quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Entrevista a Eugénio Lisboa


Do nosso habitual colaborador Eugénio Lisboa, professor jubilado da Universidade de Aveiro, publicamos uma entrevista recentemente saída na revista "Artes e Letras" do Porto:

"AeL – Fale-nos do seu percurso. Qual o papel da sua formação em engenharia na vasta obra que produziu?

E.L. – Não foi, em si, a formação em engenharia que marcou a obra que tenho feito mas aquilo que me levou a ir para engenharia: o meu gosto pela matemática e pelas físico-químicas, que precedeu (e excede) o curso de engenharia. Aliás, se tivesse escolhido bem, teria ido para ciências puras e não para engenharia, embora esta nunca me tenha feito mal, antes pelo contrário. Julgo que o gosto pela ciência e também pela filosofia ajuda não pouco a não se dizerem e a não se escreverem aquelas coisas arbitrárias e atrabiliárias que todos os dias se dizem e se escrevem em jornais e até em publicações supostamente mais doutas. O respeitinho pelas palavras e pelas ideias (claras) aprende-se, convivendo com a história das ideias e do pensamento científico – o pensamento daqueles que estavam mais interessados em compreender do que em lançar foguetes. O discurso literário é, com uma frequência alarmante, um foguetório sem grande sentido, onde habitam os mais rotundos disparates, que se tornam emblemas duráveis e acarinhados. Disto, infelizmente, nem a universidade se livra. O gurú literário da segunda metade do século XIX, Ferdinand Brunetière, professor da prestigiosa École Normale Supérieure e director da influente Revue des Deux Mondes, afirmava, do alto do seu desprezo de humanista pelas ciências “duras”, que “haveria menos alcoólicos (...) se a química tivesse feito menos progressos”. E, não contente com isso, aludindo ao livro de Darwin – A Origem das Espécies – proclamava: “Essas ideias devem ser falsas, porque são perigosas.” Raciocínio brilhante, que, por certo, não teria feito, se tivesse molhado um pouco o bico no lago portentoso da ciência ou tivesse “cheirado” minimamente um bom manual de filosofia... Porque os seus dislates de grande guru literário não se ficaram pelas alusões à ciência: o que disse de Baudelaire figura hoje nos bons “dictionnaires de la bêtise”.

AeL – As suas experiências cosmopolitas modelaram de alguma forma o seu pensamento?

E.L. – Tenho, de facto, viajado muito e, sobretudo, vivido longamente em latitudes e longitudes diversas: tenho 38 anos de Moçambique, onde nasci, 17 de Inglaterra, 23 de Lisboa, um ano de África do Sul e um ano de Suécia. Isto ajuda poderosamente a um alargamento de perspectivas. Mas o cosmopolitismo não depende só – ou fundamentalmente – disto: está dentro de nós. Adolescente, em Moçambique, fui francês com Voltaire, Balzac, Stendhal, Anatole France ou Roger Martin du Gard, inglês, com Dickens, Charlotte Brontë, Wilde, D. H. Lawrence, Conrad ou Huxley, alemão, com Thomas Mann, italiano com Pirandello e D’Annunzio, romeno, com Panait Istrati, americano, com Mark Twain, Hemingway, Faulkner, Saroyan ou Steinbeck, russo, com Tolstoi, Dostoiewsky, Turguenev, Tcheckov ou Sologub. A filosofia, na adolescência, levou-me a Atenas, a Paris ou a Londres (e a mais de uma cidade na Alemanha e na Suíça...) Estive em Paris, sem estar em Paris e em Londres sem estar em Londres. O provincianismo é um estado de espírito e não uma consequência da geografia. Viajar ajuda mas não é tudo. Os lisboetas que olhavam de alto para a presença, porque esta se fazia em Coimbra, sofriam de provincianismo interior, aquele que de facto estreita perspectivas. Eugénio de Andrade não precisou, para nada, de viver em Lisboa, para ser o grande poeta que foi: bastou-lhe o Porto. Há provincianos em Nova Iorque e cosmopolitas em remotas terras do interior. Quando, em 1947, vim de Lourenço Marques para Lisboa, para cursar engenharia, eu, africano do cabo do mundo, achei que a maior parte dos meus colegas de curso era mentalmente e inacreditavelmente provinciana.

AeL – O que releva da sua experiência de Conselheiro Cultural?

E.L. – O gosto de fazer coisas e, também, o gosto de fazer coisas com alguém. E promover a cultura portuguesa, em Inglaterra, era, a um tempo, dificílimo e excitante. Os ingleses são exigentes, competitivos e rigorosos na negociação. Em Londres a competição é feroz. Podemos ter um grande produto a mostrar, mas é preciso publicitá-lo intensamente e isso custa dinheiro. Somos um país pobre, mas somos, sobretudo, um país em que os poderes políticos não gostam de gastar dinheiro com a cultura nem com os seus agentes que são, por regra, incómodos. É uma vergonha que o orçamento para a cultura ande ainda pelos mesquinhos 0,5% ou menos. E é uma vergonha para todos os partidos que têm estado no poder. Nisto, acabam sempre por ter a última palavra os detestáveis ministros das finanças, que percebem pouco de finanças e rigorosamente nada de cultura. Portugal não tem muito que lhe ajude a promover uma forte imagem: se despreza a cultura, despreza uma das mais poderosas influências subliminares que se conhecem. Ortega y Gasset escreveu, sobre isto, páginas admiráveis, que os nossos políticos evidentemente não leram. Ainda assim, promovi, em Londres, a tradução de clássicos antigos e modernos e a reedição de traduções já feitas mas esgotadas. Com o auxílio do meu amigo L. C. Taylor (director, ao tempo, da Gulbenkian, em Londres), fizemos uma boa sementeira editorial de que muito nos orgulhamos. Além de muitas outras actividades ligadas ao teatro, à pintura, à música, etc. Paralelamente à actividade propriamente profissional, viver em Londres 17 anos é um privilégio que só não publicito mais para não irritar os deuses.

AeL – Voltemo-nos para o presente. Que futuro para a educação?

E.L. – Nenhum, se não houver a coragem política – e não há! – para se desencadear um autêntico terramoto, que leve de enxurrada os bons sentimentos, a choradeira do facilitismo e também alguns sindicatos, que se preocupam com tudo menos com uma adequada educação ministrada aos alunos (sem falar na duvidosa legitimidade e competência que eles tenham para se imiscuirem em tudo e mais alguma coisa). O estado a que chegou a incompetência dos alunos, a inconcebível falta de disciplina e o peso horroroso de uma burocracia sufocante – é de fazer medo. Nunca pensei poder vir a dizer isto, mas digo: o liceu que frequentei, em Lourenço Marques, no tempo do Estado Novo, envergonha isto a que hoje se chama ensino secundário. E o processo de Bolonha está a ser um autêntico massacre para as universidades. Com esta qualidade de educação – a todos os níveis – o país jamais arrancará para um crescimento digno desse nome: não haverá mão de obra qualificada, em quantidade suficiente. O fantasma da Matemática tem também que ver com alguma má docência, aliás, mais do que alguma. Melhores professores (na generalidade, porque há sempre honrosas excepções), melhor disciplina, mais exigência, mais autoridade para os professores e para a direcção das escolas, autonomia com responsabilidade – eis aquilo, sem o que, não há qualquer possibilidade de futuro. É um pesadíssimo caderno de encargos – mas é para um governo de um partido que aceite, patrioticamente, perder as eleições seguintes. A políticos assim, capazes de arriscarem as suas carreiras ou até a vida, chamou Kennedy “perfis de coragem”. Ainda haverá disso entre nós? Mário Soares foi um desses, mas não sei se as gerações posteriores produziram gente deste gabarito. Penso que, para melhor garantia de continuidade de um programa exigente (que os sindicatos combateriam...) teria que haver, no mínimo, um pacto de regime. Ou isto ou a perpetuação do pântano.

AeL – Haverá em Portugal uma política cultural? Será que se sabe o que é cultura, pelo menos tal como a desvenda nos seus livros?

E.L. – Os governos que costumam ter “políticas culturais” são os das ditaduras: a Alemanha nazi, a Itália fascista, a União Soviética ou o Portugal de Salazar tiveram “políticas culturais”. A América ou a Inglaterra ou a Dinamarca não têm políticas culturais. Quem faz a cultura são as pessoas, individualmente, por iniciativa própria ou em associações de interesses culturais. Ao Estado pedem-se apoios financeiros ou outros e que cuide do património construído e do outro. O Estado deve ser discreto, caso contrário, corre o risco de se tornar manipulador. Quando o Estado se põe a ter ideias temos quase sempre o caldo entornado. O Camões, o Eça, o Mosteiro da Batalha, o Carlos Seixas são meus e teus, não são do Estado. Mas compete ao Estado velar por eles, pela sua preservação, mas sem os utilizar a seu favor. Quando se trate de celebrá-los e promovê-los, a iniciativa deve ser de nós todos, com o Estado, porque não, a apoiar mas não a dirigir. Quanto a saber-se o que é cultura, parece-me difícil defini-la de forma competente e abrangente. Mas gosto sempre de lembrar as belas palavras de Ortega y Gasset: “A cultura não é a vida na sua totalidade, mas apenas o seu momento de segurança, força e claridade.”

AeL – Acha que as políticas editoriais têm um papel saudável na promoção cultural? E a comunicação social?

E.L. – Não sei bem a que se refere com “políticas editoriais”. Das editoras particulares? Quanto a isto, devia haver uma lei anti-trust, que impedisse que um grande grupo financeiro, que nada se interessa por livros, devorasse quase todo o mercado produtor e distribuidor de livros. O que se passa é quase obsceno. E mete medo. Entrar em quase 90% das livrarias causa náuseas: é o reino do mono-estilo, com a promoção sistemática e despudorada do que há de pior: o pimba, o piroso, o sensacionalão, o grande “best-seller” de lá de fora e de cá de dentro. O chover no molhado: promover, a grandes custos, o que por natureza da sua própria mediocridade já está promovido. Os grandes heróis dos editores e dos livreiros são os senhores-da-televisão-que-também-escrevem-livros e que despertam a concupiscência dos jovens e não tão jovens que sofrem de iliteracia aguda e por isso gostam de comprar os livros daqueles senhores e senhoras que aparecem muito no “petit écran”. A promoção via “petit écran” é, quanto a mim, um abuso de confiança. A comunicação social – televisão, jornais vários – faz como Deus é servido, quando Deus fica mal servido (roubo esta perfídia ao Pessoa – é para isso que servem os clássicos).

AeL – Por detrás do Conselheiro Cultural, do pensador, do crítico, do estudioso, do pedagogo, espreita o poeta. Diga-nos alguma coisa dele, do premiado autor de Matéria Intensa.

E.L. – O poeta – em sentido formal – tem, em mim, aparecido pouco e quase clandestinamente. Eu sei que ser-se discreto, em Portugal, sai caro: quando falamos em voz baixa, o silêncio dos outros, a nosso respeito, é garantido. É fácil fazer desaparecer quem, já de si, aparece pouco. Mas julgo saber da poesia, por dentro, um pouco mais do que tantos que a escrevem sem nunca terem pensado a sério no que ela seja nem como funciona o mecanismo da criação poética. A ignorância versificatória de tantos dos nossos vates é simplesmente fabulosa. No nosso país pensa-se que ser moderno é escrever verso livre. O resultado é, em geral, fazer-se uma coisa que nem é verso nem é livre: o arbitrário justapor de palavras não é, necessariamente, uma metáfora... Há por aí poema e poeta muito louvado, que não resiste a um escrutínio severo: a excessiva liberdade corre o risco de desaguar no arbitrário e no contra-senso. Fazer poesia sem constrangimentos e sem rede dá, quase sempre, palavreado sem sentido. Tem-me servido a poesia – como me tem também servido a prosa, que pode ser igualmente poética – para sondar os meus assombros e os meus fantasmas: que são muitos e nunca inteiramente resolvidos.

AeL – Por fim, com aquela frontalidade alheada de previsíveis incómodos que é sua marca distintiva, responda-nos: apesar dos condicionalismos de toda a natureza deste país a um passo do abismo, vai continuar a “Cantar a gente surda e endurecida”?

E.L. – É como se diz no mito de Sísifo: apesar de o penedo que levámos até ao cimo da colina voltar a cair, voltando ao ponto de partida, há que recomeçar. Até por uma questão de “panache”. Goethe dizia que o erro está constantemente a repetir-se, sendo por isso necessário estar constantemente a combatê-lo. Não há solução para a nossa mortalidade mas, como dizem os franceses, il faut faire semblant. Podemos ser felizes apesar de mortais, assim como podemos sê-lo apesar de cantarmos para gente surda. A tragédia, não o esqueçamos, foi inventada por um povo feliz – disse-o Nietzsche. Cantar a gente surda e endurecida é, em geral, em pura perda. O importante, porém, é perseverar – há nisso uma elegância que pode inspirar os outros. A vida é absurda mas podemos fazer de conta que não é. Não sou melancólico: sou colérico. A maior partida que podemos pregar aos governantes é fingirmos que acreditamos neles e continuarmos a moer-lhes a molécula. A uma beata que se queixava a um padre muito conhecido de que se fartara, em vão, de rezar a Nossa Senhora, por uma benesse qualquer, o padre respondeu: ”Insista, criatura, insista, chateie Nossa Senhora!”

AeL – Através da sua obra divulga escritores e artistas plásticos de outras nacionalidades, para além dos portugueses. E dá ênfase aos PALOPs. Considera que há um esquecimento propositado pelas obras destes povos da parte dos portugueses?

E.L. – Não diria que há um esquecimento propositado. É simples alheamento e indiferença, logo: desconhecimento. Aliás, foi sempre assim e, no passado , ainda foi pior. Escritores como Rui Knopfli, Glória de Sant’Anna, Ascêncio de Freitas ou João Pedro Grabato Dias nunca aqui tiveram, no passado e no presente, verdadeira implantação. Os escritores dos PALOPs não são desta paróquia e isso torna-os desinteressantes e pouco apelativos. Se o Porto fica longe de Lisboa, Luanda ou o Maputo ainda ficam mais. Não se fala com eles, quotidianamente, não se lhes contam as “nossas” anedotas, não se conspira ou intriga com eles, “não são dos nossos”, embora escrevam em português (aliás, um português que não é bem o nosso e se suspeita que seja um pouco inferior...). Um escritor português que se ausente para França, Inglaterra ou Alemanha, fica, por assim dizer, “morto”. Longe da vista, longe do coração (e da atenção). Não é da nossa paróquia, não ri das mesmas piadas nem chora com as mesmas lamechices. Os PALOPs, apesar da retórica oficial, não são “dos nossos”. Nem sequer são bem estrangeiros, porque estes, os mesmos lá de fora, deslumbram facilmente o nosso provincianismo de pacóvios. Disto tudo, salva-se sempre o inevitável Mia Couto, que é muito traduzido “lá fora” e vem cá muitas vezes. A esse, nem o talento lhe faz mal.

AeL – A Lusofonia é bem tratada entre nós?

E.L. – Julgo ter-lhe já respondido. Enfim, a Lusofonia existe pouco, fora de uma anémica retórica oficial e de alguns congressos, sempre um pouco distraídos. Aliás esses congressos são sempre uma espécie de “ghettos” em que “eles” falam para “eles”. Depois, há o patusco Acordo Ortográfico, inventado, curiosamente, para unificar a língua... O Acordo é uma idiotice: nem com a língua tem que ver, tem só que ver com uma mera convenção de escrita e, mesmo aqui, fazem-se barbaridades que traem e fazem esquecer a origem dos vocábulos. O que é importante, na língua – o glossário, a gramática e a música da língua – divergem e vão continuar a divergir, alegre e saudavelmente, o que faz, de resto, a grandeza do Português. O Acordo Ortográfico só tem, que eu veja, uma virtude – permite, aos seus fautores, durante um período alargado, viajarem abundantemente, para “trocarem impressões” e negociarem cedências, criando assim um “acordo” que, ao fim de algum tempo, julgado decente, precisará de novos “ajustes”, isto é, de mais viagens. Tudo está o melhor possível no melhor dos mundos possíveis."

3 comentários:

Anónimo disse...

Extraordinário. Sem dúvida estes é dos melhores post de entre muitos e bons que figuram neste blog.

João de Castro Nunes disse...

Plagiando Pessoa, apetece dizer: "Que grande felicidade... é podeder alguém falar de si próprio!". JCN

Anónimo disse...

Qual é o endreço mail de Eugénio Lisboa ? Estive com ele num coloquio sobre o Ferreira de Castro em Oliveira de Azeméis. Ontem, ouvi-lo falar numa radio d'un poeta açoreano, autor dum poema sobre "As raparigas, la, em casa" (titulo incerto), cujo texto gostaria de conhecer para o traduzir em francês, se nao ja esta feito.
Obrigadissimo.
*
Daniel ARANJO
quem partipou como O Sr E Lisboa no coloquio de Castro (2005)
mail :
aranjo@univ-tln.fr

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