domingo, 5 de dezembro de 2010

o SEU, a SUA

A contextualização das aprendizagens na vivência concreta, real, quotidiana, familiar, cultural, local, regional… dos alunos, a centração na sua pessoa e naquilo que a envolve, constitui um dos princípios mais evidentes na organização dos currículos ocidentais, não sendo a nossa excepção.

Está, pois, este princípio presente em todos o níveis de escolaridade – desde a educação de infância ao ensino superior – e em todas as áreas ou unidades disciplinares e não disciplinares, sendo claramente explicitado nos documentos curriculares e programáticos, nos manuais escolares, nos planos e projectos que se fazem ao nível da escola.

Reparo que este princípio é repetida e fortemente elogiado como forma de interessar e motivar os alunos, de tornar as suas aprendizagens verdadeiramente significativas, de desenvolver competências práticas, úteis…

Longe está, portanto, de ser discutido em função de argumentos filosóficos e conhecimentos científicos quanto:
(1) à sua legitimidade axiológica, nomeadamente na invasão do seu espaço privado e íntimo,
(2) ao seu impacto no delineamento da personalidade do aluno,
(3) à sua eficácia na estruturação cognitiva do aluno, nomeadamente do raciocínio abstracto,
(4) à sua importância na ampliação do conhecimento do aluno.

Estamos perante quatro aspectos que sustentam as decisões respeitantes ao currículo.

Desafio o leitor a verificar a sua pertinência nas orientações programáticas relativas ao Estudo do Meio para o 1.º Ciclo do Ensino Básico, que incluem vários blocos temáticos. Detenho-me nos dois iniciais, relativamente ao 1.º e 2.º anos de escolaridade: À descoberta de si mesmo e À descoberta dos outros e das instituições.

Relativamente ao primeiro, refere-se que os alunos devem estruturar o conhecimento de si próprios, desenvolvendo, ao mesmo tempo, atitudes de auto-estima e autoconfiança e de valorização da sua identidade e das suas raízes. O estudo da história pessoal será um bom ponto de partida para que os alunos vão estruturando a noção de tempo. Para isso deve iniciar-se a localização de acontecimentos da vida das crianças numa linha de tempo, que terá a mesma função dos mapas para as localizações no espaço. As crianças desta faixa etária fantasiam muitas vezes sobre situações reais. Estas fantasias, fruto da sua imaginação, são importantes para o desenvolvimento equilibrado do ser humano, pelo que devem ser respeitadas e estimuladas. É importante, ainda, realçar o cuidado e o bom senso que deverá existir no tratamento de todos os aspectos que, de algum modo, se relacionem com a vida privada dos alunos.
Assim, na lógica em espiral que dá forma ao currículo (os mesmos temas são tratados com amplitude crescente nos vários anos do ciclo), para o 1.º ano estão estabelecidos os seguintes tópicos (o bold é meu):

1. A SUA IDENTIFICAÇÃO. Conhecer nome(s), próprio(s), nome de família/apelido(s); sexo, idade; endereço.
2. OS SEUS GOSTOS E PREFERÊNCIAS. Seleccionar jogos e brincadeiras, músicas, frutos, cores, animais… Descrever lugares, actividades e momentos passados com amigos, com familiares, nos seus tempos livres…
3. O SEU CORPO. Identificar características familiares (parecenças com o pai e com a mãe, cor do cabelo, dos olhos…). Reconhecer modificações do seu corpo (peso, altura…). Reconhecer a sua identidade sexual, Reconhecer partes constituintes do seu corpo (cabeça, tronco e membros). Representar o seu corpo (desenhos, pinturas, modelagem…), Comparar-se com os outros: com os colegas da escola (mais novo/mais velho, mais alto/mais baixo, louro/moreno…); com os pais e irmãos
4. A SAÚDE DO SEU CORPO (…)
5. A SEGURANÇA DO SEU CORPO (…)
6. O SEU PASSADO PRÓXIMO (…)
7. AS SUAS PERSPECTIVAS PARA O FUTURO PRÓXIMO. O que irá fazer amanhã, no fim-de-semana, nas férias que estão próximas…; exprimir aspirações; enunciar projectos

Para o 2.º ano estão estabelecidos tópicos equivalentes:

1. O PASSADO MAIS LONGÍNQUO DA CRIANÇA. Reconhecer datas e factos (data de nascimento, quando começou a andar e a falar…): localizar, numa linha de tempo, datas e factos significativos; reconhecer unidades de tempo: o mês e o ano; identificar o ano comum e o ano bissexto. Localizar, em mapas, o local do nascimento, locais onde tenha vivido anteriormente ou tenha passado férias…
2. AS SUAS PERSPECTIVAS PARA UM FUTURO MAIS LONGÍNQUO. O que irá fazer nas férias grandes, no ano que vem: exprimir aspirações; enunciar projectos.
3. O SEU CORPO (…)
4. A SAÚDE DO SEU CORPO (...)
5. A SEGURANÇA DO SEU CORPO (…)
Volte o leitor a ler os quatro pontos que acima assinalei e retire as suas próprias conclusões.

2 comentários:

Fartinho da Silva disse...

Talvez não se queiram professores na sala de aula mas psicólogos e/ou sociólogos. Se assim é, que se assuma isto de uma vez por todas e que se substituam todos os professores por profissionais das áreas referidas. Se assim não é, o caso é muito grave e merece uma investigação por razões óbvias e evidentes...

José Batista da Ascenção disse...

Aquilo que constatei em relação aos meus próprios filhos, desde o ensino pré-primário, até ao ensino secundário, é que, em muitos momentos, e apesar das boas intenções, se invadiu o seu espaço privado e até íntimo. Dou como exemplo uma ficha aplicada no âmbito da direcção de turma sobre alguns aspectos da sexualidade, em que o meu mais velho, há uns bons dez anos ou mais, escreveu em letras gordas que não respondia a perguntas que só a ele e à sua família diziam respeito. E, preocupado, respirou de alívio quando, em casa, lhe dissémos que tinha procedido bem. Acrescento que a professora directora de turma reagiu dignissimamente.
A este propósito é curioso o apelo dos programas ao bom-senso. Conceito que ninguém é capaz de definir e que, por isso, não sabemos bem o que seja. Associado a este problema há um outro: quase toda a gente se julga com bom-senso, especialmente aquelas pessoas a quem mais falta(rá), por razões óbvias.
Já o conceito de "aprendizagem significativa" que inunda qualquer programa, há-de persistir (nos programas e demais documentos) até nos saturarmos do adjectivo e o deixarmos cair no lixo da história, por remeter para algo que é um requisito de base, intrínseco ao processo, logo redundante, motivo por que cria ruído e não faz falta nenhuma.
A lógica em espiral do currículo é também uma "inovação" de estrondo. Aos meus filhos foi dito, em tenra idade, quando semearam alegremente feijoeiros num copo, e depois os viram crescer, que as sementes só germinavam com luz (o que é uma barbaridade) e que as plantinhas se alimentavam do solo. Assim!
E encontro muitos alunos no ensino secundário que, depois de abordarmos a fotossíntese (produção de alimento pelas folhas verdes, expostas à luz, a partir de matéria mineral), continuam a escrever ( e a acreditar) que as plantas retiram o alimento do solo. Creio que por lhes ter sido dito desde pequeninos... E o que verifico é que, depois de ser explicado e corrigido, muitas vezes o erro está lá, e volta... Julgo o facto "significativo" do que se consegue com aprendizagens que se querem "significativas". Também julgo que a lógica em espiral pode originar espirais de ignorância...
Só um exemplo: no décimo ano em biologia e geologia ensina-se (?) a circulação de seiva nas plantas. E então é recorrer ao exemplo da palhinha com que aspiramos o sumo de um copo, mas que os alunos não compreendem porque não têm requisitos básicos, como saber o que são "ligações por pontes de hidrogénio", que lhes permitiriam perceber o conceito de "coesão" e outros... Se pensarmos que isto (que eu demorei várias lições a aprender com o Dr Gil Cruz na Univ. de Coimbra, no segundo ou terceiro ano de uma licenciatura) é dado a correr numa aulita ou duas, para se passar à (outra) teoria seguinte (a do fluxo da seiva elaborada), noutra aulita, a alunos de 15 anos, tudo albardado sob o tema "distribuição de matéria nos seres vivos", imaginem-se as espirais de desinteresse e desprezo que vão grassando nos alunos. Não fosse a necessidade da disciplina para se entrar nos cursos de saúde e havia de ser bonito...
Peço desculpa pela extensão. Saiu(-me)...

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