domingo, 19 de dezembro de 2010

Sobre a clareza da linguagem: Caraça e Gama

Na sequência de texto anterior e centrando-me ainda em Bento de Jesus Caraça, devo acrescentar que a sua preocupação de usar uma linguagem acessível para chegar aos diversos "públicos" com quem contactava, não se restringia à escrita, incluindo também a oralidade. Maria Alice Chicó (1998, 52-53) relembra-o, neste aspecto, da seguinte maneira:
“O que era maravilhoso era que, quando falava connosco, Bento Caraça nunca tomava atitudes magistrais. Tem-se dito que ele falava com simplicidade à gente simples. O que se deve acentuar é que a sua simplicidade na exposição era o produto de uma reflexão profunda que estava subjacente a todos os assuntos de que nos falava, e que lhe permitia tirar deles a síntese que os tornava imediatamente claros e apreensíveis a toda a gente. Havia nele uma grande serenidade, um jeito de nos envolver no calor da sua presença e de encontrar a palavra amiga que animava, que fazia julgar a vida difícil, menos árdua de se viver com dignidade.”
Trata-se de uma descrição que me parece assentar bem a um outro professor, mas de Português, e, além disso, poeta, que, em finais dos anos quarenta e princípios dos cinquenta se detinha igualmente na linguagem que sem trair o próprio educador, lhe permite chegar ao outro, lhe permite educá-lo. Refiro-me a Sebastião da Gama (1924-1952), que num extracto do seu Diário explicava:
“Está provado que não nasci para falar a doutores. Um dos meus professores viu direito quando, no meu exame de admissão ao estágio, lamentou que a minha linguagem nem sempre fosse a mais conveniente (…). Isto é uma qualidade e um defeito: ao pé deles fico apagado, e escuso de ter razão, porque até a razão tem de andar bem vestida para entrar nas salas (…). Esta folha vem a propósito de eu neste dia, em vez de dar aula, ter ido conversar com o metodólogo e de ter sido este um dos pontos que tratámos. Perguntei-lhe se devia falar caro ou falar acessível; e ele achou, comigo, que devia falar acessível, porque «serei sempre diferente deles». Isto de ser «diferente deles» vem lembrar-me outro assunto sobre que falámos — se não neste, noutro dia. O do professor que sente a necessidade de se impor ao aluno pelo alardeamento de uma vastidão e complicação de conhecimentos com que o amachuca e que se irrita ou inventa, se necessário for, quando o aluno lhe pergunta qualquer coisa que ele não sabe. Por mim, nego-me a impor-me desta maneira medrosa e desonesta e será, como tem sido sempre, sem vergonha que direi que não sei.”
Não se veja, porém, nesta duas referências a defesa da linguagem trivial, próxima daquela que se usa no quotidiano dos alunos, para os interessar e apenas isso.

Referências bibliográficas:
- Chicó, M. A. (1998). Entramos pela sua mão no mundo das ideias. História. Ano XX (nova série), n.º 9, 52-53.
- Gama, S. (1993). Diário. Lisboa: Ática.

2 comentários:

Anónimo disse...

Falar claro e simples não é tão fácil como falar abstrusamente difícil. O padrão do clássico é precisamente a simplicidade, nem sempre fácil de atingir. Contrariamente, falar difícil é o que há de mais fácil! JCN

José Batista da Ascenção disse...

Muito bem, a finalização do "artigo" da Professora Helena Damião e o comentário do Professor João de Castro Nunes. Difícil é simplificar. Fácil é complicar e baralhar. Uma coisa é falar/escrever simples e claro outra é fazer uso do linguajar "bué de fixe" na intenção fruste de cair no goto dos jovens (alunos), por exemplo. De modo similar, são opostas a linguagem pretensamente sabichona e pernosticamente rebuscada e a linguagem cuidada, culta e erudita. A um colega professor de Português ouvi muitas vezes dizer que é dever de quem fala ou escreve usar cuidadosamente a linguagem de modo a fazer-se entender primorosamente...
E eu penso às vezes como deve ser difícil a muitos poetas (da actualidade...) fazer versos tão "simples" e belos como são alguns de Miguel Torga.

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