segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

"O meu atraso pedagógico"

Uma entrada de Conta Corrente 3, de Vergílio Ferreira, datada de 13 de Fevereiro de 1981, a páginas 47 e 48:

"Ontem, na rádio (...) alguém falava de pedagogia moderna. Conheço a música suficientemente: trabalhos de grupo, iniciativa do aluno, aligeiramento da pressão do mestre segundo o atávico e mau costume de «impor» e de «ditar», desopressão da memória, essa faculdade reaccionária, descomplexificação das criancinhas com a permissão compreensiva dos seus caprichos selvagens, etc.

Claro que a criatura que preopinou na rádio nao foi isso que disse. Mas foi. O trabalho e a disciplina são os alvos privilegiados para se arriar e ser progressivo. E das três fundamentais faculdades humanas - a inteligência, a sensibilidade e a memória - é nesta que se aplica a maior coça purgativa.

Daí que a História tenha sido praticamente eliminada do ensino, seja qual for a forma que ela tenha de historiar: história sociopolítica, história da língua, da literatura. Hoje o aluno ignora praticamente quem é que lhe fabricou o seu modo de ser, quem cavou para ele semear, como é que se travou a sua eventualidade portuguesa. Do mesmo modo, ignora razoavelmente quem é que o ensinou a sentir, quem é que lhe arranjou a língua que tem, ou seja o seu modo de entender o mundo, ou seja o seu mundo. Não senhor. Olhar para trás, não. «Para trás mija a burra», e ele não pertence à espécie. Ele está virado para a frente, com o progresso entremeado em todas as articulações. Que raio lhe interessa saber quem era D. Afonso Henriques, que se calhar nem era do Benfica? que diabo pode interessar-lhe o Álvares Pereira, que nem sequer foi talvez à TV? Ser pela História é ser pela reacção, que quer dizer «acção para trás». Além de que obriga a «decorar».

Ora meter nos cornos nem que seja a tabuada - que violência fascista. Obrigar à disciplina, que violência pidesca. Uma criança nasceu, como é sabido desde os hotentotes, para a livre expressão da sua terna selvajaria. Uma criança nasceu para inocentemente partir os móveis, borrar as paredes, fazer o seu chichi nos vasos, quebrar a louça por enternecedor passatempo e sobretudo para não ser submetida à grilheta do estudo.

Tenho as minhas discussões com despachados pedagogos, advogados desse sistema. Aqui há uns dois anos, por exemplo, com a professora primária da Rita. A miúda estava já na segunda classe mas ignora ainda praticamente o feito do a. Timidamente fui adiantando à professora que seria talvez conveniente informar a criança como era isso do a e coisas assim. Ela sorriu piedosamente para o meu atraso pedagógico e explicava-me com paciência que a livre formação de uma criança, que a sua descomplexificação, que. Eu ouvia e ia aprendendo. Em todo o caso, insistia eu, talvez que, enfim, ensiná-las a juntar duas letras, ir começando a dar-lhe notícias de que as palavras se podiam escrever e ler e... Ela desistiu de dialogar, porque a sua piedade já não chegava para tanto.

Nas férias desse ano, a senhora professora pediu-nos emprestada a casa de campo para se instalar cá uns dias com o seu rancho escolar. Dissemos que sim, pois. E cá estiveram todas muito contentes. Uma das criancinhas, na sua livre expressão, tentou com uma podoa derrubar-me um inofensivo pinheiro. Outro subtraiu-me uma máquina de um comboiozinho eléctrico. Outra destrui-me um ninho que havia ao pé do alpendre. Mas libertaram-se da ameaça de complexos e recalcamentos e eu fiquei contente. E em face disso, tempo depois a senhora professora escreveu-me a agradecer. Era um bilhete ilustrado muito bonito e começava assim: «Não poço agradecer-lhe devidamente...». Sim, sim poço com c cedilhado. Mas sejamos compreensivos: se as crianças têm o direito à descompressão, a senhora professora também tem.

Este texto do professor-escritor-filósofo é retomado e discutido por Maria Almira Soares nas páginas 132-133 dum livro publicado em 2010, que acabei de descobrir e a que voltarei. Tem por título Vergílio Ferreira: O Excesso da Arte num Professor por Defeito e foi Prémio literário Vergílio Ferreira deste ano.

10 comentários:

Luís Ferreira disse...

Magnífico!

Agora faça-se o seguinte exercício: imaginar os efeitos acumulados destas práticas na economia do país.

Filipe Oliveira disse...

Grande texto, Helena!

Fartinho da Silva disse...

Delicioso. Muito obrigado por partilhar tão magnífico e significativo texto!

Anónimo disse...

"Agora faça-se o seguinte exercício: imaginar os efeitos acumulados destas práticas na economia do país. "

Demasiado cedo, por enquanto a situação actual é da responsabilidade da geração educada antes de 1974. Aqueles que como vocês:


* acham que nessa altura é que era tudo bom.

* dizem que os resultados do PISA são prova experimental de que a educação em Portugal não presta e depois quando esses mesmos resultados melhoram dizem que agora já não é um bom indicador (sem qualquer justificação cogente)

* são actualmente os responsáveis pela situação económica deploravel do país mesmo depois de mais de 30 anos da melhor conjuntura económica mundial

Anónimo disse...

Uma boa exemplificação literária da sadia ironua beiroa, sem a contundente acrimónia de um Aquilino, mais virado ao sarcasmo dos beirões das terras do demo. JCN

Anónimo disse...

Corrijo a gralha "ironua" por "ironia". Até parece mesmo... uma ironia! JCN

José Batista da Ascenção disse...

Ontem como hoje. Depois de sucessivas e múltiplas "inovações", cuja sequência não pode ser travada...
Aquele Vergílio Ferreira era um retinto antiquado.
Como antiquados serão os que o consideram distinto.
Ele pode lá haver outra explicação!

Anónimo disse...

Como quase colegas que fomos e seu incondicional admirador, alinho com os antiquados. Somos uma espécie de sétima legião da pós-modernidade. JCN

Cristina Barreto disse...

Sou professora e sinto isso na pele. E o pior é que somos apedrejados não só por alunos, que até entenderia, mas por nossos colegas de departamento. Somos chamados de autoritários e, dependendo da conveniência, acusados de "afrouxamento" do rigor. Muitos não se decidem. O lazer e o lúdico são cada vez mais utilizados nas avaliações. Que diferença!! Eu ralei muito, estudando, queimando as pestanas, para poder passar em provas e concursos. Hoje isso é chamado de violência fascista. Novos tempos.

Unknown disse...

Maria João

Perfeito.
É a radiografia perfeita da nossa actualidade.
Caminha-se para o abismo.

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