As línguas e culturas da Antiguidade Clássica são matéria de estudo no sistema educativo francês. Acabei de ler isso mesmo numa folha informativa.
Lembrando-me das frustradas campanhas bélicas das legiões romanas por terras gaulesas, perguntei-me se existiria alguma relação entre o agrado com que as aventuras de Astérix e Obélix continuam a desfrutar em França e o interesse em ensinar/aprender Latim no país.
Será que o se divulgar humoristicamente, junto das crianças e dos adolescentes, uma cultura estranha e inimiga, porém, no caso da latina, contributo decisivo na formação da França, pode ser uma das formas para se ir despertando nos futuros alunos (e na sociedade) a compreensão pela necessidade de conhecer essa mesma cultura?
Poderá o constante satirizar dos Romanos e das suas tentativas de colonização de toda a Gália - “Toda, não! Uma pequena aldeia gaulesa resiste e resistirá ainda e sempre ao invasor...” - insinuar todavia uma outra leitura? Abandonemo-nos à fantasia... Que língua falariam os franceses e qual seria a cultura francesa, se essa aldeia de invencíveis querreiros gauleses tivesse historicamente dominado e repelido o invasor romano de toda a Gália?
Para além dos conhecimentos reais ou fictícios sobre o mundo dos Romanos que os livros de Uderzo e Goscinny tão divertidamente caricaturaram, o sistema do ensino secundário francês, que engloba as classes do sexto ao nono ano (usando a terminologia portuguesa) da escolaridade obrigatória, chamado Collège, prevê a aprendizagem facultativa do latim desde a sétima, e do grego antigo a partir da oitava classe.
Resta-me perguntar agora que propósitos científicos e pedagógicos tiveram em mente os responsáveis pelas orientações curriculares para o ensino das Línguas e das Culturas da Antiguidade no Collège?
Analisando o preâmbulo do programa de Línguas e Culturas da Antiguidade para o Collège, publicado no Bulletin Officiel n.˚ 31 de 27 de Agosto de 2009 do Ministério da Educação Nacional, deparamo-nos com um vasto leque de razões consistentes, fundamentadas teoricamente. Assim, os seus organizadores invocam que a cultura humanista, através da análise e da interpretação de textos literários clássicos, de géneros variados e provenientes de épocas diferentes, permite ao aluno descobrir directa e pessoalmente a riqueza das ideias originárias da visão do mundo característica do Ocidente, das criações artísticas que a espelham, das formas de organização social e política que a distingue, e apetrecham o aluno com coordenadas que o ajudam a perspectivar e a questionar as representações do mundo que a nossa sociedade de informação lhe fornece a par e passo.
O estudo dos textos clássicos, afirmam os responsáveis pela conceptualização do referido programa escolar, conduz o aluno ao encontro da multiplicidade de formas que a língua francesa deriva do Latim, desenvolvendo o seu léxico e favorecendo “notavelmente” a aprendizagem de línguas estrangeiras, nomeadamente de línguas europeias. Para ler e entender os textos antigos, argumenta-se no referido programa, o aluno precisa de analisar com lógica o funcionamento da língua que estuda. Ele precisa de dominar conhecimentos lexicais e gramaticais da língua a traduzir e da sua; através da imprescindível comparação das duas línguas e na construção progressiva do sentido do texto traduzido, o aluno irá aprimorando os conhecimentos sobre a sua própria língua. A prática orientada e sistemática de leitura e de tradução desenvolverá no aluno competências evolutivas de leitura, de compreensão de textos e de escrita em francês transferíveis para âmbitos multidisciplinares.
A leitura e interpretação de textos literários nos domínios da História, da vida citadina, pública e privada, e das representações do mundo incentivará o aluno a reflectir sobre conceitos sociais e morais e a confrontá-los com os parâmetros que regem o seu pensar e agir social.
O estudo da Antiguidade Clássica, defende-se no programa, contribui para que os jovens conheçam e relacionem as produções artísticas clássicas com as produções posteriores. Contribui pois para que eles identifiquem na diversidade das artes e das culturas as raízes do nosso imaginário colectivo, no qual se funda a cultura europeia que se tem revelado numa prodigalidade de formas artísticas. É a identidade europeia que assim ganha em sentido e profundidade para os jovens cidadãos europeus e neles desenvolve a consciência de pertença a uma História partilhada por uma comunidade de povos, individuais, habitantes de um vasto espaço geográfico e político comum, com decisivas repercussões para cada povo.
Todas estas razões justificativas da presença – se bem que facultativa – das Línguas e Culturas da Antiguidade, do sétimo ao nono ano da escolaridade francesa obrigatória, parecem resultar de um trabalho de estudo e de amadurecimento conceptual que perspectiva o ensino como um meio de transmitir saberes e de desenvolver as aptidões cognitivas dos alunos. Receia-se, porém, ter de assinalar a ausência de reflexões similares e práticas subsequentes junto dos responsáveis pela elaboração curricular do ensino secundário português no respeitante ao ensino das línguas.
Termino com uma conhecida frase da autoria dos heróis gauleses, vertida para o Português, e que o leitor poderá, se quiser, relacionando-a com a realidade do ensino das línguas em Portugal, alterá-la (ou não) como entender: “São doidos estes Romanos!”
12 comentários:
Acrescente-se que, precisamente por initiativa de uma equipa de professores de latim empenhada em facilitar a aprendizagem da sua matéria, e com uma muito boa dose de humor (o que nunca fica mal ao lado da competência), muitos livros das aventuras de Asterix encontram-se... traduzidos em latim !!!
Delirant isti Romani !
João Viegas
Em Portugal teem outras prioridades. Deve ser por isso que estamos cada vez mais longe dos países desenvolvidos.
Se tivéssemos sido mais romanizados, seríamos hoje... mais europeus. Assim, vamos na carruagem da cauda... sob o signo do humanoidismo vigente. Nem o latim nos salva. JCN
Caro JCN
Não foi possível a romanização da Lusitânia porque, quando Júlio César andou por estas terras, declarou que os lusitanos não sabiam governar nem se deixavam governar.
Como esta declaração ocorreu em 69 a.C, quando foi nomeador Questor, e como a lapidar frase de Júlio César se enquadra na Lusitânia actual, temos forçosamente de nos considerarmos fieis aos nossos princípios seculares, porque continuamos a não saber governar nem queremos que a Alemanha, a Roma actual, nos governe.
Considerando ainda que César, "para conquistar a simpatia do partido democrático, distribuiu terras aos Consulado veteranos de Pompeu", ao menos esse eloquente prodígio de motivação política conseguiu entrar nos hábitos lusitanos.
Mas, como ninguém deseja terras, porque dão muito trabalho para obter qualquer produto, substituíram-nas por instituições criadas que, além de rendosas, não dão trabalho nenhum e atribuem altos prémios por esse facto.
A única alteração na inovação foi dar as instituições aos do próprio partido e não ao partido alheio, o que seria uma blasfémia.
A este propósito, e embora seja apologista do latim no ensino, não resisto em dar à estampa a notícia de que foi editada a obra “À bas le latin !”, do professor de latim – imagine-se – Régis Messac, em 27.08.2010, segundo notícia do sítio Société des amis de Régis Messac.
Estamos na área dos prós e contras, como meditação ponderada sobre o tema.
o Latim é muito bom para organizar a mente e aprender a preparar trabalho. pois é. tal e como a matemática. e a preparação do trabalho , na cabeça , nem lhe passa como aumenta a produtividade. uma poupança de gestos e de recursos significativa.
ter que organizar um texto de latim , descobrir onde pára o sujeito ( se calhar no parágrafo seguinte ), para o traduzir é um exercício que ultrapassa a mais valia da aprendizagem dos antecedentes de uma língua.
o grego nem por isso : tem artigos.
Meu caro Dr. João Boaventura:
Olhe que foi à conta de os lusitanos não saberem governar nem governar-se que Júlio César bem se governou: ontem como hoje! Há sempre quem se aproveite! JCN
Quanto às vantagens do conhecimento do lati, não vale a pena... discutir a evidência! Só a não vê... quem descende da primigénia bactéria sem fósforo. Não lhe parece? JCN
Se hoje nem Português se ensina nas escolas, quanto mais o latim...
Dada a nossa incompetência,
de tradição já paterna,
para tratar da existência,
muita gente se governa!
JCN
Só dei Latim no secundário uma vez, há muitos anos. A mais valia da aprendizagem do latim é indiscutível, o problema poderia ser (se o latim voltasse de facto aos currículos) levar os alunos a aceitar o trabalho que implica. Assim como a estratégia do humor aliado à competência, que aqui foi referida, acrescento uma estratégia que nesse ano longínquo fez sentido para os alunos: é como aprender a jogar xadrez, ao princípio dá muito trabalho, são muitas regras, mas quando se começam a dominar essas regras o prazer é incalculável.
Esses alunos, nesse ano, entenderam, o que me leva mais uma vez a afirmar que o problema não está nos alunos actuais, que são cada vez mais preguiçosos mentais, o problema está realmente no sistema que os priva de desafios em nome de uma falsa contemplação com os desfavorecidos. Não advogo, de maneira nenhuma, que os problemas dos desfavorecidos sejam ignorados como se fazia antes do 25 de Abril, em que essas pessoas nem sequer iam à escola. Mas o que acontece agora é exactamente o mesmo desprezo pelos problemas dessas pessoas, com a diferença de que agora são enfiadas à força em salas de aula cuja semelhança com aviários não é nada ficional. O objectivo não é dar oportunidade às pessoas, como se desejaria num sistema democrático, o objectivo é controlar desde cedo os futuros adolescentes para diminuir a criminalidade. Essa cena da democracia é tanga, o que as duas faces da moeda apresentam é o mesmo, capitalismo versus capitalismo. Entre capitalismo e democracia só há semelhança no número de sílabas, e até isso pode ser discutível...
Porque me apetece falar mais um bocadinho: agora oferecem cheques-dentista aos alunos. Ao mesmo tempo, a publicidade de produtos produtores de inevitáveis cáries dirigidos às crianças com um markting cuja eficácia é avassaladora aumenta exponencialmente. Tenho nojo desta raça a que pertenço. E isso acontece-me tanto no natal como fora dele.
Hr
Sim latim e grego, como nos ensina o cientista LEWIS THOMAS ( ver em A MEDUSA E O CARACOL)
Enviar um comentário