Ao reler o artigo que publiquei na revista académica Capa e Batina, n.º 24, em 1969, apanhei-me a fazer comparações com a situação actual. Criticava os que ao tempo pensavam defender a língua pelo policiamento dos estrangeirismos e a promoção militante do purismo linguístico, sem notarem, segundo me parecia, que o problema era mais vasto. E, como tal, exigia uma solução que passava pela educação literária da população a partir da escolaridade básica, só nessa época em começo de expansão e extensão. Seria a melhor maneira de qualificar e defender a língua e não com proibições.
A escola devia formar mais literária e esteticamente do que gramatical e linguisticamente, como então fazia. Alargar o mais possível o gosto pela leitura, devia ser o grande objectivo, com textos de qualidade, sugestivos, variados, bem lidos, declamados, dramatizados, enfim, usufruídos de muitas formas para assim criar exigência de qualidade literária. Deste modo se defenderia a língua e a cultura e não seria preciso andar com batalhas que, sem estas condições, eram perdidas.
Passados quarenta anos a receita parece ainda boa. Mas, é curioso perceber como evoluíram as coisas e reconhecer que não perderíamos nada em voltar acentuar, hoje, os estudos gramaticais; o que parece uma contradição, mas talvez não seja. A diminuição da gramática, só por si, não implica necessariamente uma melhoria da formação literária, podendo ficar-se num meio-termo que não é peixe nem carne. Em certo sentido parece que foi isso que aconteceu, porque os professores mais antigos sabiam gramática, mas muitos não tinham grande educação estética; os mais modernos podem não ter uma boa formação nem numa coisa nem noutra, por deficiência de formação estética, que nunca chegou a fazer-se ao nível da formação, em termos gerais, e por serem vítimas de um abrandamento da formação gramatical nas novas gerações docentes.
De qualquer modo, a população que lia livros era muito mais reduzida, constituindo, em termos gerais, uma elite relativamente aos que não liam, e mesmo aos que hoje têm escolaridade bastante para algum consumo de leitura, e à escola o devem. O mundo das publicações era também muito mais restrito: uma dúzia de editoras, uns tantos autores mais ou menos consagrados, uma crítica que conseguia acompanhar a produção e estabelecia critérios, catalogava as famílias literárias; e tudo com edições sempre reduzidas. (Veja-se, a este propósito, o livro de Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas, Portugal: os números, Da Fundação Francisco Manuel dos Santos).
Hoje publicam-se muito mais títulos, há muito mais editoras e autores, cresceu o número dos escritores profissionais, coisa raríssima então, e embora não sendo a regra, algumas das atuais tiragens seriam impensáveis há quarenta anos. Mas há factos novos que ofuscam os critérios e criam ruído e confusão. Quase podemos dizer que a crítica desapareceu, perdeu importância face a novas e poderosíssimas forças que escolhem, decidem e promovem, com critérios nem sempre de qualidade literária. Curiosamente, há algum tempo, o poeta Nuno Júdice publicou, na Dom Quixote, o A B C da crítica, com alguns ataques a uma certa maneira de fazer crítica literária, mas que de algum modo está desadequado à realidade actual, como lhe respondeu o crítico António Guerreiro, no Expresso. Os críticos perderem audiência e influência face às novas forças e não adianta manter um azedume em relação a certas formas de controlar e condicionar o gosto, de criar e desfazer talentos, de promover obras menores e esquecer outras de maior valor e outras razões deste género, de que os escritores muitas vezes se queixavam, e queixam, talvez com razão.
E não adianta muito porquê? Porque tudo isso perdeu força face ao fenómeno inédito que é a promoção televisiva; não dos bons livros através da televisão, mas dos que aparecem nas televisões e, por isso, se transformam em autores de sucesso quando publicam qualquer coisa. Não quer dizer que não possa haver, entre eles, bons autores, mas que é o aparecer que determina o sucesso, e isto não pode ser critério. Por outro lado, muitas editoras e associações de editoras assumiram, de uma maneira muito mais forte e agressiva que antes, a dinâmica empresarial, e isto é perigoso porque o critério principal, ou até único, passa a ser a rentabilidade.
Digamos, portanto, que as coisas não mudaram muito, tendo mudado bastante. Subiram de degrau, deslocaram-se lateralmente e para um patamar acima. Evoluiu-se a vários níveis, mas, em alguns aspetos, é ilusória a evolução. Onde não havia gosto, porque não havia consumo, há agora um gosto dominante que não é necessariamente o melhor, nem o mais exigente. Mas isso hoje já não é tanto por culpa dos críticos mas mais de forças que se servem da literatura (e de muitas outras coisas) para fazer dinheiro, por via audiovisual, digital, etc. É claro que as pessoas têm direito a ter os seus gostos, que as preferências literárias (como as outras) variam muito, e evoluem, tal como os leitores.
Ora, a partir desta plataforma de um mínimo de exigência, na diversidade, é mais fácil continuar a evoluir do que se não tiver havido esse primeiro patamar. E o número das pessoas que o conseguem é agora maior; alargou-se o campo dos que têm hoje capacidade para isso. O que cria possibilidades de evolução do consumidor, com exigência, mas que o comercial nem sempre acompanha, porque não lhe interessa; o interesse está noutro lado.
Embora hoje, é justo reconhecê-lo, se faça na escola, mais pela educação estética – havia pouca sensibilidade para isso antigamente – é pela criação desse gosto no maior número de pessoas que se avançará na defesa e promoção da língua e da cultura portuguesas; a inversa também é verdadeira. Como há quarenta anos, de resto.
João Boavida
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2 comentários:
Alargar o mais possível o gosto pela leitura, devia ser o grande objectivo, com textos de qualidade, sugestivos, variados, bem lidos, declamados, dramatizados...pois pois
ó filho isso foi o que se fez desde 75
impingindo o Pessoa ao quilo o José Gomes Ferreira o Torga o Nemésio e mais um cento de Brandões
e ósdepois tal como em 69 se criticavam os textos dos Dantas pró-regime
hoje ressuscitam-se os mortos vivos deste
Três Marias a vapor
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