terça-feira, 6 de maio de 2025

A "FILOSOFIA DE BUFFETT" NO SISTEMA DE ENSINO PÚBLICO PORTUGUÊS COM VISTA À "PRODUÇÃO" DE UMA GERAÇÃO DE EMPREENDEDORES FINANCEIROS

 
Revisito, no sítio online da Direção Geral da Educação, os materiais disponíveis para a "Literacia Financeira", que, aliada à "Educação para o Consumo" ("literacia" e "educação" são usadas indistintamente ainda que, como é óbvio, não signifiquem a mesma coisa), constituem uma das dezassete domínios da área curricular agora designada por "Cidadania e Desenvolvimento". 
 
No respeitante à "Literacia/Educação Financeira", a tutela disponibiliza os seguintes documentos/núcleos de documentos: "Plano Nacional de Formação Financeira", "Princípios Orientadores das Iniciativas de Educação Financeira", Referencial de Educação Financeira", "Cadernos de Educação Financeira", "Boas Práticas", "Recursos Pedagógicos", acções de "Formação" para Professores, "Notícias e eventos", "Projetos e iniciativas", e "Recursos Pedagógicos". 
 
Em destaque, na rubrica "Recursos" está uma "actividade de pesquisa e debate" intitulada "Quem foi Warren Buffett?". Desconhecendo quem é Warren Buffett fui, como se recomenda aos alunos, "pesquisar". É um self made man americano que cedo, ainda criança, revelou talento para fazer negócios. Enriqueceu, tornou-se multimilionário, um dos maiores do mundo. Como é normal, tornou-se filantropo, também um dos maiores do mundo (doará 99% da fortuna para causas que determinou em carta). É autor de obra considerável. Como Enriquecer na Bolsa com Warren Buffett, é um dos seus livros, que já teve doze edições em Portugal.
Warren Buffett é o que é: um empreendedor financeiro como poucos.

A questão que devemos, que temos obrigação de colocar é se, nas escolas públicas, exemplos de sucesso de empreendedorismo financeiro devem ser apresentados aos nossos jovens para que (como mencionei no texto anterior, que acima refiro) elas não conheçam outra possibilidade de existência e, acrescento agora, sem crítica sobre valores como sejam, por exemplo, a justiça distributiva.
 
Na verdade, esta "actividade", apresentada por uma entidade designada por Genially para ser "consumida" por professores, levará os alunos a conhecer as estratégias e a pertinência da "filosofia de Buffett" com vista à sua "aplicação no mundo real".

Como bem assinalou o leitor Rui Ferreira, com palavras retiradas da entrevista a Alain Supiot, "sobre o que é justo, há um problema". Era esse problema que deveria ser levado para a escola pública no âmbito da Educação para a Cidadania.

Nota: Estando Warren Buffett vivo, o tempo verbal usado no título da actividade será um engano?

5 comentários:

Anónimo disse...

As palavras "escola" e "negócio" têm origens etimológicas que, por si só, revelam tensões profundas entre os seus propósitos fundamentais. "Escola" deriva do grego skholḗ, que significa "ócio", mas não no sentido de preguiça, e sim de tempo livre dedicado à reflexão, ao pensamento e ao cultivo da alma. Já "negócio" vem do latim negotium, que é literalmente a negação do ócio (nec otium), significando ocupação, trabalho ou qualquer atividade que interrompa o tempo livre.

Ensinar a fazer negócios financeiramente lucrativos nas escolas secundárias representa, por isso, uma inversão dos fins da própria instituição escolar. A escola deveria ser o espaço onde se aprende a pensar, a questionar, a imaginar o mundo de outras formas — livre da pressão imediata do lucro ou da produtividade. Ao inserir o ensino de práticas empresariais orientadas para o ganho financeiro num espaço cuja essência é o cultivo do pensamento livre, corremos o risco de submeter o espírito crítico à lógica utilitarista do mercado.

Claro que a literacia financeira é importante, e jovens devem compreender o mundo económico em que vivem. Mas fazer da escola um laboratório precoce de empreendedorismo lucrativo é empobrecer a sua missão. A escola existe para formar cidadãos e não apenas gestores; para despertar consciências, e não apenas estratégias de rentabilidade. Trocar o ócio criativo pelo negócio lucrativo é trair aquilo que a escola foi, é e deve continuar a ser.

beatriz j.a. disse...

A Teoria da Justiça de John Rawls faz parte do programa de Filosofia do 10º ano e é trabalhada em pormenor. Portanto, a questão da justiça distributiva no contexto das sociedades democráticas é abordada nessa disciplina da formação geral.

Helena Damião disse...

Agradeço a ambos os leitores as suas preciosas explicações. Na verdade, se aqueles que propõem os supostos domínios de Educação para a Cidadania/Cidadania e Desenvolvimento e elaboram os materiais tivesse estudado Educação e Pedagogia talvez percebessem qual é o sentido da Escola pública, que o primeiro leitor tão bem assinala. Por outro lado, nos ditos domínios de Cidadania há sobreposições (e contradições) com diversas disciplinas, sendo o exemplo que apresenta um dos mais evidentes. Cumprimentos, MHDamião.

Anónimo disse...

Nesta era em que a escola se quer inclusiva, polivalente, quase uma fábrica de competências utilitárias, permitam-me discordar. A febre das literacias — digital, ambiental, emocional, e, agora, financeira — invade o currículo com a promessa de formar jovens preparados para tudo e, no fim, talvez para nada. A escola secundária, esse espaço outrora reservado à formação integral do espírito, converte-se num campo de treino para aspirantes a gestores, investidores e empreendedores. Que desvio perigoso!
A introdução da literacia financeira nas escolas, sob o pretexto de dar oportunidade aos "pobrezinhos" de subir na vida, é uma ilusão revestida de boas intenções. Como se a prosperidade se ensinasse em manuais, e não se alimentasse, tantas vezes, de redes de privilégio, sorte ou, sejamos francos, artifício e crime — caminhos que nenhuma escola pode, nem deve, ensinar.
A missão da escola não é produzir milionários. É formar homens e mulheres de bem. Cidadãos conscientes, críticos, dotados de sensibilidade estética, ética e cívica. Gente que saiba pensar, sentir, votar, questionar e agir com retidão. O resto — negócios, investimentos, lucro — que venha depois, para quem quiser, noutros fóruns. A escola, essa, deve manter-se fiel à sua nobre vocação: educar o ser, não moldar o capital.

Rui Ferreira disse...

Literacia (UNESCO, 2005): Conjunto de competências que utilizam as capacidades de identificar, compreender, interpretar, criar, comunicar e calcular, utilizando material escrito que deriva de vários contextos.

A palavra “literacia” veio designar o que a antiga “alfabetização” deixou de ser capaz de nomear: o domínio de códigos específicos, de práticas linguísticas especializadas, sem as quais os cidadãos ficam limitados nos seus gestos, conhecimento e capacidades.

A ideia do ensino de uma literacia (…) significa que ficaram para trás os valores da clássica literacia abrangente, universal; significa que o ideal de uma esfera de interação comunicativa (que a tradição iluminista estabeleceu como fator essencial da cidadania e da criação de um espaço público baseado na razão crítica) foi substituído por práticas linguísticas especializadas. Se a escola, na tradição humanista, fazia dos textos literários um instrumento essencial para a aquisição de competências de leitura e escrita, era, entre outras razões, porque considerava que a literatura correspondia ao mais sofisticado uso da linguagem e, por conseguinte, fornecia as aptidões para a compreensão e o uso de todos os campos linguísticos não técnico-científicos. E, ao mesmo tempo que conferia ao indivíduo a capacidade de realizar as suas tarefas funcionais, permitia-lhe também participar na esfera pública enquanto cidadão.

https://www.publico.pt/2024/08/23/culturaipsilon/cronica/escola-pobres-2101345
António Guerreiro, Revista Ípsilon, Jornal “Público”, 23 de agosto de 2024.
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