conheço das tecnologias não permitem que os seus filhos passem tempo em frente aos ecrãs.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

UM PROBLEMA ÉTICO DE PRIMEIRA GRANDEZA E DE ESCALA GLOBAL - 1

Está disponível na RTP Play o documentário Young Addictions, que foi dirigido por Alejandra Andrade e Tomás Ocaña, e escrito por Mónica Palomero. Nele recolhi mais uma contribuição, a somar a outras que disponibilizei aqui e aqui, para ilustrar um problema ético de primeira grandeza e de escala global para o qual continuamos cegos, incluindo aqueles de nós que têm responsabilidades educativas.

Refiro-me às estratégias das grandes empresas tecnológicas para tornar os jovens e, mais recentemente, as crianças dependentes dos ecrãs, ao mesmo tempo que os seus donos e funcionários colocam os seus filhos em escolas onde eles não entram.

Essas escolas, cuja imagem de marca é a pedagogia Waldorf, encaixam na ideia comum de escola tradicional e para pobres: salas de aulas convencionais com as mesas dos alunos viradas para a secretária do professor e para o quadro de giz; livros, papel, lápis e outros recursos que se podem manusear; espaço exterior de terra e verde; experimentação de ofícios e artes manuais. 

Mas não é só a escola que veda o acesso a ecrãs, também as amas têm de o fazer.

Mais recentemente, a China limitou dentro de portas, para a sua populaçáo o uso de uma rede social que criou, incentivando-a fora.

Passo a palavra a alguns dos intervenientes que participaram no documentário

Pierre Laurent (Diretor da Escola Waldorf - Silicon Valley, Califórnia). Este campus está localizado ao funda da rua da Google (…). O Facebook fica a cerca de 10 minutos de distância, A Microsoft a outros cinco minutos e a Apple a 15 minutos. Estamos no coração das grandes empresas de tecnologia. Cerca de 75% dos nossos alunos vêm de uma família em que pelo menos um dos pais trabalha no setor da alta tecnologia. Até aos onze anos de idade, não usamos ecrãs digitais, telemóveis ou computadores. Os alunos não os trazem, nem estão autorizados a tê-los no campus. Dos 11 aos 14 anos podem ter os aparelhos desligados na mochila mas não os utilizam na escola. A partir dos 14 anos podem utilizar alguns computadores, desde que seja de forma produtiva, embora os telemóveis permaneçam nos cacifos durante todo o dia.
 
Sohe (Aluno da Escola Waldorf). No 7.º ano, quando recebi o meu primeiro telemóvel, tinha 14 anos e era um flip phone, só para telefonar às pessoas (…). Não vejo qualquer utilidade nas redes sociais. Por vezes parece que ficamos um pouco de fora, mas consigo abstrair-me do meu telemóvel

Maia (Aluna da Escola Waldorf). Bem, primeiro comecei por não ter redes sociais para além do Instagram, porque os meus pais me proibiam de o fazer (…). Até hoje, acho-as praticamente inúteis. Posso ficar sem telemóvel durante várias semanas ou meses, sendo que o único problema seria a comunicação com os meus pais ou ir a algum lado que precisasse de utilizar o GPS
Em 2017 enquanto os gurus da tecnologia admitiram proibir as crianças de usar ecrãs, doaram 300 milhões de dólares à Administração Trump para equipar tecnologicamente as escolas New York Times
Robin LeGrand (Diretora da Nanny Connection). Ganhei protagonismo graças aos trabalhadores tecnológicos de Silicon Valley. Eles tendem a ser muito restritivos relativamente aos dispositivos tecnológicos, tanto que no contrato que fazem com a ama há sempre uma cláusula restritiva (…). Estão mais preocupados porque conhecem as coisas viciantes que acompanham os dispositivos. Têm câmaras em casa para poder vigiar tudo, o que também consta no contrato (…). Considero controverso que os funcionários da indústria tecnológica não permitam que os seus filhos usem os dispositivos que desenvolveram. Se sabem que o uso pode ter consequências para os filhos, porque é que estão a desenvolver estas aplicações e dispositivos?

Martha Domínguez (Cuidadora). Assinámos um contrato. Não querem que as crianças utilizem tablets. Não querem que empreste o meu telemóvel às crianças. Dizem que é proibido para os seus filhos, porque não querem que eles fiquem viciados nos tablets. [Somos] muito vigiadas. Existe mesmo uma aplicação para todos os que vivem aqui, chama-se “Neighbours” (…). Tive uma entrevista com uma família Google. A casa deles estava cheia de câmaras (…) os seus cinco filhos foram proibidos de utilizar tablets. Eu disse: “mas se eles trabalham para a Google, porque não ensinam o mesmo aos seus filhos?”

Senado dos EUA, 5 de Outubro de 2021. Chamo-me Frances Haugen. Trabalhava no Facebook. Acredito que os produtos do Facebook prejudicam as crianças, dividem as pessoas e enfraquecem a nossa democracia. A liderança da empresa sabe tornar o Facebook e o Instagram mais seguros, mas não fará as mudanças necessárias porque colocou os seus lucros astronómicos à frente das pessoas. Tenho trabalhado em quatro tipos diferentes de redes sociais, compreendo as complexidades e as nuances destes problemas (…). Pelos nossos filhos, pela nossa segurança pública, pela nossa privacidade e pela nossa democracia

Rob Bonta (Procurador-Geral do Estado da Califórnia) (...). A China impõe restrições à utilização que as crianças chinesas fazem do Tiktok mas estas não estão a ser aplicadas no resto do mundo. Interessa-me saber que razões existem para tal.

terça-feira, 17 de junho de 2025

FICAMOS A SABER QUE HÁ UMA BOA E UMA MÁ IDEOLOGIA NA EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

Por dever de ofício, revisitei recentemente, no site da Direção-Geral da Educação, os documentos de "educação financeira", um dos domínios da área curricular de "Cidadania e Desenvolvimento".
 
Percebi que tinha havido actualizações no sentido de reforçar o domínio (aqui, aqui e aqui, por exemplo). Em resultado escrevi um texto, que a seu tempo publicarei neste blogue, sobre o pendor marcadamente ideológico da área, tal como ela se apresenta. 
 
Ontem vi no blogue de Paulo Guinote (aqui) o que se segue, retirado do Programa do XXV Governo Constitucional (aqui):

O título que deu ao post foi, e muito bem, "A Piada Faz-se Sozinha".
 
Será que o domínio designado por Educação para os Direitos Humanos está cativo de "amarras e agendas ideológicas? Os direitos humanos são ideologia?!

Quanto à educação ou literacia financeira, tomadas erradamente como sinónimos, extraí do dito Programa, que ainda não havia consultado (os sublinhados são meus):
 
"Elevar o nível de literacia financeira da população, nomeadamente nas matérias relativas à segurança social, poupança e preparação para a reforma (p. 14).
Apostar na elevação do nível de literacia financeira da população, nomeadamente nas matérias relativas à segurança social, poupança e preparação para a reforma. Sendo esta necessidade mais premente entre as gerações mais jovens de trabalhadores, propõe-se que estes três temas integrem o plano nacional de formação financeira, em articulação com o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, com a preparação de materiais formativos dirigidos a diferentes públicos em função da interação das pessoas com a Segurança Social ao longo do seu ciclo de vida (p. 210).
 
Aqui as "amarras e agendas ideológicas" parecem-me óbvias... Se o leitor ficar com dúvidas pode consultar o site que acima indiquei.
 
Também é dito no Programa:
 
Garantir a implementação dos conteúdos de literacia financeira como conteúdos obrigatórios já no próximo ano letivo 2025/2026 (p.167)
 
Ora, os conteúdos que conheço de literacia financeira constam no Referencial de Educação Financeira que não é uma directriz, um programa oficial, é um "documento orientador" "não prescritivo" (p. 6).

segunda-feira, 16 de junho de 2025

ESFEROVITE

Por A. Galopim de Carvalho
 
Criado e produzido a partir de meados do século passado, o esferovite, nome comercial do poliestireno expandido, também conhecido por isopor (em outros países), é um tipo de plástico e um dos muitos derivados do petróleo e do gás natural. É um material espumado, muito leve, branco e eficaz isolante térmico e acústico. 
 
Durante a sua produção, o poliestireno é expandido com vapor d’água, formando esférulas brancas (daí o nome de esferovite), susceptíveis de serem aglomeradas e moldadas em blocos que podem ser cortados em placas, da espessura desejada, com o auxílio de um arame metálico quente. Pode ainda ser moldado em volumes, de modo a embalar peças ou aparelhos frágeis. 
 
A esferovite é um produto reciclável, que demora dezenas de anos decompor-se, o que gera preocupações ambientais. Tem grande capacidade de absorção de impacto, amolgando-se facilmente. É esponjoso, cheio de ar, muito leve e não absorve água facilmente, o que o torna útil em ambientes húmidos. 
 
É usada: na construção civil em isolamentos térmico e acústico, em paredes, telhados e lajes; em caixas térmicas, para transporte de alimentos, vacinas ou medicamentos e câmaras frigoríficas; em embalagens, na protecção de produtos frágeis, como eletrodomésticos, eletrónicos, louças e outros; como material para confecção de maquetes, cenários e peças decorativas.
__________________
Nota
: O poliestireno é um tipo de plástico abundante e frequente no nosso dia-a-dia, em múltiplas aplicações. É um polímero sintético, derivado do estireno (um produto derivado do petróleo) que, ao ser submetido a polimerização, forma este produto. O poliestireno expandido (ou Isopor) é muitíssimo leve, com estrutura espumada (cheia de ar), usado para isolamento térmico, embalagens de proteção e na construção civil. É fácil de moldar, muito bom isolador térmico, é inflamável, não biodegradável e inimigo do ambiente se não for reciclado. Por polimerização entende-se um processo químico que consiste na união de pequenas moléculas pequenas, (monómeros), para formar moléculas maiores (polímeros). Os polímeros podem ser naturais ou sintéticos e estão na base de plásticos, borrachas e fibras sintéticas

RELER DE LA BOÉTIE PARA MELHOR ENTENDER QUE O PRIMEIRO SUSTENTÁCULO DA FORMAÇÃO CIDADÃ É O CONHECIMENTO

A transformação do currículo escolar, sobretudo a partir da última década do passado século, assenta em pressupostos (aparentemente) simples. Entre eles contam-se os seguintes:

1) ele, o currículo, é demasiado "obeso", "gordo", "comprido"... em termos de conteúdos disciplinares pelo que se torna necessário centrá-lo no fundamental, no essencial (leia-se mínimo), até porque, nas palavras de um alto dirigente da OCDE na área da educação escolar, "o google sabe tudo"; aos alunos cabe "pesquisar" por lá e "aplicar" o que recolherem...; 

2) o núcleo do currículo deve ser a "área de cidadania", onde se colocam as emoções, o bem-estar, a felicidade. Logo, a selecção das disciplina e dos seus conteúdos não se prende com o "valor que têm por si mesmos", mas pela funcionalidade que se lhes vê para desenvolver "competências de cidadania";

3) e diz-se serem as STEM ou STEAM (ciência, tecnologia, engenharia - artes - e matemática), requeridas no mercado de trabalho, que mais concorrem para tal fim porque podem conduzir ao "sucesso". As humanidades (a cultura e línguas clássicas, a história, a literatura, a geografia e as artes, em geral), tidas como uma lamentável perda de tempo, são acantonadas, reduzidas, extintas...

Estes pressupostos têm feito "engordar" a "educação para a cidadania", prevendo-se que assim continue. Em Portugal, aproxima-se dos vinte domínios (ver aqui).

Neste ponto, devemos colocar uma pergunta: que ideia de educação para a cidadania está subjacente à mencionada transformação? 

Levando-nos ela para terrenos movediços e sem fim à vista, perguntemos de modo mais modesto: é possível que os alunos se pautem por valores (éticos) sem saberem história e geografia, sem conhecerem as raízes da cultura ocidental, sem lerem de modo compreensivo textos que veiculam dimensões e perspectivas diversas da vida, sem terem explorado a condição humana através da literatura, do cinema, da pintura? 

Eu diria que não, pelo menos com a substância que esses requisitos permitem, ainda que tenha de reconhecer que, mesmo cumpridos, não são garantia da acção ética. Esta resposta levanta pelo menos três objeções:

1) E, as ciências? Não se pode menosprezá-las.
Claro que não: as várias disciplinas, se encaradas na sua essência e se devidamente exploradas, podem concorrer para essa acção consciente no mundo. E, reconheçamo-lo, as ciências (não as STEAM) também não estão de boa saúde, porque têm sido aligeiradas, desvirtuadas, subjugadas a uma ideia difusa de cidadania, que as secundariza, as torna objectos ao seu serviço;

2) Os valores éticos são universais? Se sim, isso é problemático pois "cada aluno tem o direito de "construir os seus próprios valores".
O dissenso é real pois nos mesmos documentos curriculares em que são enunciados valores éticos (sim, universais), como democracia e tolerância, consta essa afirmação subjectivista. Não parece, no entanto, muito credível que as crianças e os jovens consigam "construir" alguma coisa - e muito menos tais valores - sem educação deliberada;

3) De que adianta saber, por exemplo, muito de história se não se for um "bom cidadão".
Como acima notei, bem sabemos que não há uma relação directa entre o que se sabe e o que se faz, mas isso não significa que não haja alguma relação. Por outro lado, não será por deixarmos de ensinar história ou outra disciplina consagrada que obteremos "bons cidadãos".

Face à enorme confusão que gravita à volta da designada "educação para a cidadania", e de que só aflorei alguns aspectos, é preciso assentar pelo menos uma ideia: 
 
o elogio da ignorância, ainda que mascarado de boas intenções, não é caminho para a liberdade e, por inerência, para a dignidade; até prova em contrário, o melhor caminho é o conhecimento facultado pela educação.
 
Esse conhecimento abre-nos os olhos para vermos a tirania que "subtrai toda e qualquer liberdade de agir, de falar e quase de pensar", exercida por um, acolhida por alguns e consentida por muitos. Também nos dá a perspicácia e a força para recusarmos ser servos submissos, ou, pelo menos, para o tentarmos.
 
Sem essa educação informada nem sequer perceberemos a subjugação a nos querem obrigar e muito menos saberemos como lhe resistir. Sobretudo quando "pelos favores, ganhos e lucros que os tiranos concedem (...) são quase tantas as pessoas a quem a tirania parece proveitosa como as que prezam a liberdade".

O que acabo de dizer foi escrito, no século XVI, por um jovem com menos de vinte anos que se chamava Étienne de La Boétie. O livro que deixou e que Montaigne, seu cunhado e amigo, publicou após a morte, que o levou precocemente (Discurso sobre a servidão voluntária), é uma incisiva e corajosa crítica aos governantes que impõem interesses e loucuras próprias, arrastando aqueles que deveriam proteger, os quais, por diversos motivos, se tornam voluntariamente servos.

Há momentos, como os que atravessamos, em que, lamentavelmente, esta reflexão ganha particular actualidade. Por isso, como educadores, temos o dever de, primeiramente, indagar se a condição de servidão voluntária nos toca e o que precisamos de fazer para honrar a liberdade que nos assiste e, acima de tudo, levar os alunos, que estão ao nosso cuidado, a serem capazes de reconhecer tal condição e libertarem-se dela.  

Atenção que liberdade, na vida pública, em comunidade significa ter a possibilidade de escolher o que é bem, o que é bom para todos. Este viver na cidade não se pode operacionalizar em soft skills treináveis e demonstráveis, antes exige conhecimento disciplinar alargado e profundo, trabalhado na escola em continuidade, com seriedade e empenho. 

E, mesmo assim, os tiranos hão-de continuar a surgir pelos tempos fora. É que eles fazem parte do mais atávico que mora em nós e que, tanto quanto sabemos, só pela educação conseguimos superar.
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Nota
: Sobre o livro citado, pode consultar, neste blogue, um texto de João Boavida (A desejada servidão, publicado em 2011 - aqui) e um meu (Assim são os tiranos, publicado em 2022 - aqui).

domingo, 15 de junho de 2025

A "VOZ DOS ALUNOS" QUE (NÃO) QUEREMOS CONHECER

Uma iniciativa do Ministério da Educação designada por A Voz dos Alunos, surgida na década passada, teve dois momentos altos: a Conferência Currículo para o Século XXI: A Voz dos Alunos, em 2016, e o Dia do Perfil do Aluno, em 2018. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que, no seu projeto para o horizonte 2030, destaca a student agency, louvou-a muitíssimo e deu-lhe visibilidade em Paris. 

O consenso pareceu-me, à altura, generalizado (ver aqui, aqui, aqui): a opinião livre dos alunos era dita como nada menos do que crucial para renovar as orientações para a educação no mundo e para aferir a legislação nacional. O grande entusiasta da iniciativa foi um secretário de estado da educação que se tornou ministro da pasta. As escolas aderiram e puseram-na em marcha, a comunicação social transmitiu-a sem fazer perguntas incómodas e a academia não lhe prestou grande atenção.

Nesta década, o Conselho Nacional de Educação publicou, em 2021, uma recomendação com o título A voz das crianças e dos jovens na educação escolar e, no site da Direção-Geral da Educação, vejo anunciada a 2.ª edição do Projeto Voz dos Alunos, que terá decorrido entre finais de Novembro de 2024 e Maio de 2025. A livre exposição de ideias e debate de opiniões mantêm-se como pressuposto básico.

Acontece que o referido secretário de estado e, depois, ministro publicou recentemente um longo artigo no jornal Expresso (ver aqui, está em acesso aberto), no qual se mostra apreensivo, indignado com opiniões que alunos do segundo ciclo do ensino básico expõem numa prova de avaliação nacional, alegando serem influenciadas por um certo clima político que se adensa no país,

Passando por cima da questão delicada que é a revelação de uma pergunta constante nessa prova bem como do uso de respostas de alunos sem o devido consentimento, e não podendo deixar de reconhecer que as transcrições são, de facto, muito preocupantes, a verdade é que "dar voz" aos alunos sem delimitação de barreiras ou estabelecimento de regras (barreiras e regras académicas, entenda-se) não é, ao contrário do que possa parecer, um procedimento educativo; é, realmente, o contrário pois faz passar a mensagem de que tudo se pode dizer no espaço público e, mais, tudo o que se diz tem o mesmo valor e legitimidade.

A solicitação da opinião dos alunos, sem mais, porque destacada em documentos curriculares, incluindo manuais, e solicitada em provas de avaliação passará, presumo, para o ethos pedagógico. Tenho visto, nesses documentos e provas, tornar-se abundante e soberana, valerá para justificar tudo o que os alunos digam - pois se é opinião... -, mesmo na ignorância ou negação do conhecimento que deveriam ser levados a aprender na escola. 

Deduzo que, no caso, nem haveria conhecimento concreto a avaliar pois a pergunta em causa seria um "apelo à elaboração de um texto narrativo e à criatividade dos alunos". E eles (ou alguns deles) "criaram", que é como quem diz, reproduziram ipsis verbis o que o "contexto social" e as "redes sociais" lhes incutem ininterruptamente, sem qualquer respeito pela sua condição de menores, com direito a serem educados. E é isso que se sobrepõe ao que a escola ensina ou tem obrigação de ensinar. 

Há, sem dúvida, um mérito no artigo em causa: levar-nos a indagar a efetiva importância da escola neste preciso momento. De modo mais claro, a importância que tem na formação humanista, tão destacada no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO PARA A PAZ?

"O ódio cresce em escolas", escreveu um ex-ministro da educação (ver aqui). Deve estar informado, confio na sua avaliação, até porque ela é corroborada por professores sensatos que conheço. 

Mas, há que perguntar: seria de esperar que o ódio crescesse nas escolas com tantos domínios de Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento previstos para aí serem tratados, desde a educação de infância até ao final da escolaridade obrigatória? São dezassete domínios ou mais, em cujos documentos curriculares abunda a referência a valores como a Paz, a Tolerância, a Democracia, a Empatia...

Estará a sociedade a sobrepor-se à escola, impondo um modo de ser que contraria esses valores? Estarão as redes sociais a conseguir uma tal instrumentalização que mais velhos e mais novos são levados a abastardá-los? Estarão, de facto, os adultos a demitir-se de educar crianças e jovens ? Será que perante isto e, por certo, mais do que isto, a escola nada pode fazer? 

Não sei responder. Não pensei devidamente no assunto que é sério e de escala global. Poderia dar uma opinião, mas as opiniões valem o que valem e, na verdade, pouco valem. Esta foi a minha resposta à pessoa que hoje me fez chegar o artigo de onde tirei a frase que inicia este texto. Perguntou-me essa pessoa, não há um domínio de Educação para a Paz? Sim, há, mais precisamente de Educação para a Segurança, a Defesa e a Paz.
 
Em 2014 foi publicado um Referencial para orientação do trabalho escolar, a que prestei atenção (ver aqui), o qual foi republicado em 2022 com actualizações que, alega-se, a "crescente digitalização do mundo atual" exigia (ver aqui).
 
Na nota de apresentação disponível no site da Direção-Geral da Educação, diz-se que ambos resultam de uma parceria entre essa entidade, o Instituto da Defesa Nacional e o Centro Nacional de Cibersegurança. E que assentam "no conjunto de princípios e condições que tornam a atividade da Defesa um elemento essencial no reforço da cidadania e da construção da Paz."

Assim, "pretende-se incentivar os alunos a conhecer, refletir e agir em torno de questões como a segurança, os novos riscos, perigos e ameaças emergentes num mundo globalizado, interdependente e em mutação contínua, bem como a familiarizar-se com as condições e instrumentos que favorecem a construção e preservação da paz. As atividades de aprendizagem deverão combinar a perspetiva individual com a compreensão da inserção geopolítica de Portugal e do papel das instituições internacionais cuja função primordial é assegurar a paz, a cooperação e a preservação dos direitos humanos."

Para perceber melhor o espírito deste domínio, pode o leitor consultar um webinar explicativo aqui (que tem publicidade incluída!)

HIDROCABORNETOS

Por A. Galopim de Carvalho   A palavra "hidrocarboneto" surgiu como um termo descritivo da composição química de compostos formado...