Meu texto num recente JL (na imagem o quadro de Salvador Dali referido no texto):
Ficaram famosas as discussões entre o físico suíço e norte-americano Albert Einstein (1887-1955) e o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) sobre as dificuldades conceptuais da teoria quântica, designadamente a concretização da realidade pelo acto de observação numa «experiência de medição.» Einstein, um realista intransigente, perguntou a Bohr: «Acha que a Lua não esta lá quando não olha para ela?» Neste ano, que as Nações Unidas declararam ser das «ciências e tecnologias quânticas», vale a pena falar, num jornal de letras, artes e ideias, da influência que as ideias da teoria quântica tiveram nas letras e nas artes.
A física quântica, que é aplicável ao micromundo, chegou à sua forma actual em 1925 graças aos trabalhos do austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) e dos alemães Werner Heisenberg (1901-1976) e Max Born (1882-1970), entre outros. A sua influência na literatura ficou bem clara com o aparecimento de um género de ficção especulativa baptizado de «ficção quântica». Este termo deve-se ao escritor e programador informático norte-americano nascido em Londres Charles Platt (n. 1945), que o introduziu em 1990 num artigo intitulado «Quantum Fiction: A Blueprint for Avoiding Literary Obsolescente», na revista The New York Review of Science Fiction. A escritora e actriz também norte-americana Vanna Bonta (1963-2014) foi pioneira a usá-lo em título de livro quando publicou a sua primeira obra de ficção Flight: A Quantum Fiction Novel, em 1995. Neste romance, há um escritor de ficção científica que vê surgirem na realidade alguns dos elementos fantasiosos do enredo que ele estava a congeminar. A autora explora o facto de, na teoria quântica, a realidade ser, de certo modo, influenciada pelo observador. O romance começa com a pergunta «Quem surgiu primeiro – o observador ou a partícula?» O livro serve-se também do conceito de multiverso, ou conjunto de mundos paralelos, a ideia da teoria quântica de que há mundos alternativos, sendo as escolhas determinadas por sucessivas observações. Não sendo a mais comum, esta «interpretação dos muitos mundos» do norte-americano Hugh Everett III (1930-1982) foi uma das maneiras engendrada pelos físicos para explicar o problema da medição. Bonta recusou que o seu livro fosse de ficção científica, uma vez que neste género há uma fuga da realidade, ao passo que, na ficção quântica, há um conjunto de realidades que se sobrepõem. Outros romances se sucederam na mesma linha: os temas dos textos de ficção quântica não têm necessariamente de envolver tópicos científicos, pois podem limitar-se a explorar a ideia das inúmeras possibilidades, originadas em bifurcações. A realidade torna-se, assim, absolutamente plural: tudo pode acontecer numa infinidade de universos paralelos.
Ainda antes do aparecimento da ficção quântica, já vários escritores se tinham servido de conceitos e termos da física quântica. Por exemplo, o princípio da incerteza de Heisenberg já tinha sido usado pelo escritor francês Michel Rio (n. 1945) como título de livro (Princípio da Incerteza, Teorema,1997). E, entre nós, por Agustina Bessa-Luís (1922-2019): O Princípio da Incerteza é o título da sua trilogia, cujo primeiro volume A Jóia da Família (Guimarães, 2001) foi adaptado ao cinema em 2002 por Manoel de Oliveira. O leitor não vai encontrar ciência nestas obras, sendo o título apenas metafórico.
De resto, na ficção científica abundam histórias em que a física quântica entra de uma maneira ou de outra. Um exemplo é o romance do escritor norte-americano Thomas Pynchon (n. 1937), Arco Íris da Gravidade (Bertrand, 2012), que fala da não-localidade, a ideia subjacente ao entrelaçamento quântico (fenómeno que consiste na ligação entre duas partículas que interagiram no passado, mas que podem depois estar infinitamente afastadas). Por exemplo, o escritor norte-americano Robert Anton Wilson (1932-2007) escreveu a Trilogy of the Schrödinger Cat (1979, 1980 e 1982), obras inspiradas no famoso gato de Schrödinger que pode estar vivo e morto ao mesmo tempo, colapsando para o estado de vivo ou de morto apenas quando é observado. Nesta trilogia encontra-se uma estranha mistura de física nuclear, incerteza, filosofia oriental, sexo e violência.
Considerado o domínio das artes visuais, um dos expoentes do surrealismo, o espanhol Salvador Dali (1904-1989), pintou em 1952-1953 o quadro Desintegração da Persistência da Memória, no qual procura conjugar a teoria da relatividade de Einstein (esta manifesta na obra daliniana em Persistência da Memória, de 1931, que representa relógios a escorrerem) com a teoria quântica (evidenciada pela fragmentação do espaço). É curioso notar que a teoria quântica moderna tenha surgido quase em simultâneo com o movimento surrealista: o manifesto do francês André Breton (1896-1966) é de 1924. O quadro de Dali Natureza Morta Viva, de 1956, pertencente a um período do artista chamado «misticismo nuclear», explora as relações entre a física quântica e a mente consciente.
Por último, também na música se encontram curiosas intersecções da arte com a teoria quântica. O físico e saxofonista norte-americano Stephon Alexander (n. 1971), no seu livro O Jazz da Física (Gradiva, 2016) expõe paralelos entre a improvisação do jazz e a teoria quântica. O projecto-piloto Quantum Music (2015-2018), financiado pela União Europeia e envolvendo vários, criou um espectáculo multimédia interactivo baseado em experiências e fórmulas da física quântica. Uma inovação foi a ligação das teclas de um piano a um computador que adornava os sons com efeitos quânticos. Na música popular, no CD Quanta (1997), o cantor brasileiro Gilberto Gil (n. 1942), que haveria de ser ministro da Cultura do seu país, canta assim a teoria quântica na canção que dá título ao disco, «prefaciado» pelo físico César Lattes: «Fragmento infinitésimo/ Quase que apenas mental/ Quantum granulado no mel/ Quantum ondulado no sal/ Mel de urânio, sal de rádio/ Qualquer coisa quase ideal// Cântico dos cânticos/ Quântico dos quânticos.»
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