sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Um Portugal Novo

Bula do Papa Alexandre III que reconhece o reino de Portugal (13 de Abril de 1179)

Portugal precisa urgentemente de uma mensagem positiva, de esperança, de confiança na nossa capacidade de gerar oportunidades e de ser o país certo para ser feliz. Os nossos decisores políticos estão velhos, cansados, vivem num mundo em que a correlação com o mundo real, com os seus desafios, é cada vez menor. Não entendem o que se passa, têm muita dificuldade em perceber o que motiva uma geração nova, educada e culta, capaz de sonhar, capaz de realizar e capaz de empreender. Uma geração que procura desesperadamente uma oportunidade de ser feliz, de se realizar profissionalmente, de constituir uma vida com momentos felizes que valham a pena, tenham sentido e deixem marca. A melhor e mais competente geração de sempre está a ser desperdiçada.

Essa geração não quer ouvir mais falar nessa pouca vergonha das dívidas, dos juros da dívida soberana, e de todos aqueles senhores e senhoras cheios de certezas e verdades feitas, mas que foram incapazes de um projecto de esperança para o país. Essa geração está farta de ser bombardeada diariamente com problemas de todos os tipos e com as suas negras consequências. Sabe que o país está paralisado. Está farta de incompetência, de irresponsabilidade, de corrupção, de decisões pouco transparentes, de amiguismo, de homens e mulheres providenciais, de pessoas que desistem, de não ter os melhores e os mais capazes a decidir e a realizar. Está farta de ver tudo subvertido a poderes misteriosos e obscuros. Está farta deste país cheio de esquemas, de cunhas manhosas, de coscuvilhice provinciana, onde o mérito não conta, mas tão só a qualidade das amizades e a forma como se fazem percursos sem ferir susceptibilidades.

Essa geração está pronta para trabalhar e construir um Portugal Novo. Aceita todo o passivo que lhe deixam e promete resolvê-lo, mas quer mudanças profundas e quer tomar as rédeas. Sabe que terá de trabalhar e aceita ter de fazer sacrifícios, mas só se forem decisivos. E quer ser feliz. Quer poder viver a sua vida, ter um projecto de médio-longo prazo onde se possa sentir realizada e contribuir para um país mais desenvolvido, livre e solidário. Quer contribuir para essa mudança, quer reformar a maneira como vivemos, quer de uma vez por todas que se cumpra aquilo que se anunciou há 36 anos atrás, numa manhã de revolução em que se gritou liberdade e democracia, mas também se prometeu progresso, desenvolvimento, abertura ao mundo, justiça, educação, saúde, uma sociedade baseada no mérito e na capacidade de cada um, solidária e responsável, isto é, em que se prometeu a construção participada de um Portugal Novo.

Essa geração é Portugal agora, em 2011. Essa geração vai embora se sentir que Portugal já não vale a pena. Parte dela já foi. Com muita pena, mas já foi. Está a sair, aos poucos.

É nesse Portugal Novo, dinâmico, empreendedor, competitivo, que conhece o mundo e que representa o melhor de que somos capazes, que deve ser baseado o futuro. É por eles que esse futuro deve ser construído.
É a altura.
Agora.

J. Norberto Pires

(editorial do comCentro publicado com a edição de fim-de-semana do diário As Beiras de 31/12/2010)

Mahler para terminar o ano



Agora que está a findar 2010 e a começar o ano em que se assinalam os 100 anos do falecimento de Gustav Mahler, partilhamos com as nossas estimadas leitoras e leitores o final da Sinfonia nº 8 do grande músico, sob a batuta de Simon Rattle. Muito Bom Ano!

Sobre as contas do Reino


Um dos nossos habituais leitores fez-nos chegar este extracto do Discurso de Afonso Costa na Câmara dos Deputados em 20 de Novembro de 1906:

"(...) Quando o Sr. Ministro da Fazenda mandou para a mesa o seu projecto de contabilidade pública, e depois o quis fortalecer com a afirmação de que, sem a votação dele, não poderia pôr-se cobro nem aos esbanjamentos, nem aos desperdícios, nem à ruína de que enfermava a administração anterior, o que supus e todos supusemos, antes da leitura da proposta e principalmente do projecto da comissão, foi que se encontrava nele a defesa completa e sistemática contra todo e qualquer pedido que pudesse representar qualquer espécie de tentativa sequer de defraudar o País.

Mas, depois que vi e examinei essa proposta, reconheci com pasmo que ela de nada serviria a bem da Nação, nem contra os tais famosos costumes de administração.


As consequências desses costumes, que o Sr. Ministro não quis denunciar-nos como devia, são no entanto bem frisantes e dolorosas, e definem-se em duas palavras: uma dívida pública de perto de 800.000.000$000 réis; uma dívida flutuante que vai até 72.000.000$000 réis; impostos que têm sempre aumentado, até quase quintuplicarem, de 1852 para cá; e, por outro lado, o País sem instrução, nem exército, nem defesa das costas, e fronteiras, nem marinha, nem, auxílio aos operários, nem nada do que se pede e precisa, porque nem sequer temos estradas, já que as existentes, que nos custaram dezenas de milhares de contos de réis, destruiu-as a triste iniciativa e casmurrice do Sr. João Franco num dos seus Ministérios anteriores, não consentindo nas reparações necessárias, e inutilizando assim um importante capital nacional que, pelo contrário, era mister valorizar e aumentar.


Nós não temos absolutamente nada.

Os costumes de administração foi o que deram: o País à beira da ruína; o desgraçado consumidor a braços com o imposto de consumo, que o leva à tuberculose e à miséria; o contribuinte cada dia mais incapacitado de panar as contribuições sempre crescentes; o proprietário disposto a abandonar as suas terras; o viticultor impossibilitado cie colocar os seis vinhos.


Sr. Presidente: é a situação mais ruinosa e mais miseranda que se pode encontrar percorrendo a história, ainda mesmo dos povos que mais têm descido na sua economia e nas suas finanças.
Pois, a par disto, e que encontramos efectivamente neste projecto não é uma tentativa séria de evitar a repetição desses tremendos abusos, mas sim, somente, uma nova poeirada sobre a ingenuidade do público, ao lado do propósito, explicitamente confessado pelo chefe do Governo, de dar uma espécie - como direi, Sr. Presidente -, uma espécie de refresco ao crédito da monarquia e ao crédito dos seus serviçais, exibido pelo Sr. Ministro da Fazenda em nome da suposta moralidade do Governo.

V. Ex.ª vai ver.


O que o projecto encerra pode dividir-se em duas partes distintas: 1.ª Fogo-de-vistas; 2.ª O fim confessado e declarado de tentar reabilitar a monarquia, continuando aliás com os mesmos processos de administração."

Afonso Costa
in Portal da história,
http://www.arqnet.pt/portal/discursos/novembro04.html

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O ANO DO MORCEGO


Se 2010 foi o Ano da Biodiversidade, 2011 será o Ano Internacional das Florestas, proclamado pelas Nações Unidas, a par do Ano Internacional da Química. Mas, além disso, o Programa para o Ambiente das Nações Unidas (UNEP) declarou que 2011-2012 seria o "Ano Internacional do Morcego", com o intuito de defender esse mamífero voador: ver aqui.

2011 - Ano Internacional da Química



Está quase a começar o Ano Internacional da Química!

As Luzes de Rutherford



Nas vésperas do ano em que comemoram cem anos da descoberta do núcleo atómico, obra do físico Ernest Rutherford, deixo aqui um excerto de uma peça que um músico contemporâneo com formação em física - o britânico Edward Cowie - compôs em sua homenagem: "Rutherford Lights".

Encontrado na Web - Choque galáctico



O vídeo contrasta a simulação com a realidade num choque de duas galáxias. O resultado de um cálculo numérico é comparado com cinco imagens tiradas a partir do telescópio Hubble.

Legenda do Youtube:
"A comparison of a simulation of a galaxy collision with five Hubble observations of galaxy collisions. No sound.

This visualization follows the evolution of a computer simulation of two galaxies colliding. At five points, the simulation is stopped, and the geometry of the simulated galaxies are compared to five different interacting galaxy pairs observed by the Hubble Space Telescope. Thus, one sees that each observation is just one snapshot of a billion-year-long process.

The interacting galaxy observations are part of a 59 image press release honoring the 18th anniversary of Hubble.

Visualization by Frank Summers (Space Telescope Science Institute). Simulation by Chris Mihos (Case Western Reserve University) and Lars Hernquist (Harvard University)."

GRANDES ERROS: DAN BROWN, AUTOR DE NÃO-FICÇÃO!


Espreito a última edição (n.º 194) da revista do Círculo de Leitores e pasmo: a abrir a secção de não-ficção, o livro escolhido foi... "O Símbolo Perdido", de Dan Brown... Os editores conseguiram fazer a quadratura do círculo e apetece chamar ao Círculo de Leitores (que saudades dos tempos antigos!) o Quadrado dos Leitores.

MATEMÁTICA SEM LIMITES


Ciclo de palestras sobre matemática na Universidade de Lisboa, no qual vou participar: aqui.

VISITA VIRTUAL AO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DO SMITHSONIAN

Não é bem a mesma coisa, mas pode-se ir ao Museu sem sair de casa: aqui.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

"Sem elevada Biodiversidade a Humanidade não sobreviverá"

Neste Natal, Porge Paiva, botânico e professor da Universidade de Coimbra, enviou aos muitos amigos que tem espalhados pelo mundo o seu vigéssimo cartão "ambientalista" de Boas-Festas.

Com fotografias e texto originais - em versão portuguesa e inglesa -, impressos num papel de qualidade, não dispensam a personalização dos votos da época, escritos pela sua mão.

Receber um postal destes, com existência física, é manifestamente um privilégio. E, não, "não teria o mesmo efeito se fosse enviado por correio electrónico", nisto concordo em absoluto com Jorge Paiva.

O postal de 2010, intitulado A Biodiversidade e a Humanidade, que apresenta duas imagens do Narissus calcicola, pode contempar-se abaixo. O texto é o que se segue:

"Um desenvolvimento só será sustentável se houver preservação da Biodiversidade, o que não tem vindo a acontecer em parte alguma no Globo. É isso que os governos, políticos, industriais, assim como todas as pessoas necessitam, urgentemente, de perceber. Uma correcta elucidação da população, com programa bem elaborados nas Estações de Rádio e Televisão Públicas e sem uma educação ambiental bem programada nas escolas, a preservação dos outros seres vivos será descurada e a Biodiversidade irá diminuir drásticamente. É fundamental que todos se capacitem que sem a Biodiversidade não sobreviveremos e, quanto mais elevada ela for, maior a probabilidade de sobrevivência da nossa espécie. Os outros seres vivos não são só a fonte dos nossos alimentos: como também das substâncias medicinais que utilizamos (cerca de 8o% dos medicamentos são extraídos de plantas e 90% são de oriegem biológica); dos nosso vestuário (praticamente tudo o que vestimos é de origem animal ou vegetal); da energia que necessitamos (lenha, petróleo, ceras, resinas, etc.); da maioria dos materiais de construção e mobiliário que usufruímos; etc. Até grande parte da energia hidro-eléctrica que consumimos não seria possível sem a contribuição de outros seres vivos, pois embora a energia eléctrica possa estar a ser produzida pela água de uma albufeira esta tem de passar pela turbinas e estas precisam de óleos lubrificantes. Esses óleos são estraídos do «crude» (petróleo bruto), que é de origem biológica. No entanto, em vez de preservarmos a Biodiversidade temos vindo a diminuí-la drasticamente. No passado já utlizámos cerca de 10.000 espécies de plantas na nossa alimentação, mas actualmente a base alimentar dos países industrializados baseia-se em cerca de 20 espécies de vegetais, entre os quais, 8 espécies de cereais (milho, milho-miúdo, arroz, trigo, centeio, cevada, aveia e sorgo) e em carne de apenas 5 espécies de animais (porco, frango, vaca, ovelha, cabra). Durante a minha já longa vivência (curtíssima para a idade da terra) desapareceram inúmeras espécies, quer animais, como, por exemplo, o pato-das-marianas (Anas oustaletis), dado como extínto em 1981 e a foca-monge-das-caraíbas (Monachus tropicalis), dada como extínta em 2008; quer vegetais, como, por exemplo, o azevinho-da índia (Ilex gardneriana), dado como extínto em 1998 e a Armeria arquata, do litoral Sul de Portugal, não observada há mais de um século; quer de outros filos como o cogumelo-quinino (Fomes officinalis), que não contém quinino e, que apesar de ser um dos cogumelos mais compridos e ter uma vida média de cerca de 50 anos, está extínto na Europa (actualmente só ocorre na América do Norte) por excessiva colheita devido aos seus atributos medicinais. Particularmente vulneráveis são os endemismos de área restrita, como, por exemplo, o endemismo ibérico (Narcissus willkommii), dado como extínto em Portugal, mas, felizmente, redescoberto em populações residuais no Algarve e endemismos lusitanos, Narcissus scaberulus e Narcissus calcicola.

Sem elevada Biodiversidade a Humanidade não sobreviverá."

Cassini



A nave espacial CASSINI continua a sua fantástica viagem a SATURNO.
Perto do dia de Natal enviou imagens fabulosas.
Veja aqui.

:-)

A verdade existe?

A verdade existe? Eis uma pergunta recorrente em áreas que se pautam pelo modo de pensar objectivo, rigoroso, científico. Mais: trata-se duma pergunta que fez nascer esse modo de pensar e que não o deixar sossegar. Sem ela e sem a tendência para responder que sim, que existe verdade (ainda que esta, quando formulada, não se deva declarar como definitiva), seria impossível termos esse modo de pensar.

Deve acrescentar-se que este modo de pensar - desejavelmente presente na ciência, mas também na justiça, entre outras áreas - tem os seus critérios. Um deles é que a noção de verdade, apesar de ter sido inventada por pessoas, não decorre do entendimento contextualizado de algumas pessoas. É preciso que as conjecturas avançadas para explicar algo, além de respeitarem as regras da lógica, sofram a "prova de fogo" da realidade. Nesta prova, todas as pessoas, independentemente do contexto social, cultural, étnico ou outro a que pertencem, poderão chegar às mesmas conclusões, ou, então, duvidar delas ou mesmo refutá-las, caso os factos indiquem nesse sentido.

Ainda que muitos cientistas, epistemólogos e outros pensadores dissertem sobre este assunto, os que se pautam pelos princípios iluministas ou, na expressão do filósofo inglês T. Nagel, neo-iluministas, têm por mais ou menos pacífico o que acabei de referir. É certo que há os pós-modernos que, não abdicando da tal contextualização, afirmam a total impossibilidade de aceder a uma verdade que vá além daquela que é localizada no tempo e no espaço, e sempre por referência à subjectividade de quem a declara... E, se alguém a declara, então, passa a existir com certeza, a verdade. Ou melhor: "a verdade para..." Como qualquer argumento esbarra na opinião do outro ou de um grupo, não há muito a fazer para prosseguir qualquer raciocínio...

Este último entendimento de verdade, pelas inconsitências várias que lhe têm sido apontadas, parece não ter grande esperança de vida. Engano: quando tudo leva a crer que esmoreceu e que não transitou para o século XXI, vê-se ressuscitar neste artigo, naquela conferência, numa outra entrevista...

Foi o que percebi mais uma vez recentemente e desta vez não foi no campo da educação. Lembrei-me, naturalmente, duma passagem do Imposturas Intelectuais de Alan Sokal e Jean Bricmont, que, a seguir trancrevo, de modo que o leitor perceba melhor do que falo:
“Eis o contexto: em 1996 a Bélgica viveu o drama das crianças desaparecidas e assassinadas, no seguimento do qual foi criada uma comissão de inquérito a fim de examinar as deficiências verificadas durante a investigação policial. Duas pessoas — um polícia (Lesage) e um magistrado (Doutrèwe) — foram inquiridas para saber se a primeira tinha ou não entregue o dossier ao magistrado, que este negava ter recebido. No dia seguinte um antropólogo da comunicação, Yves Winkin, professor da Universidade de Liége, foi entrevistado por um dos principais jornais belgas (Le soir, de 20 de Dezembro de 1996). Foi-lhe colocada uma questão:

Questão: O confronto [entre Lesage e Doutrèwe] foi estimulado por uma procura drástica da verdade. A verdade existe?

Resposta: (…) penso que todo o trabalho da comissão se baseia numa espécie de pressuposto, o de que existe, não uma verdade, mas a verdade, que, se se pressionar bem, acabará por surgir. No entanto, antropologicamente, só existem verdades parciais, partilhadas por um número maior ou menor de pessoas, um grupo, uma família, uma empresa. Não existe verdade transcendente. Não penso por isso, que o juiz Doutrèwe ou o polícia Lesage estejam a esconder algo: ambos falam a sua verdade. A verdade está sempre ligada a uma organização em função dos elementos considerados importantes. Não é de estranhar que estas duas pessoas, representando cada uma universos profissionais distintos, exponham uma verdade diferente cada uma. Dito isto, no contexto de uma tal responsabilidade pública, penso que a comissão só pode prosseguir no sentido que actualmente prossegue».

Estamos perante um exemplo notável das confusões criadas pelo vocabulário relativista (…). Acima de tudo, o objecto do inquérito é um facto material, o envio de um dossier (poderá pensar-se que este foi enviado e se perdeu no caminho, mas isto também é uma questão factual bem definida). É claro que o aspecto epistemológico é complexo: como é que a comissão vai saber o que realmente se passou? Mas isto não impede que haja uma verdade: ou o dossier foi enviado ou não foi. Não se compreende muito bem o que se ganha com a redefinição do termo verdade (mesmo que seja parcial) para que passe a significar simplesmente «uma crença partilhada por um número maior ou menor de pessoas (…) estamos perante uma situação que roça o absurdo: ambas as pessoas falam a mesma língua, não moram a mais do que uma centena de quilómetros de uma comunidade belga francófona (…). O problema não é, manifestamente, o da impossibilidade de comunicação: as duas pessoas em confronto compreendem perfeitamente o que se passa e, sem dúvida, sabem qual é a verdade. Simplesmente uma delas não está interessada em revelá-la. Mesmo na hipótese de as duas falarem verdade, ou seja, no caso de o dossier se ter perdido, o que é logicamente possível (ainda que improvável), ainda assim não faz sentido dizer que «ambas falam a verdade». Quando se chega a conclusões práticas, felizmente, o antropólogo admite que a comissão «só pode conseguir», quer dizer, procurar a verdade. Tanta confusão para se chegar a esta conclusão.”
Referência completa: Sokal, A. & Bricmont, J. (1999). Imposturas intelectuais. Lisboa: Gradiva, páginas 103-104.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

"A Ciência salvou a minha Alma"

É um vídeo fabuloso que tem saltado em blogs, em facebooks, em vários canais. No fundo, apresenta um lado espiritual da Ciência, em particular da Astronomia, e um certo "render de alma" perante os mosaicos e dimensões que o estudo do Universo apresenta. Apresenta também uma comparação (a meu ver perfeitamente escusada) entre Ciência e Religião, nomeadamente a religião organizada. A tradução para o português é deficiente, mas não deixa de ser um vídeo carregado de emoção.


ESTRANGEIRADOS EM LONDRES


Minha crónica na última "Gazeta de Física" deste ano (na figura Isaac Newton):

A Royal Society de Londres, ligada ao nome de Isaac Newton e de tantos outros cientistas ilustres, está a celebrar os seus 350 anos, orgulhando-se de ser a academia científica mais antiga do mundo em funcionamento ininterrupto (outras mais antigas, como a Accademia dei Lincei, ligada a Galileu, esteve parada muito anos, ou cessaram mesmo actividade). A sua divisa é, desde o início, Nullius in verba, em tradução livre Não acredites na palavra das autoridades. De facto, o pequeno grupo de sábios que se reuniu na capital da Grã-Bretanha em 1660 estava imbuído do espírito da Revolução Científica: o conhecimento sólido devia ser comprovado pela experiência.

Há uma “portuguese connection” na origem da Royal Society pois essa sociedade só é real porque recebeu carta de privilégio do rei Carlos II, que era casado com a nossa Catarina de Bragança. Nos seus três séculos e meio de vida, a Royal Society admitiu apenas 25 sócios portugueses, o primeiro dos quais logo em 1668. A maior parte das entradas dos membros portugueses ocorreu, porém, no século XVIII, o tempo do Iluminismo tão bem simbolizado pela Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, onde uma exposição evoca esses homens de ciência e cultura. Entre os nomes de maior destaque tem de se colocar João Jacinto Magalhães, o monge do Mosteiro de Santa Cruz que emigrou para Inglaterra porque não queria viver num país onde faltava a liberdade. Ele foi, no século das luzes, um dos sábios que mais contribuiu para a expansão das ideias, ao relacionar-se com Watt, Priestley, Lavoisier, Volta, Franklin, etc. Para Portugal enviou alguns instrumentos científicos de sua concepção que hoje pertencem às colecções do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra e estão patentes nessa exposição. Mas foi para Filadélfia, confiando no seu amigo Franklin, que enviou os guinéus para instituir o Prémio Magellan, um dos prémios científico-tecnológicos mais antigos do mundo e que, entre outros, distinguiu pioneiros do GPS.

Magalhães (descendente do famoso navegador) não foi o único “estrangeirado” que se distinguiu no século XVIII em terras britânicas. O Padre Teodoro de Almeida, que pode ser considerado o primeiro físico experimental assim como o primeiro divulgador científico em Portugal, também se exilou, precavendo-se do despótico regime pombalino. E o mesmo aconteceu com outro padre oratoriano, João Chevalier, astrónomo que chegou a presidir à Real Academia de Bruxelas. Almeida voltou para Portugal, ajudando a fundar a Academia de Ciências de Lisboa, mas o mesmo não aconteceu com Chevalier que ficou “estrangeirado” toda a vida.

Outro “estrangeirado” ficou conhecido como o “Newton português”: Bento de Moura Portugal, nascido em Moimenta da Serra, calcorreou durante anos a Europa, onde aprendeu a criar engenhos e obras hidráulicas. Tendo-se atrevido a regressar não escapou a um fim trágico: morreu nas prisões da Junqueira, em Lisboa, onde estava encarcerado às ordens do Marquês. É uma ironia da história que o Marquês de Pombal, diplomata em Londres antes de ser primeiro-ministro, tenha sido admitido na Royal Society escassos meses antes de Moura Portugal. Na exposição da Biblioteca Joanina, a ordem inverteu-se pois o visitante encontra primeiro Moura Portugal no piso intermédio, junto ao desenho da sua “máquina de fogo” publicada nas Philosophical Transactions, e só depois o Marquês, junto com os seus famosos Estatutos da Universidade, no piso inferior, no espaço que foi outrora Prisão Académica...

Um escritor escreve sobre um erro clínico

Outras Boas Festas muito originais que recebemos vieram do escritor Cristóvão de Aguiar que as fazia acompanhar de um texto onde, com o seu inconfundível estilo literário, relatava a sua sofrida odisseia clínica, que terá a ver com um erro (um assunto recorrente neste blogue).

Já resido neste hotel de meia estrela há quase três semanas. Perfazem-se três semanas exatamente amanhã. Como muito bem sabes, fui submetido a uma cirurgia que se pressupunha simples e se complicou por mero desleixo médico. Desleixo, incompetência, arrogância de quem tira uma especialidade em Paris e julga que ficou a saber toda a medicina do Universo e cercanias...

Não há ninguém, a não ser os deuses a quem já lhe foram impostas as insígnias, que não cometa um engano ou erro. O mais pintado os comete, mas há quem não possua ou não queira possuir a humildade de reconhecer o erro ou a falta cometida. Coimbra é uma cidade de sábios. Nunca se enganam. Este privilégio pertence ao parágrafo único da sebenta. Sempre assim foi, daí o seu atraso secular. Muitos quefazeres têm os médicos deste Centro Cirúrgico, falsamente considerado como a cereja no cimo do bolo da cirurgia paroquial, coimbrinha, mas com sérias pretensões a galgar o patamar ou o patíbulo da notoriedade nacional… A narrativa desenrola-se num ápice.

Calhou ser eu a vítima de um enxerto do ilíaco para o maxilar superior, já mirrado de osso para poder suportar alguns implantes dentários. Dessa parte do ato, nada a apontar: nem um suor ou lágrima de dor em nenhuma das fases por que tem de passar uma operação cirúrgica. Serviço bem feito! A coxa direita, coitada, é que pagou todas as favas do bolo-rei da melodiosa quadra natalícia, este ano com racionamento de açúcar e muitas outras escassezes sopradas das europas do mundo… Pressupõe-se que um vaso sanguíneo na coxa direita, farto de albergar sangue, se chateou e resolveu escoar-se para a coxa. Natural para quem tem uma especialidade e exerce outra, ou, melhor duas em sincronia.

Simultânea e legalmente! Uma equimose (nódoa negra) logo se revelou, alastrante, negroide, preenchendo um círculo de cerca de vinte centímetros, das costelas até meio da coxa. O das duas especialidades nem fez caso. Tudo natural. Como a água que corre no rio e segue até à foz. Se alguém se afogar, a culpa nunca será do rio, mas de quem nele se afoitou a mergulhar, com um massagista a servir de caução… “Movimente-se, mexa-se, não se ponha parado, faça exercício, enrijeça os músculos, torne-se atleta, inscreva-se, sem pagar joia, ainda vai a tempo, o prazo só se esgota logo à noite, aliste-se num prova de corrida de muletas (perdão, canadianas), pode ter sorte, nunca se sabe, e ganhar o primeiro prémio, o gordo, encher-lhe-á a grande cloaca da conta calada da fatura que a clínica fará o especial favor de apresentar à saída, depois de descontada a caução, nunca se sabe com quem se lida, e tudo isto acontece, mesmo que a vítima tenha entrado pelo seu próprio pé e saído abraçado aos fofos roliços braços de umas muletas, perdão, canadianas, e amparado por uma ou duas pessoas, ao fim de dezassete dias de clausura doirada, adoçada com pílulas, sorrisos, visitas meteóricas do físico que tem muito mais que fazer que aturar doentes e acha tudo natural: nem sabe a situação clínica do paciente, confunde dores da coxa com dores do pé, não sabe ler uma radiografia, não admira, radiologista nunca foi, há de sê-lo quando crescer, mente muito, mas, sobretudo, manda: ande, corra, faça ginástica de aplicação militar, flexões no varão da cama, olhe que a embolia pulmonar vem aí não tarda nada, não quero que venham os mestres de Paris de França dizer que não o avisei, que deles dependo para subir, subir, Coimbra admira muito os atletas que sobem a corda para alcançar o bacalhau no topo, andar é fundamental, em França o doente começa a andar antes de ressuscitar da anestesia, e logo caminha sem muletas, perdão, canadianas, país civilizado (a França, de Robespierre), o nosso, ainda não, só quando terminar o Serviço Nacional de Saúde, aí, sim: os doentes deixarão de ficar molengões com a anestesia e, em vez de só acordarem ao terceiro dia para subir ao céu, passam a ressuscitar já com as muletas, perdão, as canadianas, postas e já apetrechadas com um aparelho de marcar o ritmo do passo muletário, ande, ande, este é o lema de Paris de França a que devemos obedecer, andar, andar, correr, ginasticar, seguir à letra os preceitos da outrora capital do Mundo e das luzes, e agora tem Sarkosy e Bruna, também fazem jogging na cama, não se pode ter tudo, sigamos os alfaiates de Paris de França, como seguimos o antigo Curso Preparatório já depois de ter sido extinto vinte e cinco anos antes, andar, andar, marchar, contra os bretões marchar, tirem as muletas, perdão, canadianas, em verdade vos digo que elas serão abolidas no reino clínico da cereja no topo do bolo de Ançã, sem que este tenha culpa nenhuma.

Coimbra, 13 de Dezembro de 2011

Cristóvão de Aguiar

(O texto foi publicadio no Expresso das Nove: aqui , onde há mais textos do autor, designadamente uma breve sequela sobre a reabilitação, com data da noite de Natal)

Tempos extraordinários

Partilho convosco 3 deliciosos acontecimentos do mundo da Ciência que apareceram na espuma destes nossos recentes dias:

- foram encontrados dentes humanos com mais de 400.000 anos; a descoberta deu-se em Israel e, a confirmar-se, permite "esticar" a localização temporal dos primeiros homo sapiens para muito mais cedo do que o que se pensava. O último consenso sobre esta matéria aponta que os primeiros "homens sábios" surgiram há 200.000 anos. Eis um fabuloso desafio para a antropologia...

- O Carlos Oliveira, do blog AstroPT, conta-nos que há novas e interessantes teorias sobre os mistérios do despromovido Plutão! Não, não se trata de uma obsessão por encontrar oceanos em tudo o que é local do nosso Sistema Solar, mas parece que Plutão pode esconder um oceano por baixo da sua superfície gelada... para já, é apenas uma teoria, um modelo computorizado, que indica que o núcleo desse "em tempos planeta" contém materiais radioactivos cujo fenómeno de decaimento poderá ser suficiente para aquecer o gelo. E não será um mero lago; de acordo com o modelo, esse oceano poderá ter 100 a 170 quilómetros de espessura! Eis um fabuloso desafio para a missão New Horizons desvendar em 2015 quando chegar a essas terras distantes do nosso Sistema Solar!

- continuemos pelo sistema solar exterior: neste mesmo dia, mas no ano de 1612, Galileu tornou-se no primeiro homem a observar o planeta Neptuno; terá reparado num "estranha estrela fixa" perto de Júpiter e registou essa descoberta:


Assim, e em honra e memória de Galileu e Neptuno, deixo-vos com o elogio de Gustav Holst fez a esse planeta na sua maravilhosa obra The Planets Suite, escrita na segunda década do século passado.

O PRAZER DAS ESTATÍSTICAS



Hans Rosling mostra o progresso no mundo nos últimos 220 anos. Espectacular!

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Nem sempre é preciso destruir

A notícia veio nos jornais da cidade, que nos têm informado sobre o projeto do futuro Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Há dias foi apresentada a segunda fase, talvez a mais difícil, que é a transformação do imponente Colégio de Jesus. Esta missão – recuperar aquele austero e enorme edifício e fazer dele, com o Laboratório Chímico, um Museu da Ciência, ou até da Universidade - é um projecto de envergadura. E que nos deixa cheios de esperança, tendo em conta o que se fez até agora, louvável a vários níveis. Desde a recuperação do edifício pombalino - que há poucos anos era uma ruína, por dentro, e um cordão de lixo, silvas e barracões espúrios, por trás - até ao programa que o Museu da Ciência tem desenvolvido, de promoção e dinamização científica e cultural, dum modo regular e contínuo para miúdos e graúdos. O que não é pouco, em Portugal. O que o Museu fez desde a sua criação, há quatro anos, pela promoção da cultura científica, só será apreciado dentro de anos, mas é de grande importância para o futuro de um povo que quer ter futuro. E é um exemplo de que somos capazes, quando trabalhamos com serenidade e perseverança em planos pensados, faseados e concretizados. O que, repito, não é pouco. É sabido, somos capazes de grandes missões, de ir à Índia e voltar, mas temos que recuperar, depois, em longos estágios de hibernação.

Este projecto tem vindo a ser bem executado, não ficando pelas intenções, nem esquecido, nem a meio. Esperemos que continue a avançar. Em Coimbra têm-se feito coisas desastrosas, como o Metro Mondego, de que toda a gente fala, e muitos com razão, embora nem todos. Mas o que se tem feito ultimamente na Universidade é já apreciável. Desde os edifícios do Pólo II, os quais, como o Reitor Seabra Santos mais de uma vez disse, para exemplo nacional, nunca sofreram das famosas e danosas “derrapagens” político-patobravescas, à portuguesa, passando pelo Pólo III, de que há razões para orgulho, até ao que se tem vindo a fazer na zona do Pólo I, como a recuperação da Sé Nova, a ampliação e reformulação do Museu Nacional de Machado de Castro, o restauro do Colégio de S. Pedro, da Via Latina e da a Torre da Universidade e os actuais trabalhos nas Escadas de Minerva e no pavimento dos Gerais.

Finalmente percebeu-se que há ali um património monumental que merece todo o cuidado, porque é um valor, da cidade e de Portugal. A criação, naquele lugar, de um museu à escala europeia – e a concentração dos diversos museus da Universidade, por um lado, a imponência e proeminência urbana dos edifícios, por outro, e ainda o programa de dinamização feito até agora no Chímico, que nos garantem que poderá ainda ser melhor, no futuro, podem de facto transformá-lo nisso. E é um bom programa, não por megalomania nem vontade desmesurada de alguns, mas porque tem a ambição equivalente ao que merece, em virtude da riqueza, real e potencial que contém. Às vezes lamentamos que não tenha Coimbra sido capaz de uma obra arrojadamente moderna, um edifício âncora, à moda do Museu Guggenheim, de Bilbau, por exemplo. Mas se tratasse com o cuidado devido todo o seu património “tangível e intangível”, e se disso fizesse um programa cultural adequado e uma promoção continuada e inteligente, que já se viu que é capaz de fazer, talvez não precisasse de nenhum Museu Guggenheim. Em Portugal pensamos sempre em fazer de novo, copiando os outros, sobretudo em destruir antes, enquanto desprezamos o antigo e o deixamos apodrecer. Mas quando possuímos património desta qualidade, o que necessitamos é da humildade das inteligências mais capazes para perceber a qualidade real e potencial do que muitas vezes já temos, e saber valorizar. Esta equipa reitoral soube fazê-lo e os resultados já se notam. Esperemos que a nova não abrande, porque muito tempo se perdeu antes.

Na imagem: Colégio de Jesus de Coimbra.

Nem à bala!


A equipa de Vítor Cardoso trabalha sobre física de buracos negros. Um tema muito interessante. Agora preparam-se para publicar resultados relevantes, descritos aqui. OS resultados obtidos pelos Portugueses contrariam os recentemente publicados por Ted Jacobson e Thomas Sotiriou.

:-)

2010 espacial


A minha crónica semanal no jornal i.

Nesta última crónica de 2010 respeitamos uma certa tradição e vamos referir algumas descobertas espaciais que a Humanidade assistiu ao longo deste ano. Enquanto na Terra foi inaugurado o primeiro aeroporto espacial e abriram-se as portas dos céus aos privados, em cima de nós a Estação Espacial Internacional completou dez anos de presença humana permanente. Apesar das mais de 600 experiências científicas realizadas, o seu propósito ainda é discutido; o seu financiamento futuro uma incógnita. A Lua foi, de novo, notícia em 2010: parece que tem alguma agitação química e que afinal poderá ter água. A Lua foi também visitada pela Índia com a sua sonda Chandrayaan-1 e a China também por lá navegou com a Change2. Pelo reino dos asteróides, a sonda japonesa Hayabusa, que tinha partido do conforto terrestre em 2003 em direcção ao asteróide Itokawa, regressou em Junho com poeiras do mesmo e a Epoxi estudou de perto o cometa Hartley 2. Mais longe, Titã, uma das luas de Saturno, continua a entusiasmar: cada vez mais se parece com a Terra primitiva e pergunta-se: tem ou poderá ter vida? E Encelado, outra lua de Saturno, mostrou monstruosas erupções de vapor de água e gelo: terá um oceano subterrâneo? E planetas extrasolares? Já são mais de 500! No cair do pano, tivemos uma nova e polémica forma de vida amiga do arsénico. Tudo isto em 31536000 segundos. Tudo isto em forma de aperitivo para muito mais. Boa nova órbita à volta do Sol!

Descentralizar ou DesCentralizar?


Depoimento que prestei ao "Jornal de Leiria" para a secção "Advogado do Diabo":

Está na altura de dar corpo a um projecto que está em curso na sociedade civil da região Centro do país e à qual me associei desde a primeira hora: o aproveitamento civil do aeroporto de Monte Real, que actualmente é apenas militar. Os governos da nação – este e os anteriores – têm feito tudo o que podem e mais alguma coisa para evitar colocar mais valias no Centro do país, pondo-as em Lisboa, ou, quando muito, no Porto. Lisboa e Vale do Tejo é, depois do recuo quanto ao aeroporto da Ota, um íman para novos investimentos (TGV, nova travessia do Tejo, sei lá eu que mais), quando a região já está do ponto de vista económico acima da média europeia. Fala-se em descentralizar, mas o que se tem feito é desCentralizar, isto é, tirar do Centro.

Por toda a Europa há uma rede de aeroportos regionais, alguns muito bem servidos por companhias de voos “low-cost”, que permitem dinamizar a actividade económica e o turismo das regiões. Por toda a Europa, excepto nesta parte da Europa que é Portugal e, em particular, nesta parte de Portugal que é o Centro. E que extraordinária região é o Centro... Já não falo da sua riqueza e potencial económico: é no Centro que se encontram indústrias de ponta como a dos plásticos, a biotecnologia, o software. Mas quero falar do turismo. Não é só Fátima, pólo de turismo religioso. E não é só Tomar, Alcobaça e Batalha, todas elas património mundial. É também o excelente património que poderá ser também mundial, sob o patrocínio da UNESCO, como a Universidade de Coimbra (o leitor já viu os “novos” espaços da Biblioteca Joanina, com a exposição sobre a Sociedade Real de Londres, e o Museu de Ciência da Universidade, com a exposição sobre a República?), a mata do Buçaco (não só a agradável floresta, mas também o sítio da batalha do Buçaco, o hotel e o convento onde Wellington pernoitou, há exactamente dois séculos), o centro histórico de Santarém (chamada “capital do gótico”, mas que poderia bem merecer mais o nome do que merece hoje), ou mesmo as singulares pegadas de dinossauros da Pedreira do Galinha, em Ourém (os roteiros referem “Fátima e grutas”, mas poderia bem ser “Fátima e pegadas”).

Estranhamente, os militares que deviam ser os principais aliados do projecto, por este poder fornecer condições acrescidas ao sítio de Monte Real sem prejuízo da actual funcionalidade (não é novidade nenhuma: ao lado da Portela, ao lado das Lages, há aeroportos militares!), não estão na linha da frente desse combate. Consta que um comandante teria dito, num tom um pouco arredado da seriedade castrense, que “Concordaria, se o terminal de passageiros não me ocupasse o gabinete”. Pois eu, se me é permitido, concordo mesmo que o terminal de passageiros lhe ocupe o gabinete. O serviço público devia vir primeiro que o interesse individual. O aeroporto já está feito. Vamos lá fazer o terminal?

Banho-Maria

Em tempos, participei na elaboração de um projecto de um Centro Ciência Viva em Leiria, com o título de com o sugestivo título de “Experimenta!”. Seria na Escola Domingos Sequeira, perto do espectacular castelo. O plano não passou, porém, disso mesmo, um plano, que esteve em banho-maria e que agora, passado tantos anos, já nem sei em que banho está. A Autarquia de Leiria e a Agência Ciência Viva não quererão ressuscitar o projecto? Leiria merece decerto um Centro desses....

Requentado

A crise. Já chega de ouvir falar de crise, uma expressão muito requentada. Em Portugal, a crise económica internacional tem servido de álibi para a crise do país. E a nossa crise é uma “crise mental”, o obstáculo que impede que as melhores ideias, como a do Aeroporto Civil de Monte Real ou a do Centro Ciência Viva de Leiria, se concretizem. A crise é, em larga medida, só nossa, por não termos sido capazes até agora de dar vida a algumas das nossas melhores ideias.

A GUERRA DO DISPRÓSIO


Habitual destaque semanal para a coluna do físico Robert Park:

"DYSPROSIUM WAR: U.S. WILL BREAK CHINA’S RARE-EARTH MONOPOLY.

This is not good news. The 15 lanthanide-series metals, plus scandium and yttrium are not at all rare in the Earth's crust, but they’re widely dispersed and difficult to separate. The magnetic properties of dysprosium in particular make it important to the iphone and to hybrid and electric automobiles. China gained its monopoly of rare-earth metals by cutting prices at the cost of environmental degradation. It's a time-honored path for modernization of an economy, but with its new wealth, China now seeks to improve the environment. That's not easy to do in the rare-earth market; the dust from mining operations is mildly radioactive due to thorium and uranium minerals and the separation process uses enormous amounts of toxic acids. The chief US producer was Molycorp which now plans to reopen to its notorious mine in Mountain Pass, CA, closed in part because of environmental degradation. The company promises to employ a cleaner technology, but mining it is an inherently dirty business."

Robert Park

HUMOR - WIKILEAKS 3

HUMOR - WIKILEAKS 2

HUMOR - WIKILEAKS 1

O BICHINHO DAS BOAS FESTAS

Partilhamos um dos mais originais cartões de boas festas que recebemos:

Portugal tem um novo troglóbio, a nova espécie Litocampa mendesi.

É o primeiro dipluro troglóbio de Portugal, acrescentando uma nova ordem à fauna cavernícola portuguesa e pertence à família Campodeidae. Os dipluros são hexápodes antigos, desprovidos de olhos e de asas, que vivem associados ao solo ou em cavidades. Esta espécie é o representante mais ocidental do género Litocampa na Europa, cuja espécie mais próxima se encontra nas grutas da Cantábria.

Aproveito a ocasião para vos desejar um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!

Sofia Reboleira

domingo, 26 de dezembro de 2010

Para ler em 2011


Sou um incurável fã do John Grant e da sua fabulosa prosa dedicada aos mitos, estórias e momentos menos clarividentes da ciência ou de quem se fez apresentar como cientista. Infelizmente, não há uma única edição em português das suas obras, mas eis os títulos da sua trilogia mais conhecida:
- Discarded Science: Ideas That Seemed Good at the Time
- Corrupted Science: Fraud, Ideology and Politics in Science
- Bogus Science: Ideas That Fool Some of the People All of the Time

O estilo de Grant é cativante, com uma enorme capacidade de explicar o inexplicável e o fraudulento de uma maneira humorística mas factual. Quanto mais não seja, estes 3 volumes são uma amostra de investigação e do trabalho de colecção de cultura científica absolutamente colossal.

A boa notícia é que, em 2011, John Grant volta a atacar com Denying Science: Conspiracy Theories, Media Distortions and the War Against Reality do qual ainda nada se sabe, mas, pelo título e pelo génio do autor, promete ser um dos livros do próximo ano.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Não procures nem creias: tudo é oculto


Natal

Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio, nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.


Este poema de Fernando Pessoa foi escolhido por Eugénio de Andrade para constar na sua Antologia Pessoal de Poesia Portuguesa. O poema inocentemente designado Natal que termina com as desarmantes palavras tantas vezes citadas: Não procures nem creias: tudo é oculto.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Astérix, Obélix e os Romanos – O ensino do Latim em França

Texto da autoria da nossa leitora Maria José Prata, professora na Alemanha. Em época de votos vários, formulo o seguinte: que este texto seja (mais) um contributo para pensarmos na importância da (re)integração) da cultura clássica nos currículos escolares.

As línguas e culturas da Antiguidade Clássica são matéria de estudo no sistema educativo francês. Acabei de ler isso mesmo numa folha informativa.

Lembrando-me das frustradas campanhas bélicas das legiões romanas por terras gaulesas, perguntei-me se existiria alguma relação entre o agrado com que as aventuras de Astérix e Obélix continuam a desfrutar em França e o interesse em ensinar/aprender Latim no país.

Será que o se divulgar humoristicamente, junto das crianças e dos adolescentes, uma cultura estranha e inimiga, porém, no caso da latina, contributo decisivo na formação da França, pode ser uma das formas para se ir despertando nos futuros alunos (e na sociedade) a compreensão pela necessidade de conhecer essa mesma cultura?

Poderá o constante satirizar dos Romanos e das suas tentativas de colonização de toda a Gália - “Toda, não! Uma pequena aldeia gaulesa resiste e resistirá ainda e sempre ao invasor...” - insinuar todavia uma outra leitura? Abandonemo-nos à fantasia... Que língua falariam os franceses e qual seria a cultura francesa, se essa aldeia de invencíveis querreiros gauleses tivesse historicamente dominado e repelido o invasor romano de toda a Gália?

Para além dos conhecimentos reais ou fictícios sobre o mundo dos Romanos que os livros de Uderzo e Goscinny tão divertidamente caricaturaram, o sistema do ensino secundário francês, que engloba as classes do sexto ao nono ano (usando a terminologia portuguesa) da escolaridade obrigatória, chamado Collège, prevê a aprendizagem facultativa do latim desde a sétima, e do grego antigo a partir da oitava classe.

Resta-me perguntar agora que propósitos científicos e pedagógicos tiveram em mente os responsáveis pelas orientações curriculares para o ensino das Línguas e das Culturas da Antiguidade no Collège?

Analisando o preâmbulo do programa de Línguas e Culturas da Antiguidade para o Collège, publicado no Bulletin Officiel n.˚ 31 de 27 de Agosto de 2009 do Ministério da Educação Nacional, deparamo-nos com um vasto leque de razões consistentes, fundamentadas teoricamente. Assim, os seus organizadores invocam que a cultura humanista, através da análise e da interpretação de textos literários clássicos, de géneros variados e provenientes de épocas diferentes, permite ao aluno descobrir directa e pessoalmente a riqueza das ideias originárias da visão do mundo característica do Ocidente, das criações artísticas que a espelham, das formas de organização social e política que a distingue, e apetrecham o aluno com coordenadas que o ajudam a perspectivar e a questionar as representações do mundo que a nossa sociedade de informação lhe fornece a par e passo.

O estudo dos textos clássicos, afirmam os responsáveis pela conceptualização do referido programa escolar, conduz o aluno ao encontro da multiplicidade de formas que a língua francesa deriva do Latim, desenvolvendo o seu léxico e favorecendo “notavelmente” a aprendizagem de línguas estrangeiras, nomeadamente de línguas europeias. Para ler e entender os textos antigos, argumenta-se no referido programa, o aluno precisa de analisar com lógica o funcionamento da língua que estuda. Ele precisa de dominar conhecimentos lexicais e gramaticais da língua a traduzir e da sua; através da imprescindível comparação das duas línguas e na construção progressiva do sentido do texto traduzido, o aluno irá aprimorando os conhecimentos sobre a sua própria língua. A prática orientada e sistemática de leitura e de tradução desenvolverá no aluno competências evolutivas de leitura, de compreensão de textos e de escrita em francês transferíveis para âmbitos multidisciplinares.

A leitura e interpretação de textos literários nos domínios da História, da vida citadina, pública e privada, e das representações do mundo incentivará o aluno a reflectir sobre conceitos sociais e morais e a confrontá-los com os parâmetros que regem o seu pensar e agir social.

O estudo da Antiguidade Clássica, defende-se no programa, contribui para que os jovens conheçam e relacionem as produções artísticas clássicas com as produções posteriores. Contribui pois para que eles identifiquem na diversidade das artes e das culturas as raízes do nosso imaginário colectivo, no qual se funda a cultura europeia que se tem revelado numa prodigalidade de formas artísticas. É a identidade europeia que assim ganha em sentido e profundidade para os jovens cidadãos europeus e neles desenvolve a consciência de pertença a uma História partilhada por uma comunidade de povos, individuais, habitantes de um vasto espaço geográfico e político comum, com decisivas repercussões para cada povo.

Todas estas razões justificativas da presença – se bem que facultativa – das Línguas e Culturas da Antiguidade, do sétimo ao nono ano da escolaridade francesa obrigatória, parecem resultar de um trabalho de estudo e de amadurecimento conceptual que perspectiva o ensino como um meio de transmitir saberes e de desenvolver as aptidões cognitivas dos alunos. Receia-se, porém, ter de assinalar a ausência de reflexões similares e práticas subsequentes junto dos responsáveis pela elaboração curricular do ensino secundário português no respeitante ao ensino das línguas.

Termino com uma conhecida frase da autoria dos heróis gauleses, vertida para o Português, e que o leitor poderá, se quiser, relacionando-a com a realidade do ensino das línguas em Portugal, alterá-la (ou não) como entender: “São doidos estes Romanos!”

Maria José Prata

SOBRE A FUGA DE CÉREBROS

Depoimento em vídeo que prestei ao "Jornal de Negócios": aqui.

DOZE LIVROS DE CIÊNCIA DE 2010

Quase a terminar o ano de 2010 (e com ele a primeira década do novo milénio) é a altura de fazer o balanço anual da edição de livros de ciência em Portugal. Escolhi, com um critério necessariamente pessoal, uma dúzia de livros que ficam da safra editorial deste ano. Sete deles são de autores portugueses. Os temas preferenciais são a astronomia, a física (com destaque para a história desta ciência) e a medicina (principalmente neurologia). Deixo evidentemente de fora o livro que escrevi com Décio Martins “Breve História da Ciência em Portugal”, uma edição conjunta da Imprensa da Universidade de Coimbra e da Gradiva. A ordem é alfabética do nome do autor.

1 - Ivo Alves, “Atlas do Sistema Solar”, Imprensa da Universidade de Coimbra.

Um geofísico da Universidade de Coimbra, que tem estudado a geologia de Marte,é o autor de um interessante atlas do sistema solar, com informação actualizada sobre o nosso sistema planetário e imagens escolhidas dos vastos arquivos da NASA e da ESA. É uma obra de referência para todos os que se interessam por astronomia, numa edição cuidada de uma editora universitária de referência.

2 - João Lobo Antunes, “Egas Moniz. Uma Biografia”, Gradiva.

O Professor de Medicina da Universidade de Lisboa que foi distinguido há uns anos com o prémio “Pessoa” é o autor não “de uma” biografia, mas sim “da” biografia do nosso até agora único Prémio Nobel em Ciências. Fazia falta uma obra como esta, muito bem documentada e extraordinariamente bem escrita, da pena de um especialista nas matérias em que Egas Moniz sobressaiu.

3- Luís Miguel Bernardo, “História da Luz e das Cores”, Vol. 3, Editora da Universidade do Porto.

Um físico da Universidade do Porto especializado em óptica moderna publicou na editora da sua universidade o terceiro e último volume da sua monumental obra sobre a evolução do modo como fomos vendo a luz e as cores. A história do laser, nele incluída, surgiu na altura das comemorações dos 50 anos da invenção do laser.

4 - Rómulo de Carvalho, “Memórias”, Fundação Gulbenkian.

Pouco antes do Natal, a Gulbenkian traz a lume o magnífico volume de memórias do grande poeta, professor de Físico-Química, historiador da ciência e da educação e divulgador de ciência. Este é, sem dúvida, um dos maiores momentos editoriais do ano, por nos permitir compreender melhor um grande personagem do século XX português.

5- Eugénia Cunha, “Como nos Tornámos Humanos”, Imprensa da Universidade de Coimbra.

A antropóloga forense da Universidade de Coimbra traça de modo sumário a evolução do homem num livro de bolso da colecção de bolso “Estado da Arte” da editora da universidade coimbrã, em boa hora ressuscitada depois da extinção no tempo de Salazar.

6 - António Damásio, “O Livro da Consciência”, Temas e Debates.

O médico neurologista português, autor de “O Erro de Descartes”, que é um “estrangeirado” nos Estados Unidos (e, como João Lobo Antunes, Prémio “Pessoa”) fornece um relato actualizado do que é a consciência humana. Imprescindível para todos os que queiram saber o que se sabe sobre o cérebro humano.

7- Galileu Galileu, "Sidereus Nuncius. O Mensageiro das Estrelas", tradução e notas de Henrique Leitão, Fundação Gulbenkian.

No final do Ano Internacional da Astronomia, que pretendeu assinalar os quatrocentos anos das primeiras observações de Galileu realizadas com o telescópio, esta é a primeira tradução em português, realizada a partir do latim original, dos registos dessas primeiras observações. Foi seu autor um dos melhores historiadores portugueses, Henrique Leitão, da Universidade de Lisboa.

8 - Stephen Hawking (coordenação), “Aos Ombros de Gigantes”, Texto Editores.

Num enorme e belo volume, esta é uma colecção de textos clássicos de alguns dos maiores gigantes da Física – Copérnico, Kepler, Galileu, Newton e Einstein - , num volume organizado pelo astrofísico inglês que se tornou famoso com a sua “Breve História do Tempo”. Coordenei a equipa da Universidade de Coimbra que efectuou a tradução para português europeu, feita com a ajuda da tradução em português do Brasil, onde o livro saiu primeiro. Curiosamente, quase na mesma altura a Gulbenkian fez sair uma outra tradução dos “Principia” de Newton aqui também contidos, feita directamente a partir do latim original.

9 - Hubert Reeves, “Já Não Terei Tempo”, Gradiva.

Mais um livro, este de memórias, do conhecido astrofísico canadiano, que com “Um Pouco Mais de Azul” foi o autor de um dos primeiros êxitos de venda da colecção “Ciência Aberta” da Gradiva.. Essa notável colecção aproxima-se, mantendo a qualidade do início, dos duzentos livros. É obra!

10- Silvan Schweber, “Einstein e Oppenheimer. O Significado do Génio”, Bizâncio.

Um historiador de ciência norte-americano traça perfis paralelo de dois dos maiores génios da física do século XX. Os dois eram judeus e estiveram ligados, de uma maneira ou de outra, ao projecto que conduziu à primeira bomba atómica. Mas o seu génio excede em muito essa ligação.

11 - Manuel Sobrinho Simões, “Genes, Célula, Ciência e Homem“, Verbo.

O Professor de Medicina da Universidade do Porto e também Prémio “Pessoa” reuniu aqui alguns dos seus textos e entrevistas que dão conta não só do seu pensamento original mas também do seu notável poder de comunicação.

12- Simon Singh, "Big Bang. A descoberta científica mais importante de todos os tempos e porque precisa de a conhecer", Gradiva.

Um conhecido autor de livros de divulgação de ciência apresenta um relato pormenorizado e actualizado do modelo do Big Bang, que triunfou na cosmologia e na astronomia, num outro volume da colecção “Ciência Aberta”.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Ladainha dos Póstumos Natais

Ladainha dos Póstumos Natais, poema de David Mourão-Ferreira recentemente escolhido pelo classicista e também poeta José Ribeiro Ferreira para integrar a antologia que organizou - Dois poetas e um Natal - e para a dizer, porque a poesia é (também) para ser dita.

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito


Cancioneiro de Natal in Obra Poética, 1996, páginas 244-245.

O que pode ser aperfeiçoado na educação

O leitor João Viegas pergunta, em comentário, se no extracto que seleccionei da recente entrevista a David Justino, a propósito da publicação do seu livro Difícil é educá-los, não terei omitido referências feitas pelo ex-Ministro da Educação (1) ao que está bem na educação e (2) ao que pode ser aperfeiçoado nesta área.

Considerando que se trata de uma entrevista muito completa de alguém que conhece o cenário educativo do ponto de vista da investigação e da política, voltei ao texto, fazendo, agora, uma análise do seu conteúdo em função dos dois aspectos enunciados pelo nosso leitor.

O que está bem na educação

David Justino destaca, em vários pontos o...

... PROGRESSO NA VERTENTE DA QUANTIDADE: há sem dúvida "mais pessoas com acesso à educação e simultaneamente com grau de sucesso”, existe "mais escolarização, mais escolas e mais professores".

O que pode ser aperfeiçoado na educação

Neste aspecto, David Justino alarga muito mais as suas considerações, destacando diversas ideias, que organizei em seis alíneas.

1) O DEBATE SOBRE A EDUCAÇÃO DEVE SER MUDADO, dado que:
- SE CENTRA EM QUESTÕES ACESSÓRIAS e eventualmente relevantes a curto prazo, deixando à margem questões essenciais a médio e longo prazo;
- REPRODUZ IDEIAS ANTIGAS, sendo que algumas delas se reduzem a estereótipos;
- ACONTECE MUITO NA LÓGICA DA INSATISFAÇÃO, dificultando a apreciação serena de novas propostas.

2) A LÓGICA DESSE DEBATE TAMBÉM DEVE SER ALTERADA, pois a “lógica do confronto" obscurece a "lógica da reflexão conjunta e construtiva". Na verdade, "a educação é uma espécie de constante campo de batalha onde as opiniões não fundamentadas se sobrepõem à investigação e à análise concreta".

3) ESSE DEBATE DEVE CENTRAR-SE NO TIPO DE EDUCAÇÃO que “capacite e prepare as novas gerações para os problemas do futuro”, problemas que a sociedade levanta em termos tecnológicos e culturais. É preciso, nomeadamente discutir como se deve educá-las para a sociedade do conhecimento, para saberem pensar e reflectir a partir de conhecimentos acumulados, que não é uma biblioteca fechada. Isto é tanto mais verdade se pensarmos que “vivemos numa ilusão tecnológica. O computador é como um livro. Mas o computador só dá respostas se eu fizer as perguntas adequadas”.

4) NESSE DEBATE NÃO SE PODE ESQUECER A EQUIDADE, QUE NÃO ESTÁ ASSEGURADA. Efectivamente, “os critérios tradicionais de selecção foram substituídos por outros, menos visíveis… os resultados demonstram que o sistema de ensino é muito selectivo e fica aquém do desejável, que é alcançar a escolaridade obrigatória de 12 anos”. Urge desenvolver um sério esforço neste domínio, pois “o melhor antídoto para as desigualdades e a pobreza é haver mais e melhor educação”.

5) NESSE DEBATE É PRECISO DAR ATENÇÃO À QUALIDADE, pois, progredimos em termos de quantidade, mas esse progresso não foi tão rápido quanto seria de desejar. Por outro lado, "a quantidade de educação não acompanhou a qualidade daquilo que é ensinado".

6) NESSE DEBATE É PRECISO SER-SE REALISTA, dado que, "os estudos internacionais revelaram que Portugal se mantém numa posição modesta. Nomeadamente nos testes internacionais feitos pela OCDE permanecemos teimosamente na retaguarda”. “Há países no mundo que já ultrapassámos no que diz respeito à adaptação, à rapidez de mudança, mas em relação a outros ainda estamos muito atrás”.

A terminar,
destaco uma ideia mobilizadora de David Justino: O SISTEMA EDUCATIVO TEM DE RECUPERAR, mas aqui “não há milagres”. "O trabalho tem de ser feito com tempo e persistência”.

Spinoffs

A NASA acaba de anunciar a publicação anual de estórias do sucesso da aplicação e investigação espacial na indústria e como essas aplicações podem ser apreciadas no nosso quotidiano, no presente ou num futuro próximo. Trata-se do Spinoff 2010, um documento precioso para quem (ainda) precisa de justificar o investimento em C&T. Pode ser adquirido gratuitamente, via download, aqui.

ECLIPSE LUNAR TOTAL NO SOLSTÍCIO DE INVERNO

O valor do conhecimento.

Mais um extraordinário contributo do Carlos Oliveira, do blog AstroPT, para a compreensão, apreensão e valorização do conhecimento, em particular o conhecimento científico. Além disso, fornece uma reflexão interessante sobre o valor monetário do acto de divulgar Ciência. Está escrito em forma de desabafo, mas a minha cumplicidade com a emoção e razão do Carlos é total.

(...) a marca “ciência” deveria ter um valor enorme. No entanto, o que se passa é o contrário. A marca “ciência” e a marca “conhecimento”, nada valem para as pessoas. Quem se aproveita desta mentalidade de “qualidade paga-se” são os "pseudos" e os os auto-denominados "famosos".

A vergonha do BPN


Há cerca de 1 ano publiquei aqui este post: Desemprego ZERO!
O estado tinha nacionalizado o BPN e a coisa resumia-se a pouco mais de mil milhões de euros, incorporando o BPN na CGD e tentando tapar o sol com a peneira.

Muitos dos "economistas" e "filósofos" do regime por aqui andaram a justificar a coisa. Era um risco sistémico, o estado só estava a prestar um aval, não havia perdas para os contribuintes... havia até um dos leitores/comentadores que dizia que se calhar com isto o estado até ia ganhar dinheiro, e que a CGD ao incorporar o BPN tinha assumido as dívidas mas também ficava com os activos. Ou seja, poderia vir a ser um bom negócio.

Enfim... foi o que se viu. A factura que era de 1.3 mil milhões de euros em Janeiro de 2009, está já em 5 MIL MILHÕES DE EUROS: ou seja, os "ganhos" foram de -3.7 mil milhões de euros, e o banco não vale três reis de mel coado (ninguém lhe pegou na privatização que foi tentada pelo governo). O caso BPN é, como era fácil de ver, um CASO DE POLÍCIA que nada tem a ver com a crise financeira internacional, mas sim com roubo e actividade fraudulenta: um crime nojento.

Para terem uma ideia do descalabro, 5 mil milhões de euros é o que o nosso PM José Sócrates quer injectar na economia nacional para fazer com que ela recupere da "maior crise dos últimos 80 anos", ou a "maior crise das nossas vidas", como costuma dizer nos seus discursos cheios de VAZIO.

Sinceramente, não podem ser os contribuintes a pagar. E o que se espera do governo é que identifique estes casos e actue na defesa dos interesses de todos, e não só de alguns. E seja competente. Fazer o que é óbvio qualquer um é capaz. Colocar os contribuintes a pagar as fraudes cometidas por por estes senhores é INACEITÁVEL.

Difícil é educá-los

Parafraseando o título dum livro de entrevistas - Dífícil é sentá-los - a Marçal Grilo, ex-Ministro da Educação, David Justino também o ex-Ministro da Educação (2002-2004), publicou recentemente um livro intitulado Difícil é educá-los, que se apresenta como o 5.º volume da Colecção Ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Num jornal de distribuição gratuita - Ensino Magazine - do presente mês de Dezembro, apresenta-se uma longa entrevista de Nuno Dias da Silva com o título Não há visão de futuro para a educação em Portugal. Reproduzo algumas passagens dessa entrevista que considero particularmente interessantes pelo facto de traduzirem o pensamente de alguém que teve responsabilidades na pasta da Educação.

"E.M: Depois de citar textos de Oliveira Martins sobre o «estado da Educação», publicados em 1988, diz que temos problemas com um século

D.J: Exitem duas perspectivas: ou os problemas têm um século ou aforma como eles são encarados é que tem um século. Ou seja, o discurso sobre educação tende a reproduzir estereótipos e alguns deles têm mais de cem anos. Quando citei Oliveira Martins era para chamar a atenção que o discurso utilizado no David Justino XIX, em alguns aspectos, não mudou nada. Insiste-se muito no registo da insatisfação, mas as críticas não são necessariamente fundamentadas. Hoje toda a gente discute educação como quem discute futebol. Na verdade, não discutem, porque falam sem saber. As pessoas não estudam, não analisam e reproduzem o que lêem nos jornais e ouvem na televisão. Seria preciso debater sobre dados concretos e o meu ensaio é um contributo pedagógico para isso, procurando transmitir que certos problemas só se resolvem num contexto mais alargado, distanciado da agitação do dia-a-dia.

E.M: O mediatismo em torno do sector tem prejudicado a resolução dos problemas mais prementes?

D.J.: A educação está há demasiado tempo no topo da actualidade. Desde meados da década de 90 que a educação é uma espécie de constante campo de batalha. Vivemos numa sociedade de «achistas», em que as pessoas preferem achar a pensar e que reflecte o nível de escolarização que existe em Portugal. Não existem hábitos de reflexão e análise sobre os problemas, preferindo-se enveredar pela lógica do confronto. O problema é que andamos há 15 anos a porfiar sobre temas que em nada resolvem os problemas da educação. A opinião pública entretém-se a chafurdar naquilo que é acessório, ao sabor das notícias dos jornais, e dos casos da professora que tirou o tememóvel à aluna, do bullying, etc. Muitas das pessoas que hoje falam mal da novas gerações porventura já se esqueceram do que é que eram.

E.M: Está a referir-se ao termo «geração rasca»?

D.J.: Esse é um termo injusto, datado de meados da década de 90, porque nessa altura a maior parte das pessoas era menos escolarizada do que é hoje. Como é que uma geração, como muitos analfabetos, tem a ousadia de criticar uma geração bem mais informação e com uma nova perspectiva? Insurjo-me muito contra essa frase feita de «que no meu tempo é que era»... Quando eu era aluno, a maior parte da população era analfabeta. As pessoas esquecem-se disso...

E.M: A lógica instalada do «diz-se que diz-se» mina a coesão social?

D.J.: O país precisa de assumir colectivamente um atitude construtiva e o ponto de partida é definir claramente o que é que sabemos. O problema é que as pessoas não sabem o que é que querem da educação. Mesmo os que têm responsabilidades políticas estão de tal forma enredadas na teia mediática que se esquecem de resolver os problemas de médio e longo prazo, limitando-se a apagar os «fogos» que vão aparecendo todos os dias. Muitas políticas são introduzidas a reboque das manchetes dos jornais.

E.M: Onde fica a visão de futuro com esta exclusiva gestão do dia-a-dia?

D.J.: Não existe. Devíamos estar preocupados com o tipo de educação que vai ter uma criança que entra agora no jardim de infância nos próximos 15 ou 20 anos. Alguém fala disso? Este país consome-se no curto prazo, e a educação não foge a essa vertingem e não conseguiremos progredir sem uma visão de longo prazo."

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

IOGURTEGATE


A Danone acordou pagar 21 milhões de dolares no âmbito de acordo com os reguladores norte-americanos, por causa do "activia challenge", uma charlatanice pseudo-científica que consiste em convidar pessoas (jornalistas, de preferência) a comer iogurtes num hotel de luxo durante quinze dias e a olhar para as próprias fezes, para concluir que o activia "regula o trânsito intestinal" ou que cura uma treta qualquer que passa sozinha.

A Danone reconheceu ainda no âmbito do acordo que não há qualquer evidência que os iogurtes com pro-bióticos façam aquilo que eles dizem que fazem. Não sem acrescentar que "milhões de pessoas acreditam firmemente nos benefícios para a saúde dos iogurtes da danone" e que lhes vão continuar a vender iogurtes.

Não sei quantos iogurtes são 21 milhões de dolares, mas dá-me ideia que isto não afecta o trânsito intestinal dos marketeers da Danone.

Depois dos Deuses e de Deus… naturalmente,o hipermercado.

Neste época de Natal, surgiu um anúncio publicitário curiosíssimo duma cadeia de lojas de hipermercado. Descrevo-o aqui segundo a recordação com que dele fiquei.

Uma "voz" interroga um(a) consumidor(a) anónimo(a), sobre o seu comportamento durante o ano. Com um olhar entre o incrédulo e o desorientado, este(a) move-se em redor à procura de quem pergunta. Prontamente vários sujeitos com aspecto humano surgem (do nada?) e o(a) consumidor(a) anónimo(a), confessa, prontamente, que cometeu um pecadilho.

Por sua vez, os sujeitos com aspecto humano (que se assemelham a júris de concursos televisivos, mas com aspecto mais austero), complacentes, listam boas acções do(a) consumidor(a) que superam o pecadilho quotidiano, concedem-lhe uma auréola, que o(a) faz transcender a condição humana, e permitem-lhes… comprar.

Comprar: eis o prémio de quem denuncia o Mal e faz o Bem! A alegria das alegrias!

Como ocidentais, penso que não podemos deixar de estabelecer um paralelismo entre estes sujeito(s) com aspecto humano e os deuses gregos olhando, lá de cima, do Olimpo para os mortais, cá em baixo, ora escarnecendo, ora cuidando, ora esperando o momento de intervir. Ou com o Deus dos Católicos, olhando também lá de cima, do Céu, para os que foram feitos à Sua Imagem, mas que, cá por baixo, desenvolveram a tendência para se desviarem da orientação divina.

Enquanto numa lógica teísta o nosso comportamento é hetero e auto-regulado para ascender à Eterna Felicidade, que há-de surgir num futuro mais ou menos distante, mas incerto; numa lógica publicitária, o nosso comportamento é directamente regulado por alguém desconhecido que, num instante, sem delongas e com toda a certeza, permite-nos ter o que (mais) desejamos.

A dúvida não pode, pois, deixar de se instalar em qualquer um: não valerá mais ter paraísos terrenos, concretos, de acesso imediato, do que paraísos celestes contingentes e adiados? Na dúvida, é de aproveitar os que temos, tão à nossa mão, num hipermercado perto de nós.

LITERATURA COM GATOS - I


Uma viagem sentimental do académico e ensaísta Eugénio Lisboa pelo mundo da sua paixão pelos gatos e idêntico sentimento traduzido em páginas de literatos consagrados:

À memória da Generala Alexandrovna Ivanovna
Petrovska Ivinskaia, do Jim, do Jules e, ainda, à
Secotine, felizmente viva e incrivelmente activa.

Diz quem sabe que os gatos apareceram no nosso planeta, há cerca de sete milhões de anos. Apareceram e, de então para cá, quase nada mudaram, na sua constituição, porte e funcionamento. Este “mínimo tigre de salão”, como lhe chamava Neruda, numa das suas belas odes, apareceu para ficar, durar e fascinar – ainda hoje, tal como no primeiro dia. Veio logo com formato definitivo, marimbando-se para a lei da evolução, que só dá para se aplicar aos outros animais.
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Por isso alguém disse, com um acinte que apetece aplaudir: com o gato, Deus acertou à primeira. O gato veio perfeito e assim tem permanecido. Quando a Igreja Católica quis arranjar argumentos para uma briga com Darwin, esqueceu-se do gato, isto é, desperdiçou o único argumento decente que tinha à mão: porque, se o homem descende, inconvenientemente, do macaco, o gato descende apenas do gato, sem qualquer intermediário que lhe obscureça o trajecto.

Tenho toda uma biblioteca consagrada ao gato (felideoteca?) e nela colho, diariamente, renovadas e acrescentadas razões de apreço e de afecto pelo elegante felino (sem falar, é claro, nas aulas práticas com a Secotine). O gato é, obviamente, o animal superior da criação. Concordo inteiramente com Mark Twain – de quem o Nobel, como é seu costume, se esqueceu – quando diz que, se o homem se cruzasse com o gato, melhoraria o homem, mas deteriorar-se-ia o gato. O gato tem sido consagrado e até venerado por tudo quanto é gente de gabarito. A minha felideoteca que o diga! Numa das duas edições da Enciclopédia Britânica, que possuo, pode ler-se isto, que ponho à vossa consideração: “A personalidade independente do gato, combinada com a sua graciosidade, limpeza e com os seus subtis sinais de afecto, são traços que têm um vasto apelo”. Ogden Nash, o celebrado autor de poesia humorística, dizia, num dos seus poemas, que o problema com os gatinhos era eles tornarem-se, eventualmente, gatos. Esta afirmação prova, entre outras coisas, que Nash nada percebia de gatos, caso contrário, saberia que, para um verdadeiro amante de gatos, um gato é eternamente um gatinho.

Nash, felizmente, é excepção. Os amantes de gatos são legião, se exceptuarmos algumas criaturas execráveis, que a história regista: Júlio César, que tinha horror a felinos e morreu assassinado (justiça transcendente?), os papas (três!) Gregório IX, Inocêncio VII e InocêncioVIII, a Raínha Elizabeth I (bem feito, morreu virgem!), o imortal bardo de Stratford, que congeminou o Hamlet, mas sempre se referiu maldosamente ao mais gracioso animal da criação, o Rei-Sol, Luís XIV, que dançava à volta de gatos que mandava lançar à fogueira, Napoleão Bonaparte, o compositor Johannes Brahms, que se entretinha a disparar setas contra os bichos indefesos, a dançarina e coreógrafa Isadora Duncan, e, por fim, o general Eisenhower, que proibiu gatos na Casa Branca, enquanto presidente – tudo gente horrível, mal disposta e, no fundo, sem o mais pequeno sentido estético. Mas estes são a triste excepção e, como muitos dos amantes do Felis Catus são ficcionistas e poetas, não se cansam de incluir o gato nos seus romances e contos, como protagonista de relevo, ou de o cantar e exaltar, nos seus poemas: Victor Hugo, Balzac, Théophile Gautier, Perrault, Alexandre Dumas, Colette, Thomas Hardy, Kipling, Mark Twain, Lewis Carroll, La Fontaine, Swinburne, Shelley, Keats, Edward Lear, Matthew Arnold, Jonathan Swift, Oscar Wilde, Zola, Arnold Bennett, Anatole France, Ford Madox Ford, Emily Dickinson, Petrarca, Yeats, Pierre Loti, Jean Cocteau, Simenon, P. G. Wodehouse, Ernest Hemingway, Saki, Walter de La Mare, Louis Macneice, T. S. Eliot, Don Marquis, Ted Hughes, Ambrose Bierce, Stevie Smith, Patricia Highsmith, A.L. Rowse, Eça de Queirós, Miguel Torga prestaram homenagem, nas suas prosas e nos seus versos, ao inimitável Catus.
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De todos eles, tenho testemunhos cintilantes em livros e antologias. Baudelaire tinha pelo “mínimo tigre de salão” uma verdadeira paixão: quando ia a casa de algum amigo, mostrava-se extremamente nervoso, enquanto lhe não aparecia o gato da casa; quando este, finalmente, se dignava aparecer, o poeta pegava-lhe, acariciava-o, beijava-o, falava-lhe, inteiramente esquecido dos donos da casa a quem mal ou distraidamente respondia. A sua empatia e quase identificação com os felinos era tão grande, que alguém descreveu o poeta das Flores do Mal como “um gato voluptuoso e blandicioso, com as suas maneiras aveludadas.”

O compositor russo Borodine vivia literalmente rodeado de gatos, a quem dava todas as liberdades. Com visitas em casa, os bichos saltavam para cima da mesa do jantar, sem que ao músico passasse pela cabeça enxotá-los. A romancista Colette, universalmente admirada por tudo quanto tinha nome de escritor, viajava com os seus gatos e levava-os para os hotéis onde, ocasionalmente, se aboletava. E escreveu um romance, ainda hoje famoso, La Chatte, no qual, em luta com uma mulher, pelo amor de um homem, a gata vence. Ao seu magnífico gato angorá, Victor Hugo deu o nome de Gavroche, o pequeno herói das barricadas, do romance Les Misérables. Foi sua grande e fiel companhia, durante o prolongado exílio na ilha de Guernesey, mas não teve o destino grandiosamente trágico do pequeno Gavroche: envelheceu, engordou e amolengou-se, passando a chamar-se “O cónego” (Le Chanoine). Hemingway, o homem das grandes caçadas africanas e da pesca graúda em Havana, vivia , na sua Finca La Vigia, em Cuba, rodeado, não de canzarrães temíveis, mas sim de gatinhos a granel (chegou a ter trinta e quatro).
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romance For whom The Bells Toll foi escrito numa secretária atapetada de gatos ciosos (como é conhecido o ciúme que os felinos têm do papel em que escrevemos, presume-se que o romance deva ter levado, a ser escrito, o dobro do tempo que levaria... sem gatos!) Mark Twain era de opinião que uma casa sem gatos devidamente apaparicados não era uma casa digna desse nome. Mas, aos bichos, gostava de dar nomes arrebicados: Apollinaris, Zoroastro, Blatherskite (Parlapatão), ou Sour Mash (Mixórdia Azeda): tudo maneiras de lhes exprimir o seu carinho. De resto, Eliot, num poema cuja tradução dediquei à generala a quem agora co-dedico este texto, explicava que os gatos precisam de ter nomes invulgares e improváveis, sem o que não conseguem manter a cauda perpendicular (ele queria dizer, é claro, “vertical” e não “perpendicular”, mas, por um lado, não percebia nada de geometria nem de Física, por outro, a palavra “perpendicular” é mais longa e aparatosa). Mark Twain não tinha lido Eliot, mas chegara à mesma conclusão por simples intuição e por ter, com os gatos, longas e amigas conversas.
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Quando se gosta destes sábios felinos, eles tomam, por completo, conta de nós, até porque sabem muito bem que o homem foi feito para servir o gato. Tanto que Evelyn Underhill não se pejava de confessar: “Acaba de me ser dado um gatinho persa extremamente sedutor ... e ele é de opinião que eu lhe fui dada a ele.”

Esta crónica vai longa, mas se o leitor pensa que a matéria – literatura com gatos – está esgotada, anda muito enganado. O tema é inesgotável e, por isso, voltarei a ele.


Eugénio Lisboa