quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

INSPECÇÃO SANITÁRIA NA CASERNA


Mais um conto recebido do Prof. Galopim de Carvalho. Este fala do uso sanitário do DDT, um assunto que David Marçal abordou num dos seus textos no livro "Darwin aos Tiros":

De vez em quando, sem qualquer aviso, mandavam-se reunir os homens nas casernas, tal com vieram ao mundo. Começando no primeiro e assim sempre até ao último, dezenas de recrutas eram rápida mas cientificamente observados, o suficiente para detectar o inimigo, geralmente parasitas e blenorragias.

- Este ano o Phthirius pubis, de Lineu, atacou mais cedo e em força. – Comentava o tenente-médico, numa linguagem propositadamente erudita e bem-humorada que gostava de usar nestas ocasiões. Bem anafado de carnes e banhas, enfiado numa bata mal vestida e desabotoada, este clínico, um simpático bonacheirão para quem o conhecia de perto, punha na voz um volume e um timbre que deixava aterrados os pobres soldados. O cabo-enfermeiro que o acompanhava nestas inspecções também se divertia com o espectáculo.

Dirigindo-se a um dos magalas, de pernas peludas, bem afastadas, deixando ver a vermelhidão da zona pélvica, o nosso tenente-médico exclamava num tom de voz que enchia a caserna:

- Estás cheio de chatos, sacana de merda! Tens-te coçado que nem um sarnoso e não dizias nada, meu bandido. Porque é que não foste já à enfermaria tratar essa merda?
Olhando depois para o peito do rapaz, continuou:

- Com essa lã a chegar-te ao pescoço, estás aqui estás todo inçado dessa bicheza, meu grande sacana. Cabeça e tudo, meu piolhoso. Sai lá daqui e vai já tomar banho. Esfregas-te bem, da cabeça aos pés, com muito sabão. Tiras a espuma com água a correr com força e voltas a fazer o mesmo várias vezes. E não tornes a vestir a mesma roupa! A seguir vais à enfermaria, ao nosso sargento Simões, para que te dê um pacotinho de DDT. Diz-lhe que fui eu que mandei. Espalhas o pó por todo o lado onde haja pentelho e depois vais lavar essa roupa, que é para aprenderes a ser mais asseado, meu grande bandido. Levas a roupa da tua cama à lavandaria e pedes que te dêem lençóis lavados.

E, dirigindo-se à caserna, acrescentou bem alto para que todos ouvissem:

- Quem andar com comichão nos tomates, que venha para aqui, já! – E, após rápida confirmação da praga em mais uns tantos, gritou:

- Vai tudo para o banho e depois fazem o mesmo que aqui o … qual é teu número, bandido?

- 124, meu tenente.

- Fazem tudo o que o 124 fizer. Identifiquem-se aqui ao nosso cabo e amanhã quero vê-los lá no posto.

Ser apanhado com uma venérea dava direito a castigo. Todos os soldados sabiam que, depois de irem às meninas e logo que chegados ao quartel, deviam pedir, na enfermaria, uma bisnaga com a pomada própria para aquelas ocasiões.

Das primeiras vezes, o graduado de serviço ensinava-os a usar este desinfectante.

- Depois de urinares metes esta ponta na uretra - e mostrava a extremidade afilada da embalagem.

- Uré… quê, meu sargento?

- Uretra, sim, grande burro. Sabes tudo, menos aquilo que devias saber. Uretra é esse buraco aí por onde mijas. Em seguida apertas a bisnaga para a pomada entrar lá bem para o fundo da gaita. Depois arregaças-lhe a cabeça e, com o resto, besuntas tudo por dentro e por fora. E é assim todas as vezes que deres uma martelada! Não te esqueças!

O número do soldado ficava registado a fim de comprovar o cumprimento da respectiva medida profilática, bem expressa no regulamento do quartel. Esse registo despenalizava-o no caso de, apesar do cuidado, ter contraído a venérea.

Ao observar um outro soldado, o nosso tenente-médico que, todos sabíamos, agia como um pai da soldadesca, exclamou:

- Estás com um escarepe, meu desgraçado! Claro que não puseste a pomada da ordem. Qual é o teu número, bandido?

- 203, meu tenente.

- Estás lixado, rapaz. Vais apanhar um porradão que te acaba com a tesão, meu bandido.

E, dirigindo-se uma vez mais à caserna, gritou:

- Digam lá todos comigo, em voz que se oiça. «O 203 vai apanhar uma porrada por não ter posto a pomada». – E repetia o verso até a rapaziada o saber de cor. Voltando-se depois para o soldado infectado:

- Vais ser castigado, rapaz. Tenho muita pena mas é para aprenderes e para exemplo dos teus camaradas. Quando eu acabar a inspecção, vais ter comigo ao posto para começarmos a tratar essa merda.

A, Galopim de Carvalho

Sem comentários:

CARTA A UM JOVEM DECENTE

Face ao que diz ser a «normalização da indecência», a jornalista Mafalda Anjos publicou um livro com o título: Carta a um jovem decente .  N...