terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Conto de amor e psique

Nota de apresentação que escrevi (Delfim Leão) para a tradução que fiz do Conto de Amor e Psique, de Apuleio, editada pela Cotovia:

"A parte central do romance latino O burro de ouro, de Apuleio, é ocupada pelo justamente célebre Conto de Amor e Psique, que tem sido alvo de imensas interpretações, a começar pela leitura alegórica do conto enquanto manifestação da vontade imensa, própria da ‘alma’ humana (Psique), de atingir a dimensão divina e a realização de um amor sublime. Esta e outras abordagens são de facto possíveis e expressivas da riqueza de análise que acompanha O burro de ouro.

No entanto, esta longa digressão, cuja estratégia narrativa assenta na estrutura básica do conto popular de fadas, possui igualmente uma pertinência directa para a situação que Lúcio (o protagonista de O burro de ouro, entretanto transformado em asno por causa de um mau uso das artes mágicas) está a viver e, por conseguinte, para a economia global do romance. Pesem embora as diferenças de pormenor, tanto Psique como Lúcio acabam por seguir um trajecto idêntico: vivem experiências extremas motivadas por uma curiositas excessiva, até que, já no limiar da morte, são resgatados por intervenção divina para uma existência superior.

Psique junta­‑se finalmente e de forma legítima ao Amor, depois de um processo de apoteose; Lúcio conseguirá livrar­‑se do aspecto asinino, por graça de Ísis, em cujos mistérios será iniciado, ficando ao serviço da deusa. A bella fabella constitui, pois,uma promessa de libertação, mas Lúcio apreende somente a beleza do relato, pois nele (como de resto em Psique) a recompensa final decorre de um processo de maturação alcançado apenas no termo de um esforçado trajecto de aprendizagem."

E uma breve passagem (5.21.5-23.6), que considero ser das mais belas páginas da literatura latina. Nela se relata o momento em que, convencida de que o marido desconhecido é um monstro, a jovem Psique descobre, extasiada, o Amor – para logo em seguida o perder.
“21.5. Chegara a noite, chegara também o esposo e, depois de travadas as primeiras escaramuças amorosas, ele mergulha em sono profundo. 22.1. Então Psique, debilitada embora de corpo e espírito, apoia-se na crueza do destino, enche-se de forças, empunha a lucerna e pega na navalha, transformando em audácia a debilidade própria do sexo feminino. 2. Porém, quando aproxima a luz e lança a claridade sobre os segredos do leito, deparou com a mais encantadora e doce de todas as feras selvagens: Cupido em pessoa, o formoso deus, que repousava num quadro repleto de formosura! Perante esta visão, a luz da lucerna avivou-se com alegria e a navalha pôs-se a maldizer o fio sacrílego. 3. Quanto a Psique, ao ser sacudida por um tal espectáculo, perde o domínio de si. Vencida por uma lânguida palidez, tremebunda, sente os joelhos a ceder e tenta ocultar a arma, mas desta vez no próprio peito. 4. E não há dúvida de que o teria feito, se o ferro, assustado com a perspectiva de tamanho crime, se não houvesse escapado, ao deslizar das temerárias mãos. Esgotada já e sem esperança de salvação, recuperou no entanto a presença de espírito, ao remirar uma e outra vez a beleza do rosto divino. 5. Contempla uma nobre cabeleira num vulto de ouro e embebida em ambrósia, um colo de leitosa alvura, umas faces rosadas, uns anéis de cabelo esparzidos e harmoniosamente enredados, ora a pender para a frente ora para trás, cujo brilho era de tal maneira fulgurante que fazia vacilar a própria luz da lucerna. 6. Pelos ombros do deus alado, resplandecia uma penugem, com a candura das flores cintilantes, bafejadas pelo orvalho. E embora as asas estivessem em repouso, a fofinha e delicada plumagem das pontas bulia, sem parar, em caprichoso estremecimento. 7. O restante corpo era tão macio e brilhante que nem a própria Vénus se podia envergonhar de o haver trazido ao mundo. Aos pés do leito, jaziam arco, aljava e flechas, propícias armas do poderoso deus. 23.1. Cheia de curiosidade, Psique não saciou o espírito enquanto não se pôs a examinar, ver e admirar as armas do marido, a ponto de retirar da aljava uma flecha. 2. Ao experimentar a ponta no polegar, apertou com demasiada força o dedo ainda trémulo, de forma que, à superfície da pele, afloraram umas gotitas de róseo sangue.3. E assim aconteceu que, espontaneamente e sem dar conta disso, Psique ficou presa de amores pelo próprio Amor. Então, sente crescer em si cada vez mais a chama do desejo pelo deus do desejo; debruça-se sobre ele, ofegante de paixão, e recobre-o avidamente de largos e intensos beijos, receosa embora de lhe encurtar o sono. 4. Porém, enquanto continuava, de ânimo desfalecido, irresoluta e absorvida por tamanho gozo, a tal lucerna — fosse por extrema perfídia, por maliciosa inveja ou então pela impaciência de tocar ela mesma e de certa forma beijar um corpo assim tão belo — deixou cair da ponta luminosa um salpico de azeite a ferver sobre o ombro direito do deus. 5. Ah lucerna audaciosa e temerária, vil serviçal do amor! Vais queimar o próprio senhor de todo o fogo, quando foi pela certa um amante quem pela primeira vez te inventou, a fim de possuir durante mais tempo e noite dentro o objecto de seus desejos! 6. Mal sentiu a queimadela, o deus levantou-se de um salto e, ao compreender que a sua confiança havia sido traída e enxovalhada, apartou-se dos beijos e abraços da sua desgraçada esposa, fugindo a voar, sem nada lhe dizer.”
Delfim F. Leão

1 comentário:

Anónimo disse...

Burros?... Nem de ouro! JCN

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