Meu prefácio ao mais recente livro de ciência da Lua de Papel:
No tempo de Apolo na cidade de Delfos na Grécia Antiga havia uma inscrição, que ainda hoje constitui para nós um desafio: «Conhece-te a ti mesmo.» Toda a história da ciência é uma tentativa de resposta a este imperativo. Temos realizado progressos impressionantes: hoje sabemos muito mais do que ontem. Não somos estranhos num mundo estranho, somos antes seres cada vez mais conhecidos num mundo cada vez mais conhecido. Uma das principais conclusões da ciência é que os seres vivos, entre os quais se encontra a nossa espécie, são feitos dos mesmos átomos existentes noutros lados do Universo e que obedecem a leis físico-químicas válidas universalmente. No entanto, somos especiais, no sentido em que, tanto quanto sabemos, somos a única espécie que consegue conhecer o Universo, incluindo essa parte do Universo que é o nosso próprio corpo.
«De que somos feitos?» é a pergunta colocada neste livro por Dan Levitt, autor de documentários científicos e históricos de grande sucesso. Ele responde com conhecimento de causa – estudou ciências na faculdade, leu livros de divulgação científica e entrevistou numerosos cientistas – e com uma escrita capaz de nos prender ao fio da narrativa. Mistura de forma bastante sedutora ciência e história. Conta não só os factos da ciência, mas também os modos, por vezes inesperados, como os fomos descobrindo.
Somos feitos de células, que por sua vez são feitas de moléculas, sendo estas constituídas por átomos. Levitt sumaria logo no início, indicando valores que assombrarão o comum dos leitores:
«Cada pessoa é um mosaico em constante mudança, uma colónia de trinta biliões de células, cada uma constituída por mais de uma centena de biliões de átomos que se agitam em movimentos vibratórios desenfreados. Cada pessoa contém mil milhões de vezes mais átomos do que todos os grãos de areia existentes nos desertos da Terra. Quem pesa 70 quilogramas anda por aí com carbono suficiente para fazer 11 quilogramas de carvão, com sal suficiente para encher um saleiro, com cloro suficiente para desinfectar várias piscinas de jardim, e com ferro suficiente para fazer um prego de 7,6 centímetros. Se listasse todos os seus elementos, veria que cerca de sessenta elementos da Tabela Periódica estão representados dentro de si. Se os pudesse vender, encaixaria uns fantásticos 1942,29 dólares.»
Uma vida humana é resultado de uma experiência singular: não tem preço. Estou em crer que cada um dos leitores valerá muito mais do que a referida quantia. Mas esse é o nosso valor material: é, digamos assim, o que valeríamos no mercado de matérias-primas se puséssemos à venda aquilo de que somos quimicamente feitos.
A verdade é que somos feitos principalmente de água, uma substância muito comum no nosso planeta, que é um bom solvente e que preenche as nossas células (cerca de 60% do nosso corpo é água!). Depois existem dentro de nós uma miríade de moléculas orgânicas, designadamente as proteínas, que são as máquinas-ferramentas e elementos estruturais das nossas células, e o ADN, a longuíssima molécula que guarda o código da vida, que contém as receitas para fazer as proteínas. Consideremos uma molécula de água, cuja fórmula química é H20, ou seja, é constituída por dois átomos de hidrogénio, o elemento químico mais leve, e por um átomo de oxigénio. De onde vieram esses átomos? O átomo de hidrogénio pode ter sido feito no início do Universo, o Big Bang, datando, portanto, de há 13,8 mil milhões de anos – mais precisamente de quando, 300 mil anos após o instante inicial, os electrões se ligaram aos núcleos atómicos para formar os átomos. Mas o oxigénio teve de ser feito numa estrela. Não há nenhuma maneira de fazer oxigénio em abundância a não ser no coração de uma estrela maior do que o nosso Sol. Se estamos aqui é porque explodiu uma estrela – o evento chama-se «supernova» – anterior ao Sol espalhando no espaço o material das suas entranhas. O nosso astro-rei é, portanto, uma estrela de segunda geração, que «recicla» material pré-existente. Carl Sagan disse «Somos matéria das estrelas.» E Levitt, na mesma linha: «Mais de 88 por cento [dos nossos átomos] foram cozinhados num verdadeiro inferno de fogo, uma enorme gigante vermelha. Isso inclui o oxigénio que alimenta os nossos movimentos, o cálcio nos nossos ossos, o sódio e o potássio que enviam os nossos sinais nervosos, e todos os elementos, excepto o hidrogénio, que existem no nosso ADN.»
Além de oxigénio, cada um de nós tem dentro de si outros elementos pesados. O mais importante, porque entra em toda as moléculas orgânicas, é o carbono. Vale a pena dar de novo a palavra a Levitt, porque ele a maneja com grande estilo: «Uma pessoa de 68 quilos contém de massa, 42 quilogramas de oxigénio, 16 quilogramas de carbono, sete quilogramas de hidrogénio, 1,8 quilogramas de nitrogénio, quase um quilograma de fósforo e meio de enxofre. Por acaso, estes seis elementos também estão entre os mais abundantes no Universo. O hidrogénio é o mais abundante de todos, o oxigénio é o 3.º, o carbono o 6.º, o nitrogénio o 13.º, o enxofre o 16.º e o fósforo o 19.º. De certa forma, isso faz com que a compreensão da origem da vida seja um verdadeiro jogo de Scrabble da química.»
Sabemos hoje muita coisa sobre a vida. Por exemplo, como funciona a fotossíntese e o significado do código genético – assuntos tratados neste livro, mas não sabemos ainda como surgiu a vida na Terra. Não conhecemos vida fora da Terra, embora conheçamos exoplanetas e andemos activamente em busca de vestígios de vida extraterrestre. Na Terra, há vida inteligente, como mostra a nossa capacidade de investigar o Universo. O nosso cérebro – que é o órgão da inteligência – tem cerca de 170 mil milhões de células,, aproximadamente o mesmo número das estrelas na Via Láctea, das quais 86 mil milhões são neurónios. Os neurónios estão ligados entre si formando uma rede extremamenete densa. Apesar de todos os avanços nas neurociências, o funcionamento do cérebro continua a ser em muitos aspectos misterioso. A única parte do Universo que o pode compreender é a mais complexa de todas.
O leitor aprenderá muito neste livro de Levitt sobre aquilo que sabemos. Mas poderá aprender sobretudo o modo como é que chegámos ao actual conhecimento. O nosso cérebro tem, por vezes, enormes dificuldades em aprender coisas novas, pois sofre do que o autor chama «vieses» cognitivos, por exemplo o viés «é demasiado estranho para ser verdadeiro» ou «se as nossas actuais ferramentas não o detectaram, então não existe». Logo no primeiro capítulo, o autor mostra como até os maiores sábios se podem enganar atrapalhados pelos seus preconceitos. Albert Einstein enganou-se a respeito da possibilidade do Big Bang.
No final da leitura, o leitor, embora materialmente possa não ter mudado muito (de facto muda, porque as células estão sempre a renovar-se, os neurónios menos do que as outras), terá decerto mudado. Terá aprendido mais sobre si próprio e sobre o mundo. E, mais importante do que isso, estará mais bem preparado para saber ainda mais. O seu corpo não mudará muito, mas as capacidades do seu cérebro aumentarão. Boa leitura!
2 comentários:
Comprei o livro na FNAC de Cascais. Estou a adorar. Excelente! Aconselho vivamente.
Partilho da mesma opinião. O prefácio é um ótimo indicador do conteúdo.
LRC
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