segunda-feira, 2 de janeiro de 2012
No caminho do çuçeço: 6.º episódio — manuais
Ano Novo, Continaução da novela do Ano Passado. Prossegue a novela educativa- "No caminho do çuçeço" da autoria de António Mouzinho:
O que é que explica que toda uma família adie, interrompa, estupore, envenene férias longamente previstas e programadas, numa romaria desesperada às livrarias mais conhecidas, em buscas frenéticas?
Os manuais escolares dos filhos.
Cai um torpedo imprevisto no nosso bairro, lá longe? — Logo se vê no regresso.
Esgotou-se o manual de Português? — «Telefona para A Linha Torta (livraria habitual), diz que és meu filho e que amanhã estamos acampados à porta a partir das 6 da manhã, com vuvuzelas, e que vamos buscar o «Primeiro Estranha-se — I» (manual de Português para o 10.º ano de escolaridade) com o livro de desafios «Depois Entranha-se — I», e que sabemos que o livro do aluno está compreendido no preço, e que vamos todos, interrompemos as férias e 300 km são 300 km, e eles que se livrem, que somos clientes há 50 e tal anos!»
«Se se armarem em estúpidos, exige o Sr. Camilo Castelo Branco ao telefone, que é gerente de loja e amigo do teu avô, o Visconde de Atouguia, e faz-lhe sempre favores!»
Em 1966-67 fiz um ano de secundário em Paris. Não havia ditadura, apesar das frescuras da CGT sobre Pompidou, e os manuais não eram livros únicos. No entanto, ao entrar na Gibert para comprar os meus, tive a seguinte surpresa: boa parte dos livros era usada, em estado impecável, e vendida a preços módicos. As escolas mantinham-nos a rodar anos, porque não tinham razão de peso para mudá-los. Os autores e as editoras achavam mais sensato fazer um bom livro, uma coisa duradoura, do que estar a inventar em cada biénio, com pretextos saloios. Alunos que poupavam os livros, mantendo-os em bom estado, podiam vendê-los à livraria no final do curso, com um pequeno proveito. Tudo isto estava mais ou menos tabelado.
Ainda hoje consulto ocasionalmente as duas seletas literárias que de lá trouxe; ou o livro de Geografia; o de História, claro. Menos, o de Matemática. Mas já usei muito, mais cá do que lá...
Que tremendismo nos deu que, país de pobres, temos um lote incomensurável de manuais escolares — produtos caros — em permanente metamorfose, durando o mesmo que borboletas? Que loucura é esta que nos põe a produzir doses industriais de livrinhos, muitas vezes medíocres, fabricados em cima do joelho, sem possibilidade de revisão competente, utilizando todas as tramoias publicitárias, pequenas negociatas, grandes negociatas e empurrões de venda para serem colocados nas escolas? Escolhidos na brasa por professores meio distraídos com coisas prementes, no final do ano letivo?
Eu respondo, não se incomodem: mais uma vez, uma básica incompetência da decisão política; da legislação aplicável. Aliada, é claro, aos mais retorcidos esquemas editoriais.
Uma seleta literária decente poderá querer incluir um Valter Hugo Mãe, desconhecido há poucos anos e notável escritor? Poderá. Mas não há seletas literárias, de forma que o problema nem se põe.
Há ondas (e surfistas...).
Há pressa em fazer umas massas, há ignorantes espertíssimos a produzir a ideia que tudo muda depressa, que os professores estão numa voragem de velhas noções, numa urgência de novas noções, e que o conhecimento de ontem não vale um chavo, e o de anteontem é tão velho, tão velho, que já justifica nova edição dos manuais de História.
Em que resulta o ensino por conteúdos? Em manuais estáveis. E o ensino por competências? Como ninguém sabe o que isso é (mesmo aqueles que sabem lindamente: basta ler os textos que urdem...) dá todos os manuais que alguém queira cozinhar: com batatinhas, com picante, a murro, de escabeche, escalados, à Gomes de Sá, com ovo a cavalo, com CD, com livro do aluno, com livro negro, com livro de atas, agora com oferta de lápis n.º 2, logo com oferta de um conjunto de lápis 1, 2 e 3, com patentes intenções e, no entanto, incompetentes.
E efémeros: daí a três dias, tudo mudou!
Mas mudou algum coisa na Ciência? Na Literatura? No Fabrico de Doce de Abóbora? Nem por isso. Somente, algo mudou nas escolas portuguesas: os manuais!
Os pais olham, olheirentos e mudos, para a estante do filho de 18 anos que entrou no Técnico a fazer «aeroespacial»: toda aquela folharada não vai servir para o miúdo Manuel, que é o irmão mais novo e que, com 15 anos, entrou no 10.º de Ciências.
Nenhum manual servirá para o Manuel.
A mesmíssima escola mudou de ideias relativamente ao seu entendimento das Matemáticas (a Teoria dos Números anda enjoada com a crise bolseira), e da Física (Einstein anda a ser posto em causa); em Química perceberam que os núcleos andam caprichosos, Deus também, e o conhecimento de há três anos valeu o que valeu; mesmo em Desporto o recorde de velocidade dos 100 m em recinto coberto foi arrasado por um atleta de Chicago em 2/1000 de segundo, o que coloca tudo sob nova perspectiva. Da Geometria Descritiva nem se fala: o inventor, o matemático Gaspard Monge, não percebeu, quase no século 19, as vantagens de pôr as abcissas a crescer para a esquerda. Precipitou-se, com aquela precipitação própria do século das luzes: aquela coisa da guilhotina a baixar, a baixar, sempre atual, sempre em movimento, e Napoleão a subir, a subir. Encandeou-se, o miserável!
Ai o Conhecimento não muda à velocidade que a Pedagogia exige? Não faz mal: mudem-se os manuais de dois em dois anos em todas as escolas portuguesas — e vamoláver, cá e «lá fora», se o Conhecimento acompanha ou não acompanha!
(Mesmo que tenha seguido os seis episódios semanais, não perca o próximo compacto dominical do folhetim «No caminho do çuçeço»: «A Çinopçe»)
António Mouzinho
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8 comentários:
ein stein e funf stein já foram postos em causa pela mecânica quântica há décadas
deus não joga aos dados ...etc
a mecânica quântica tamém teve os seus arrumos
ahora os manuais têm mantido mais ou menos a mesma verve no último século e meio de cultura sebêntica a pedal ou à mão....
Pois sim senhor: temos tido as competências da incompetência. E muitos livros, muitos "packs" de livros, uma tormenta de (preços de) livros!
Agora chegou a penúria.
- Como vai ser? Os interesseiros no-lo dirão.
Recupero como comentário uns textos, com motivos datados, mas perfeitamente actuais em termos do sistema perverso dos livros escolares, que escrevi em 2005 e 2006.
É inimaginável a quantidade de dinheiro que se deita ao lixo com livros escolares (fora a quantidade árvores abatidas porque "Ai Jasus" fazer livros de folhas recicladas é que não). Ora portanto eu fiz os 12 anos escolares e a minha irmã (que é apenas 2 anos mais nova que eu) também...pois não se conseguiu aproveitar nenhum dos meus livros para as aulas dela! Ora porque a escola era diferente, ora porque o professor não concordava com aquele livro, ora porque alguém superior achou que os livros que eu usei eram demasiado velhos...camandro...eu tenho um mestrado mas usei livros estragados! Ou estariam apenas fora do prazo?...
Já agora...o que é que eu posso fazer com esses livros? Posso enviá-los para algum sítio onde façam realmente falta?
Passar a fronteira do 25 de abril, de um país provinciano rural, para um país de carácter democrático, não se afigura fácil a metamorfose da sociedade civil, impregnada do pó e da vivência provinciana rural, e libertar a mente de habitus enraizado e inculcado em quase meio século de ditadura.
Os retratos dos políticos desenhados por Ramalho e Eça de Queiroz mantêm-se actualizados no mundo de hoje, e não necessitam de retoques, porque mantêm a fidelidade e a originalidade do seu tempo. Continuamos mentalmente provincianos rurais.
Antigamente, a população do interior vinha para a cidade procurar uma vida melhor, como hoje os citadinos a procuram no estrangeiro, mas, como eram rurais, e não conseguiram os objectivos tiveram que se abrigar em barracas e fazer agricultura a tempo parcial, nos terrenos circundantes, que ainda hoje se enxergam nas margens do Jamor.
A inculcação rural que se transporta como um estigma, ou uma pulsão, estampada no modelo provinciano, está tão enraizada que a Câmara Municipal já pensa em autorizar ou implantar hortas citadinas.
Fugiu-se do rural para retornar ao rural.
Muitos passaram a fronteira e transmitiram essa ruralidade provinciana aos filhos. Alguns soltaram essas amarras inculcadas, como no-lo demonstra António Mouzinho que passou a retratar o rural provincianismo dos livros escolares que se herdou do antes do 25 e se mantém no depois do 25.
A crise avivou a herança.
Ou como alguém o registou nestas palavras:
Entre o partir e o ficar
Continuamente me vivifico.
Porque esta é a condição:
Entre quem fui e sou,
Já não há razão
Para sair donde estou.
Porque fico quando vou."
Afonso de Albuquerque
Triste realidade a descrita. Infelizmente, o ensino foi capturado por poderosos lobbies que não estão rigorosamente nada interessados que as escolas sejam eficazes... quanto mais complexos forem os processos pior para os alunos e melhores para os lobbies.
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