domingo, 16 de março de 2025

A FIGURA DO ANTI-HERÓI NA EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA

As áreas de "educação" (necessariamente entre aspas) financeira e para o empreendedorismo têm uma fortíssima presença nos sistemas educativos ocidentais. Em seu redor, e por iniciativa de agentes (stakeholders) externos às escolas, edificaram-se verdadeiros empreendimentos "educativos" por parte de quem não tem pejo em subverter a educação escolar em seu próprio favor, com os benefícios financeiros que daí lhes advêem. Mas, como tenho dito, o problema não está, primeiramente, do seu lado; está do lado de quem tem o dever de educar na escola pública, em benefício, antes de mais, dos alunos, da sua formação.

No nosso sistema, essas áreas foram reguladas, em 2008 e 2013, como de "educação para a cidadania". E, assim, ganharam legitimidade e presença desde a creche até à universidade (estou longe de exagerar, veja-se o livro A falácia do empreendedorismo).
 
O herói da infância e da juventude passou a ser o "empreendedor de si mesmo", que contra todas, mas mesmo todas, as adversidades, consegue, em tempo record, "subir na vida a pulso", construir um império deslumbrante, obter sucesso financeiro inaudito e, por inerência, bem-estar material inabalável, alcançar reconhecimento social e ser famoso, impor-se naturalmente como líder que todos querem seguir...
 
É um herói solitário, mas porque dotado de características únicas - inteligência estratégica, inovação, resiliência, pro-actividade, visão de futuro, crença inabalável nas suas próprias qualidades, sentido de oportunidade, capaz de ... - é superior, acabando sempre por vencer, dê-por-onde-der! 

Bem sabemos que esta imagem assenta num fino marketing destinado a fazer aceitar o perfil único de ser humano que se tem por "relevante" num mundo competitivo - e não pode ser outra coisa -, de produção-consumo". Aqueles que não conseguirem ou não quiserem entrar nele são "irrelevantes" e os que não se aguentarem nele "irrelevantes" são. E desta condição são culpados.
 
Por isso, o melhor é que os "empreendedores de si mesmos" sejam apresentados o mais cedo possível às crianças, para que elas não conheçam outra possibilidade de existência. E ninguém melhor do que eles o pode fazer, daí que as escolas públicas, já não os dispensem. Estão lá todos os anos, em todas as turmas, fazem conferências, palestras, workshops... dão aulas. Ah, sim, também formam professores.
 
Passo a um registo mais sério: em nome de valores éticos que precisamos manter, aos quais a educação escolar proporcionada pelo Estado está vinculada, temos obrigação moral de desconstruir e exercer crítica sobre esta figura heróica e as circunstâncias em que emerge. Isso pode e deve fazer-se no quadro da "educação para a cidadania", talvez em níveis mais avançados de escolaridade. O livro que identifico ao lado tem potencial pedagógico para tal, em particular no que respeita à justiça distributiva. Eis parte do texto que o apresenta:

"Quando era miúdo, a viver na periferia de Londres, Gary Stevenson via ao longe os arranha-céus da City e sonhava com uma vida melhor. O talento para a matemática ajudou-o a escapar ao seu bairro, onde tantos se perdiam, e a entrar na prestigiada London School of Economics. Ali percebeu que enfrentava uma concorrência desleal. Os colegas, meninos de boas famílias, puxavam os cordelinhos para entrar nas grandes empresas financeiras, enquanto ele só podia contar consigo próprio. Um dia, porém, falaram-lhe de um jogo, The Trading Game, promovido por um dos maiores bancos do mundo. O prémio era a entrada direta [num banco]. Gary jogou, ganhou e aos 20 anos entrou de rompante no coração financeiro de Londres. Mal atravessou a porta (...) sentiu-se engolido por um furacão (...). E o dinheiro, milhões e milhões a serem movimentados todos os dias por rapazes que ainda mal faziam a barba (...). Gary narra-nos a sua meteórica ascensão, o modo como enriqueceu e a sensação de vazio que se seguiu - porque o segredo do seu sucesso foi apostar sempre no fracasso da economia, no empobrecimento dos pobres e no enriquecimento dos ricos. Ou seja, na destruição sistemática do mundo de onde tinha vindo (...).

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