quinta-feira, 13 de março de 2025

CINCO ANOS APÓS A PANDEMIA

A jornalista Elsa Resende das Lusa entrevistou-me para fazer um balanço cinco anos após a pandemia. Eis as perguntas e respostas:

ER - O que aprendemos com a pandemia da covid-19? Que lições Portugal e o mundo tiraram? O que se perdeu? O que se ganhou? O que falhou?

CF- Foi um desastre e aprendemos sempre com os desastres. Em primeiro lugar, aprendemos que a Natureza nos pode trazer surpresas desagradáveis e não estamos livre que issov se volte a repetir. Na próxima vez, devíamos evitar o que correu mal - atrasos e deficiências na comunicação, egoísmos nacionais que prejudicaram a cooperação - e repetir o que correu bem - normas  de saúde pública e a concepção e distribuição de novas vacinas.  Aprendemos a importância da genómica quer no diagnóstico quer na prevenção. Aprendemos também que alguns sistemas de saúde eram frágeis e que tinham, por isso, de ser reforçados. Aprendemos que temos de dispor localmente de equipamentos de protecção e  tratamento. Aprendemos que as autoridades precisam de ter a confiança do público, para o que contribui a educação e a comunicação científica.

Perderam-se infelizmente mais de sete milhões de vidas, para não falar dois inúmeros casos de «covid longa». Ganharam-se testes rápidos e vacinas baseadas no RNA: a meio de 2024 tinham sido administradas 13,7  mil milhões de doses (a população mundial é de 8 mil milhões), sendo hoje reconhecido que a vacinação em massa contribuiu para a diminuição da doença.  A maior falha pode ter sido a incapacidade de combater desinformação sistemática: como eu e o David Marçal escrevemos no nosso livro  "Apanhados pelo Vírus» (Gradiva) que antes da pandemia chegou a «infodemia», a onda de falsa informação, que aliás ainda hoje continua. A Portugal a pandemia chegou com algum atraso, pelo que pudemos beneficiar de alguma aprendizagem entretanto havida.

As medidas aplicadas foram, umas vezes melhor e outras pior, as mesmas recomendadas internacionalmente pela OMS. O facto de termos tido uma das mais altas taxas de vacinação do mundo não atesta o nosso nível educativo e a nossa literacia científica: apenas nos diz que temos forte tendência  a seguir uma autoridade, quando ela existe.   Fomos ajudados pela União Europeia, designadamente na questão da encomenda de vacinas.

ER- Que consequências a retirar?

CF- Atendendo aos atrasos iniciais que houve na resposta à pandemia, era conveniente estabelecer mecanismos internacionais de pronto alerta para o caso de surgimento de novos microrganismos potencialmente letais para os humanos.

Os processos de fabrico de novas vacinas - nove escassos meses entre a declaração da pandemia pela OMS e a administração das primeiras vacinas (caso nunca antes visto!) - podem ainda ser acelerados, agora que os procedimentos técnicos foram aperfeiçoados. Podemos melhorar muito os processos de comunicação. É importante o diálogo entre os vários saberes. Se a ciência biomédica nos diz muito sobre o vírus e a sua propagação, a implementação de medidas de contenção passa por outros saberes como a comunicação e o direito.

ER- Que fragilidades a pandemia pôs ao de cima? Que conquistas?

CF- A pandemia revelou enormes fragilidades sociais, por exemplo, os lares de idosos com altas taxas de mortalidade. Foi nítido em Portugal, um dos países mais envelhecidos da Europa e do mundo.

Revelou também problemas em muitos serviços de saúde, que se viram sob uma pressão inusitada. Ficou patente a necessidade de reforçar, entre nós, o Serviço Nacional de Saúde, embora isso não esteja a ser feito na medida suficiente.

Revelou ainda défices  de cultura científica e a relevância do ensino e da divulgação das ciências. Há aqui um paradoxo: países como os Estados Unidos, Reino Unido e a Alemanha, onde há maior educação e cultura científica, foram também aqueles onde as vozes antivacinas mais proliferaram. A ciência tem e terá sempre como sua sombra a pseudociência, pelo que se torna indispensável que o cultivo da ciência seja acompanhado pela difusão da cultura científica.

Entre nós, a resposta da agência nacional de cultura científica «Ciência Viva» foi fraquíssima: foi quase alheia ao desafio da covid.

ER- Estamos mais bem preparados para futuras pandemias? Estamos mais perto do que nunca de uma nova pandemia? Porquê? Como nos podemos preparar melhor?

CF- Na medida em que temos mais conhecimento e experiência estamos, em princípio, mais bem preparados. Mas o mundo não tem evoluído para melhor, designadamente na relação entre política e saúde pública. As posições de Trump (assessorado por Musk) de negacionismo das vacinas mostram que houve, ao mais alto nível, quem não tivesse aprendido nada. A resposta de Trump no 1.º mandato à covid foi má e é de temer que possa ser pior se irromper mal semelhante no seu 2.º mandato. Nem o facto de as novas vacinas da coivida terem sido premiadas com um prémio Nobel o impressionou.

Trump ignora em larga medida a ciência, sendo um perigo para os EUA e para o mundo. A saída que ordenou dos Estados Unidos da OMS não é boa nem para os EUA nem para o mundo colocando em risco vários programas mundiais de saúde pública.

Não existe apenas o problema da desinformação a respeito das  vacinas, mas também  a desinformação em geral:  os problemas de desinformação estão agora agravados com o desenvolvimento da Inteligência Artificial  e com o papel de Musk na nova administração americana.

ER- A ciência cumpriu o seu papel na plenitude? Poderia ter feito mais e melhor?

CF- À ciência foram feitos grandes pedidos e dados grandes meios. Mobilizou-se como nunca o tinha feito antes. Os resultados estão à vista para quem os queira ver.

É provável que a tecnologia das vacinas genómicas encontre aplicações noutras doenças. Claro que podia ter feito mais e melhor: pode-se sempre fazer mais e melhor, mas isto é fácil de dizer depois e não na altura, sob a pressão dos acontecimentos.

ER- Qual deve ser a estratégia de futuro?

CF- A pandemia veio acentuar processos de desglobalização: se imitar os EUA, cada país estará mais interessado em tratar de si do que do mundo. É, na Europa, o que está a fazer à Hungria. Ora, em questões transnacionais, como uma pandemia, a resposta, primeiro política e depois científica e tecnológica, tem de ser conjunta e articulada. A estratégia do futuro nesta área deve ser de cooperação e não de competição.


Sem comentários:

Do século das crianças ao século de instrumentalização das crianças

Muito em virtude do Movimento da Educação Nova, iniciado formalmente em finais de 1890 e, em especial, do trabalho de Ellen Key, o século XX...