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Se lemos, por exemplo, Camões, podemos fazê-lo pelo prazer de o ler, para fruir a estética dos seus sonetos, para nos determos na estranheza e beleza duma expressão que criou ou duma palavra posta aqui ou ali. Mas também podemos ler o poeta para compreendermos os acontecimentos históricos em que se detém, para aumentarmos o vocabulário, para melhorarmos a qualidade da escrita.
Como se perceberá, valor intrínseco e valor instrumental do conhecimento, seja ele qual for, não são, de modo algum, antagónicos, antes se complementam. Podemos focar a atenção num deles, mas o outro está subjacente.
Escusado será dizer que, em termos didácticos, é possível e desejável conciliá-los, e desde os primeiros passos de escolaridade.
Porém, nas décadas mais recentes, não tem sido essa a opção curricular em diversos sistemas educativos. De modo mais ou menos acentuado, têm eleito, para constar em programas e manuais escolares, o "conhecimento" que emerge e circula no quotidiano, sendo, nessa medida, facilmente descartável, mas que se apresenta como a solução para preparar as novas gerações para a vida real, concreta, para adquirirem competências práticas.
Não está aqui em causa o valor intrínseco nem instrumental do conhecimento, tal como acima se apresentou. O que aqui está em causa é uma lógica utilitarista e imediatista de informação avulsa, que reclama legitimidade na criação de cidadãos participativos que
resolvam os mais diversos e complexos problemas.
Poderá ser assim?
Entendemos que não: a quantidade e superficialidade dessa informação desmerece o conhecimento e afasta-o. Fica a fluidez de um saber que não o é e do vazio do saber que não se usufruiu, como se o objectivo fosse treinar crianças e jovens para se tornarem cidadãos amorfos, seres não pensantes.
Sistemas
educativos onde se proclama que tudo tem a mesma relevância e dignidade para constar no currículo, que, em última instância, tudo se equivale, devendo, nessa medida, optar-se por aquilo que é apenas e só da ordem do funcional, ainda que coadjuvados por teorias pedagógicas, põem em risco o conhecimento que a civilização tem construído, bem como a inteligência individual.
Esta estratégia que se apresenta como igualitária e progressista é, bem vistas as coisas, uma forma elitista e, até, deselegante de impedir que aqueles que se encontram menos protegidos sob o ponto de vista cultural acedam ao conhecimento e compreendam o seu valor intrínseco e instrumental.
Se a escola não preencher o vazio de conhecimento, manter-se-ão as elites
estabelecidas, tal e qual, a transmitirem aos seus descendentes o que lhes permite manter estatutos privilegiados, evitando que se igualem desiguais. Nas palavras de Luís de Camões, “se este costume dura” ficarão alguns, muitos, “tão ásperos (…) tão rudes e de ingenho tão
remisso” que nem consciência
terão do que perderam ou, melhor, lhe foi negado.
O ensino,
ao afastar o conhecimento e do duplo valor que ele tem, vicia os alunos no facilitismo,
cultiva a preguiça e a ignorância, legitima a mediocridade, formata professores, transforma a escola numa entidade cumpridora de ordens,
metas estatísticas e objectivos económicos.
Helena Damião e Ana Grave
3 comentários:
"Esta estratégia que se apresenta como igualitária e progressista é (...) uma forma elitista e, até, deselegante ao impedir o reconhecimento do valor intrínseco e instrumental do conhecimento àqueles que se encontram menos protegidos"...
Por que não chamar-lhe então "estratégia criminosa"?
Citei mal, mas percebe-se.
Crime de lesa-juventude !
Concordo mil vezes e ainda mais !
Parabéns pelo ótimo texto !
Cris Fontana(BR)
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