Com a devida vénia, transcrevemos a entrevista que Guilherme Valente, editor da Gradiva e colaborador habitual deste blogue, deu ao Blogtailors:
O que une José Rodrigues dos Santos a Rogério Casanova? Guilherme Valente, fundador e editor da Gradiva, sabe e conta-o nesta entrevista. Não gosta do título de editor independente e admite que este é o momento de recorrer ao mealheiro. E como sobreviverá uma editora, que aposta na divulgação da ciência, num país em que desaparecem os leitores?
P- Qual a maior dificuldade que um editor independente sente no dia-a-dia?
R- Não acho adequado o sentido com que anda a ser usada a expressão «editor independente». Independente de quem ou de quê? Todos os editores, que eu saiba, são independentes, não estão a cumprir qualquer desígnio que não seja editarem.
P- Qual a situação mais delicada por que passou enquanto editor?
R- Delicada, no sentido de difícil, só me recordo da situação que vivíamos antes do 25 de Abril, um tempo em que chegavam a apreender livros (nas editoras onde então trabalhei) por causa do texto numa contracapa. Ou seja, uma contingência sempre imprevisível, até ao ridículo. Muitas vezes percebia-se a razão (e podíamos prevê-lo), mas outras estupidamente — ou talvez não, porque o objetivo era sempre também fragilizar a editora. Um exemplo: num pequeno livrinho duma coleção das Publicações Dom Quixote, dedicado à questão da Irlanda, de que fui autor, escrevi na contracapa, para ilustrar a fotografia de um edifício em chamas, algo como isto: «Não há exército que consiga apagar o incêndio que devasta a Irlanda.» E o censor terá visto no meu texto uma alusão à guerra colonial… e viu bem.
Mas conseguíamos passar muitas mensagens, claro, muitas vezes no fio da navalha. Um exercício de criatividade, cujo êxito nos divertia muito.
Se a pergunta se refere a dificuldades económicas na minha condição de editor da Gradiva, respondo que temos sabido antecipar-nos sempre. Treino a antecipação todos os sábados no jogo de futebol com os meus Amigos.
Num outro sentido acrescento ainda que a maior dificuldade para uma editora como a nossa é a morte da escola, o domínio do analfabetismo e do iletrismo, a perda do desejo de saber, da curiosidade e da liberdade intelectual. Por isso é tão relevante publicar livros que façam leitores. Para acompanharmos um espírito livre em permanente inquietação e indagação intelectual — esse é um intelectual! — e, já agora, para nos apercebermos da miséria da nossa realidade intelectual dominante de hoje, leiam-se as cartas de António José Saraiva para Luísa Dacosta, um livro que acabámos de publicar, de que os especialistas em livros não irão falar, claro. Um bálsamo para quem o ler.
P- O que devem os editores saber rapidamente, sob pena de desaparecerem?
R- Disse-me um dia um grande editor americano que a atividade empresarial da edição é a mais difícil de todas. Quem tiver êxito nesta atividade empresarial terá em qualquer outra, disse-me. Uma editora como a Gradiva vive com gente culta e de talento. E depende da sobrevivência de leitores, de curiosidade intelectual e desejo de saber.
P- Como é a sua relação com o autor
bestseller José Rodrigues dos Santos?
Perfeita. É um homem com uma inteligência brilhante e muito pragmático.
P- O que esteve por detrás da ideia de criar a Gradiva?
R- Contribuir para mudar a cultura portuguesa, pensando desde logo na promoção da cultura científica e na educação. Parecia uma ambição delirante, mas não esqueço o que o meu Amigo Professor Sedas Nunes me disse quando considerei a possibilidade de criar uma editora, hipótese que ele muito encorajou e apoiou: «
O País precisa mais de um grande editor do que de mais um grande professor, não hesite.» O Professor Sedas Nunes era muito meu Amigo, de qualquer modo, sem falsa modéstia, acho que não o teria dececionado completamente.
Na verdade, não conseguimos tanto como sonhámos, mas tive testemunhos de que o nosso trabalho terá contribuído para a descoberta de algumas vocações e para suscitar outras iniciativas. Curiosa e surpreendentemente, nem só de Portugal. E houve mesmo um tempo, breve, em que o resultado da nossa intervenção se manifestou nas escolas. Depois veio o eduquês, e aconteceu o que Mário de Sottomayor Cardia bem previu, bem antes de eu o ter começado a combater — o eduquês com o seu efeito de idiotização geral. E a Gradiva trouxe-me Amigos fantásticos, que alimentam hoje a minha vida, a minha vontade de continuar a combater.
P- É dos poucos editores que não têm medo de dizer que ganham dinheiro com o seu trabalho. Quais os segredos da Gradiva e afinal quanto vale a editora?
R- Não me ficará mal revelar um dos segredos: as pessoas, as pessoas competentíssimas e generosas (generosas também porque conseguem ser minhas Amigas) que me rodeiam, o espírito da Gradiva, que também a mim me condiciona e de que se apercebe logo quem vem conviver connosco. Se há atividade em que a qualidade intelectual, profissional e humana das pessoas é decisiva, é a edição.
A editora, como caso singular que é, não tem preço. Quanto ao dinheiro que a Gradiva ganhou, podemos agora, temos agora, de começar a ir ao mealheiro.
P- Que projetos podemos esperar para o futuro da Gradiva?
R- Grandes livros, ainda mais rigorosamente selecionados, nos vários géneros que publicamos, desde logo na ciência (agora, uma verdadeira resistência). Enfim, livros de que a generalidade da crítica de hoje não é capaz de falar, mas que os nossos leitores esperam de nós e sabem apreciar.
Acho, aliás, ao contrário do que muita gente nesta atividade me parece continuar a pensar, que muito em breve só haverá mesmo lugar para os grandes livros.
Os
e-books não serão capazes de salvar a leitura na dimensão que estou a referir. De facto, temos estado a assistir (há muitos indicadores disto) ao fim da leitura enquanto fenómeno generalizado, instrumento estruturante praticado, promovido, pela escola. Restará uma elite cada vez mais restrita. Repare que mesmo nas universidades já se lê muito pouco — não apenas os alunos, mas também os professores. Vou anualmente a uma Universidade participar em aulas ou conferências e todos anos vou verificando crescentemente isso. E os meus Amigos professores sentem e verificam o mesmo. A partir de 1500 (período em que grandes especialistas consideram ter ocorrido a única revolução total) não houve nenhuma grande manifestação humana, nas artes, nas ciências, etc., que não implicasse, de algum modo, a leitura e o livro. Estaremos a viver o fim dessa era?
P- Se pudesse fazer uma pergunta ao atual secretário de Estado da Cultura, qual seria?
R- Com o meu Amigo Francisco José Viegas tenho muitos temas para agradáveis e enriquecedoras conversas. Ao Secretário de Estado da Cultura não tenho nada para perguntar.
P- Dê-nos uma boa ideia para o setor editorial português.
R- Ter boas ideias próprias. Além da vergonha que devia ser andar atrás das boas ideias e dos bons autores que outros descobriram, a falta de ideias próprias traduz-se numa empobrecedora falta de diversidade editorial e, logo, intelectual e cultural.
P- Como vê as críticas que apontam a inclusão de José Rodrigues dos Santos como um fator de deterioração do catálogo da Gradiva?
R- Li com muito interesse e sempre com grande proveito todos os livros de José Rodrigues dos Santos. Se não fosse assim, não o publicaríamos. Recusei muitos livros que sabia irem ser
best-sellers (perdoem-me não dizer quais). Também sempre achei incompreensível aquela ideia que se tornou quase um
slogan: «
Publicamos os maus para podermos publicar os bons.
Hoje, infelizmente, não leio tanta ficção como gostaria, mas estou a ler cada vez mais outra vez, sobretudo os clássicos que não li na altura própria — eu que julgava ter lido tudo. Tenho uma filha que é leitora compulsiva e se mete muito comigo por não ter lido o que ela já leu… Leio igualmente alguns autores contemporâneos, autores que o nosso meio literato promove muito, e interrogo-me: será que daqui a 50 anos alguém falará neles ainda? Que autores resistirão ao julgamento isento do tempo? A História está cheia de revelações surpreendentes.
Sabe, José Rodrigues dos Santos comete o pecado que entre nós, Portugueses, é o mais difícil de ser perdoado: o do êxito.
A inveja é um sentimento humano universal. Mas entre nós, na nossa cultura dominante, manifestamo-la de um modo terrível, autoflagelador (esse sentimento — ao contrário do que no meio popular se costumava ouvir — fere é quem o sente e exerce): tenta-se destruir os que invejamos, em vez de se tentar perceber o que os faz serem o que são e conseguirem o que conseguem e, assim, ir-se mais além, para benefício próprio e de todos. A visão do outro traduz-se, deste modo, numa dialética negativa, de que resulta uma diminuição de nós próprios, em vez de se traduzir numa dialética positiva, a superação das nossas próprias limitações.
E já agora, porque falamos em José Rodrigues dos Santos e estamos na época das prendas, vou oferecer ao
Blogtailors uma «cacha»: não é José Rodrigues dos Santos, de facto, o autor dos livros publicados com o seu nome. O verdadeiro autor é… Rogério Casanova!
NOTA BIOGRÁFICA:
Guilherme Valente nasceu em Leiria a 1 de julho de 1941. Licenciado em Filosofia e pós-graduado em Relações Interculturais. É um dos editores mais prestigiados, no país e no estrangeiro, cultural e empresarialmente. Trabalhou nas Publicações Europa-América, nas Publicações D. Quixote e na Editorial Presença, editoras em que assumiu várias funções, tendo sido responsável pela publicação de inúmeras obras e por inúmeras iniciativas de promoção do livro e da leitura. Criou a editora Gradiva em 1981, um projeto editorial cuja novidade, qualidade e ação cultural têm sido amplamente reconhecidos. Criou e dirige na sua editora várias colecções pioneiras dedicadas à divulgação científica, à ciência, à matemática. Foi condecorado, em 1993, pelo presidente da República Dr. Mário Soares, com a comenda da Ordem do Infante D. Henrique, pelo contributo continuado e diversificado que tem prestado para a valorização da cultura portuguesa. Em 1998, foi agraciado pelo presidente Dr. Jorge Sampaio com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, pelo trabalho pioneiro e continuado persistentemente na valorização da cultura científica e do interesse pela ciência, particularmente entre as novas gerações.