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Sigamos, então, as palavras de Barzun.
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“Nos escritos académicos, bem como nos textos jornalísticos, o nome de Rousseau e o adjectivo «rousseauniano» são utilizados para caracterizar opiniões que ele jamais defendeu (…). Para que conste: Rousseau não inventou nem idolatrou o «bom selvagem», não exortou ao «regresso à natureza», não afirmou que o homem, tendo nascido livre e vivendo acorrentado, deve libertar-se das suas correntes (…)”
Depois de ter publicado em 1749 um ensaio que foi premiado pela
Academia de Dijon – O discurso
sobre os efeitos morais das Artes e das Letras – Rousseau, “então com 43 anos (…) escreveu
outro opúsculo,Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade
entre os Homens. É aqui que
começam os mitos sobre as suas ideias: Voltaire que se sentira irritado com o
primeiro ensaio, sentiu-se ultrajado com o segundo, declarando que Rousseau
pretendia que «caminhássemos sobre os quatro membros» como os animais e nos
comportássemos como selvagens, que o autor via como criaturas perfeitas. Destas
interpretações, plausíveis mas inexactas, surgiram os lugares-comuns do Bom
Selvagem e do Regresso à Natureza.”
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Neste ponto, Barzun relembra que se trata de lugares-comuns porque
acompanham o nosso pensamento desde a Antiguidade, estando longe de serem
invenções de Rousseau: são, isso sim, “abstracções” que “reaparecem sempre que
a sociedade se torna demasiado complexa e se autocensura pela sua
artificialidade”.
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Retomemos a linha de pensamento deste autor: “De facto, Rousseau
insurgiu-se contra as características da alta civilização, mas não pregou um
regresso ao estado natural. Considerava o selvagem sob muitos aspectos, pouco
apelativo – carecendo de moralidade, agindo por instinto, sem pensamento e em
determinada fase sem linguagem, e apenas preocupado com a mera subsistência.
Aquilo que é preferível, sempre que a sociedade e a propriedade se estabelecem
e a desigualdade de talentos se revela, é que as capacidades individuais sejam
recompensadas a favor da comunidade (…) a partir do momento em que o estatuto
social e a riqueza já não correspondem ao mérito, a disparidade converte-se em
injustiça e conduz à instabilidade.”
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“Tomados em conjunto, estes dois primeiros ensaios constituem uma
crítica negativa ao estado de coisas corrente.”
Referência completa:
Barzun, J. (2003). Da Alvorada à Decadência: De 1500 à Actualidade - 500 Anos de Vida Cultural do Ocidente». Lisboa: Gradiva.
3 comentários:
Prof.ª Helena Damião:
Que sacrilégio.
Tem consciência de que está a minar os fundamentos mais profundos da «teoria anti-eduquêsa»?
Tem andado meio mundo a pregar contra o eduquês (e o De Rerum Natura tem sido um palco privilegiado), auto-construiu-se um ministro da educação e um programa de governo bramando contra o rousseaunianismo e agora, afinal, Rousseau, como o pintaram, não existiu.
Para mim, que há muito li o Emílio com olhos de ler, sem preconceitos nem palas nos olhos, não é novidade, mas é (seria) um grande terramoto se o comportamento de muito boa gente se pautasse pela seriedade intelectual.
Infelizmente não é o que acontece, o que conta é o slogan (que nos poupa de termos que pensar), o «sound bite» (que rende audiências, até entre os professores, que deveriam ser os mais analíticos e críticos), a verdade pouco conta.
Resta-nos a substância do chamado eduquês, as disfunções do funcionamento da Escola (que sempre existiram e existirão, basta regressar às lamúrias antigas, de todos os tempos, sobre a competência dos professores e a ignorância dos alunos, para citar apenas 2 itens), que devem ser atacadas uma a uma sem preconceitos nem visões dicotómicas de bons «versus» maus.
Bom, parece que seria útil que os indivíduos com ideias acima da vulgaridade passassem a preocupar-se não apenas com as ideias em si mesmas mas também com o modo como, em cada época e em cada circunstância, se possa fazer o aproveitamento delas.
E então, para dar apenas alguns exemplos, não teríamos:
Thomas Kuhn a gritar num encontro científico para Freeman J. Dyson, que lhe fizera queixa do despropósito que se havia ligado ao nome dele (Kuhn), de modo muito irritado, e para que todos ouvissem: "Entenda uma coisa - eu não sou um kuhniano";
Um Karl Marx (eventualmente) a dar voltas no túmulo, já não digo pelo que fizeram das teorias dele, mas por haver um marxista português, com grandes responsabilidades partidárias, a afirmar que não tem a certeza de que a Coreia do Norte não seja uma democracia;
Um Darwin perplexo no "Além" com a justificação que alguns nazis encontraram na sua teoria para as atrocidades que cometeram.
E, pelos vistos também Rousseau. Se bem que aqui, eu pertenço ao grupo dos que não se consideram "filhos de Rousseau".
É que há abstrações que dispenso.
Mas o "eduquês" não é uma abstração.
Em minha opinião é uma aberração muito concreta.
Cujas consequências não se disfarçam nem, muito menos, se apagam, com loas mal tingidas de sabedoria.
É que contra factos não há argumentos.
E a realidade é de tal modo conspícua que, perante ela, não temos o direito de nos fazermos cegos.
Em respeito por nós e pelos jovens que educamos (ensinando-os).
PS: agradeço à administração do De Rerum Natura ter melhorado estas caixinhas em que os leitores podem deixar os seus comentários. Bem haja.
Ohhh!
Lá escrever, eu escrevi sem custo.
Mas ler não, é um calvário.
Por isso tenho que voltar ao truque que adotei.
Permita-se-me pois a correção do "post-scriptum" do
comentário que fiz anteriormente: é só meio bem haja.
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