quarta-feira, 7 de maio de 2025

O 18.º DOMÍNIO DE EDUCAÇÃO CIDADANIA? OU SERÁ O 19.º?

As minhas desculpas aos leitores por insistir na Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento. É que, tanto quanto vejo, há mudanças de relevo nesta componente do currículo escolar, as quais, por não tocarem directamente as disciplinas, tendem a passar despercebidas ou a serem consideradas de menor importância. 

O entendimento que tenho é diferente. Essas mudanças são, de facto, significativas: é significativa a publicação do Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar, assim como é significativa a replicação de documentos e iniciativas afectos não só a este domínio dito de cidadania mas a vários outros. E é muito significativa a consubstanciação de um novo domínio de cidadania que estava esboçado pelo menos desde 2021.

É sobre este enigmático domínio, designado por Educação para a Ética e Integridade, que deixo breves notas. Peço ao leitor para seguir o meu raciocínio.

1. Na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC) estão contemplados dezassete domínios de educação (ou será "literacia"?) para a cidadania, mas podem ser dezoito pois a Literacia Financeira e a Educação para o Consumo, que já estiveram separadas, têm, na verdade, identidade própria (ver aqui), que lhe é conferida pelos seus referenciais, materiais "pedagógicos", formação de professores, concursos, etc. A minha interpretação é que, numa tentativa de conter o número de domínios (que desde a reforma implementada logo no início do século, não tem parado de aumentar), a tutela decidiu arrumá-los num só.

Enfim, o que aqui é importante dizer é que a tal Educação para a Ética e Integridade não consta na Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, ainda que, em abono da verdade, nesta estratégia se deixe aberta a possibilidade de as escolas, caso entendam, incluírem outros domínios.

2. A Educação para a Ética e Integridade não me é estranha, já a havia incluído nas minhas aulas de formação de educadores e de professores como exemplo de reivindicação de novos domínios de Educação para a Cidadania. Efectivamente, vários são os que se encontram em lista de espera...

O historial, tanto quanto fui acompanhando na imprensa, é mais ou menos este: em 2001 foi criado o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) (ver aqui e aqui), destinado a “promover a difusão dos valores da integridade, probidade, transparência e responsabilidade”. Porém, em 2024, o estado do “mecanismo” (curiosa designação!) era consensualmente classificado como de “inacção” nos propósitos sociais, políticos e económicos a que se havia proposto. Também foram notícia divergências com o Governo sobre aspectos pouco edificantes, sobretudo quando se puxam os galões da ética (ver aqui, aqui e aqui). Não sei, não aprofundei, se foi por causa disso que o Conselho de Ministros aprovou recentemente mudanças na orgânica do tal MENAC (ver aqui).

3. Na sua origem, o "mecanismo" tinha prevista a Escola (leia-se Escola Pública) como "uma área prioritária de actuação" (ver aqui). Em 2020 noticiava a Agência Lusa (ver aqui):

"Segundo o projeto de proposta de lei das Grandes Opções do Plano (GOP) para 2021, o Governo quer «introduzir a temática ‘Corrupção – Prevenir e Alertar’ como área transversal a vários domínios da cidadania e desenvolvimento em todos os ciclos do ensino básico e secundário e dar relevo à matéria em unidades curriculares do ensino superior e em bolsas e projetos de investigação financiados por agências públicas»".

Várias escolas aderiram à solicitação (ver exemplos aqui, aqui, aqui) e algumas receberam "prémios e distinções" (ver aqui), parte do "pacote" destas iniciativas.

Nada de original, as organizações, empresas, grupos, etc. a quem cabe resolver problemas relevantes, difíceis, que o mundo apresenta, que têm essa responsabilidade, remetem-nos para a Escola, para que ela os assuma em primeira linha. Em concreto, para o saco sem fundo que é a Educação para a Cidadania. Esta circunstância merecia um comentário que, pela sua extensão e necessária profundidade, deixo para outra ocasião.

Ainda assim, neste caso, não é possível deixar de lado a questão: caberá à Escola funcionar como bastião de primeira linha da luta anticorrupção, que a avaliar pela criação do "mecanismo", é um problema social, económico e político seriíssimo? Tanto mais quando se percebe que o “mecanismo” não tem cumprido os objectivos para os quais foi criado?

Devo sublinhar que não se pode negar a importância da Escola na educação para os valores acima enunciados: eles têm de ser aí veiculados, na esperança de que os alunos os adoptem como marcas do seu (bom) carácter. Contudo, a Escola não pode, não deve assumir funções que cabem, por direito, a outras entidades.

4. Como bem sabemos, isto não importa ao Ministério da Educação, que acolhe mais esta, aquela e a outra entidade no dito saco sem fundo, sendo o "mecanismo" (tanto quanto sei) a mais recentemente acolhida, cenário em que "recomendou ao Governo" a aprovação do Referencial de Educação para a Ética e Integridade.

O documento, resultante de parceria e colaboração diversa (Direção-Geral da Educação, All4Integrity, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Mecanismo Nacional Anticorrupção, Transparência e Integridade de Portugal, e Universidade de Antuérpia) está agora em consulta pública.

Uma vez aprovado, constituirá suporte para o 18.º domínio de Educação para a Cidadania. Ou será o 19.º?

6 comentários:

Anónimo disse...

Acabava com a disciplina. A ética não se imprime nas almas por decreto, mas pelo exemplo diário de integridade e dignidade dos mestres, das famílias, da comunicação social, das políticas sociais, da história, da filosofia, e, talvez, da religião. A escola tem assumido os males de todos como um Cristo na cruz, mas sem o arquétipo da salvação. Não salva ninguém. É impressionante a parideira de documentos de orientação de cidadania para integrar nos currículos das diferentes disciplinas, uma vez que, no primeiro ciclo, a disciplina não tem espaço horário identificado, sendo transversal. Como é que se trabalha tantos conceitos na transversalidade dos curricula com conteúdos a abarrotar? Pois, não sabemos. Alinhava-se, aborda-se, sugere-se, aproveitam-se textos do manual, fazem-se uns jogos, ditam-se umas regras, ninguém sabe muito bem como organizar tantas matérias avulsas para serem dadas por aí, a crianças tão pequenas. Sei de gente que nem os referenciais lê… São mais do que as mães e não há espaço horário para tal. Não funciona. A prova disso, é a indisciplina que continua a desgraçar as salas de aula, indisciplina até dos pais, diga-se de passagem, os quais deveriam ser os primeiros a ler os referenciais de cidadania… Uma palhaçada disfuncional. Convinha pararmos de fingir.

Anónimo disse...

É como o regime jurídico da inclusão. Legislativamente, somos os maiores, mas esbarramos na permanente falta de recursos para tudo. A coisa sobrevive na superfície dos papéis, sem aplicabilidade eficaz. Outra palhaçada.

Anónimo disse...

Os cientistas da educação têm muitas culpas no cartório da introdução verborreica deste rol infindável de domínios de cidadania, inexequíveis na prática, em contexto de sala de aula, mas como são cientistas...

Anónimo disse...

Cientistas a fazerem bizarras experiências em humanos… que não lhes ligam pevide.

Helena Damião disse...

Estimado Leitor, no geral, concordo com o que diz. Retenho a declaração: "a ética não se imprime nas almas por decreto". De facto, estamos muito longe de saber como se ensinam os valores éticos: como os fazer conhecer e compreender? como os levar para a acção, sempre diversa? como fazê-los perdurar no tempo? Mas a questão que se coloca na dita educação para a cidadania é que os "valores" nela estão enunciados (mais parecendo espalhados ao acaso) muito dificilmente poderão ser enquadrados na ética. Cumprimentos, MHDamião

Helena Damião disse...

Respondendo aos dois últimos comentários, noto a importância de se ler a ficha técnica dos documentos curriculares (no caso, referenciais, guiões... de educação para a cidadania). Dessa leitura se percebe que os seus autores são entidades não educativas com interesses vários (e próprios) no acesso aos alunos e às suas famílias. Por outro lado, o acolhimento nas escolas desses documentos é feita pelos seus profissionais. Nestes dois grupos há "cientistas da educação"? Por certo que sim. Mas há "cientistas da educação", como é o meu caso, entre muitos outros, que contestam o rumo e conteúdo da educação para a cidadania tal como se apresenta no currículo escolar. Cumprimentos, MHDamião

O 18.º DOMÍNIO DE EDUCAÇÃO CIDADANIA? OU SERÁ O 19.º?

As minhas desculpas aos leitores por insistir na Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento. É que, tanto quanto vejo, há mudança...