A jornalista Elsa Resende das Lusa entrevistou-me para fazer um balanço cinco anos após a pandemia. Eis as perguntas e respostas:
ER - O que aprendemos com a pandemia da covid-19? Que lições Portugal e o mundo tiraram? O que se perdeu? O que se ganhou? O que falhou?
CF- Foi um desastre e aprendemos sempre com os desastres. Em primeiro lugar, aprendemos que a Natureza nos pode trazer surpresas desagradáveis e não estamos livre que issov se volte a repetir. Na próxima vez, devíamos evitar o que correu mal - atrasos e deficiências na comunicação, egoísmos nacionais que prejudicaram a cooperação - e repetir o que correu bem - normas de saúde pública e a concepção e distribuição de novas vacinas. Aprendemos a importância da genómica quer no diagnóstico quer na prevenção. Aprendemos também que alguns sistemas de saúde eram frágeis e que tinham, por isso, de ser reforçados. Aprendemos que temos de dispor localmente de equipamentos de protecção e tratamento. Aprendemos que as autoridades precisam de ter a confiança do público, para o que contribui a educação e a comunicação científica.
Perderam-se infelizmente mais de sete milhões de vidas, para não falar dois inúmeros casos de «covid longa». Ganharam-se testes rápidos e vacinas baseadas no RNA: a meio de 2024 tinham sido administradas 13,7 mil milhões de doses (a população mundial é de 8 mil milhões), sendo hoje reconhecido que a vacinação em massa contribuiu para a diminuição da doença. A maior falha pode ter sido a incapacidade de combater desinformação sistemática: como eu e o David Marçal escrevemos no nosso livro "Apanhados pelo Vírus» (Gradiva) que antes da pandemia chegou a «infodemia», a onda de falsa informação, que aliás ainda hoje continua. A Portugal a pandemia chegou com algum atraso, pelo que pudemos beneficiar de alguma aprendizagem entretanto havida.
As medidas aplicadas foram, umas vezes melhor e outras pior, as mesmas recomendadas internacionalmente pela OMS. O facto de termos tido uma das mais altas taxas de vacinação do mundo não atesta o nosso nível educativo e a nossa literacia científica: apenas nos diz que temos forte tendência a seguir uma autoridade, quando ela existe. Fomos ajudados pela União Europeia, designadamente na questão da encomenda de vacinas.
ER- Que consequências a retirar?
CF- Atendendo aos atrasos iniciais que houve na resposta à pandemia, era
conveniente estabelecer mecanismos internacionais de pronto alerta para o
caso de surgimento de novos microrganismos potencialmente letais para
os humanos.
Os processos de fabrico de novas vacinas - nove escassos meses entre a declaração da pandemia pela OMS e a administração das primeiras vacinas (caso nunca antes visto!) - podem ainda ser acelerados, agora que os procedimentos técnicos foram aperfeiçoados. Podemos melhorar muito os processos de comunicação. É importante o diálogo entre os vários saberes. Se a ciência biomédica nos diz muito sobre o vírus e a sua propagação, a implementação de medidas de contenção passa por outros saberes como a comunicação e o direito.
ER- Que fragilidades a pandemia pôs ao de cima? Que conquistas?
CF- A pandemia revelou enormes fragilidades sociais, por exemplo, os
lares de idosos com altas taxas de mortalidade. Foi nítido em Portugal,
um dos países mais envelhecidos da Europa e do mundo.
Revelou também problemas em muitos serviços de saúde, que se viram sob uma pressão inusitada. Ficou patente a necessidade de reforçar, entre nós, o Serviço Nacional de Saúde, embora isso não esteja a ser feito na medida suficiente.
Revelou ainda défices de cultura científica e a relevância do ensino e da divulgação das ciências. Há aqui um paradoxo: países como os Estados Unidos, Reino Unido e a Alemanha, onde há maior educação e cultura científica, foram também aqueles onde as vozes antivacinas mais proliferaram. A ciência tem e terá sempre como sua sombra a pseudociência, pelo que se torna indispensável que o cultivo da ciência seja acompanhado pela difusão da cultura científica.
Entre nós, a resposta da agência nacional de cultura científica «Ciência Viva» foi fraquíssima: foi quase alheia ao desafio da covid.
ER- Estamos mais bem preparados para futuras pandemias? Estamos mais perto do que nunca de uma nova pandemia? Porquê? Como nos podemos preparar melhor?
CF- Na medida em que temos mais conhecimento e experiência estamos, em princípio, mais bem preparados. Mas o mundo não tem evoluído para melhor, designadamente na relação entre política e saúde pública. As posições de Trump (assessorado por Musk) de negacionismo das vacinas mostram que houve, ao mais alto nível, quem não tivesse aprendido nada. A resposta de Trump no 1.º mandato à covid foi má e é de temer que possa ser pior se irromper mal semelhante no seu 2.º mandato. Nem o facto de as novas vacinas da coivida terem sido premiadas com um prémio Nobel o impressionou.
Trump ignora em larga medida a ciência, sendo um perigo para os EUA e para o mundo. A saída que ordenou dos Estados Unidos da OMS não é boa nem para os EUA nem para o mundo colocando em risco vários programas mundiais de saúde pública.
Não existe apenas o problema da desinformação a respeito das vacinas, mas também a desinformação em geral: os problemas de desinformação estão agora agravados com o desenvolvimento da Inteligência Artificial e com o papel de Musk na nova administração americana.
ER- A ciência cumpriu o seu papel na plenitude? Poderia ter feito mais e melhor?
CF- À ciência foram feitos grandes pedidos e dados grandes meios. Mobilizou-se como nunca o tinha feito antes. Os resultados estão à vista para quem os queira ver.
É provável que a tecnologia das vacinas genómicas encontre aplicações noutras doenças. Claro que podia ter feito mais e melhor: pode-se sempre fazer mais e melhor, mas isto é fácil de dizer depois e não na altura, sob a pressão dos acontecimentos.
ER- Qual deve ser a estratégia de futuro?
CF- A pandemia veio acentuar processos de desglobalização: se imitar os EUA, cada país estará mais interessado em tratar de si do que do mundo. É, na Europa, o que está a fazer à Hungria. Ora, em questões transnacionais, como uma pandemia, a resposta, primeiro política e depois científica e tecnológica, tem de ser conjunta e articulada. A estratégia do futuro nesta área deve ser de cooperação e não de competição.
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