Meu artigo no mais recente As Artes entre as Letras:
Eduardo antes de ser Lourenço é o grande título do livro saído há semanas na Gradiva, com
«textos de juventude» do filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço (1923-2020), que
foram transcritos, editados e organizados por Luciana Leiderfarb, jornalista do
Expresso da área da cultura. O
livro, de 448 páginas montadas com um excelente design em bom papel, tem
um prefácio de Guilherme d'Oliveira Martins, administrador da Fundação Calouste
Gulbenkian e amigo de Eduardo Lourenço (ele próprio foi também administrador da
mesma Fundação), e um posfácio do escritor Gonçalo M. Tavares (que termina
dizendo que Lourenço era «excelente e sério, sério e excelente»). A jornalista,
que tinha entrevistado várias vezes Eduardo Lourenço, interessou-se pelo seu espólio,
depositado numa sala da Biblioteca Nacional de Portugal, tendo publicado uma
reportagem na revista do Expresso sobre o assunto. Como lhe chamaram a
atenção os diários do escritor escritos entre 1940 e 1953, que estavam
inéditos, abalançou-se à organização deste livro, a sua obra ao fim
de muitos anos de profissão. O livro é formado por duas partes. A Parte I inclui, além dos referidos diários (em quatro cadernos, em sucessão
cronológica), textos avulsos sobre «Fé, crença, descrença, morte e infância»,
na qual o jovem Eduardo reflecte sobre esses temas existenciais, que na altura
o perturbavam particularmente (em especial, foi sobressaltado por dúvidas de
fé, com repercussões nas relações familiares, como era de esperar numa família
católica e conservadora). A Parte II
inclui textos do mesmo período, um sobre «Liberdade e situação», outro sobre
Mário de Sá-Carneiro (crítica à Confissão de Lúcio), acrescendo
projectos de livros e de um romance (que nunca finalizou) e um conjunto de
poemas (que também nunca publicou). As suas tentativas no teatro, no romance e na
poesia não devem ter sido do suficiente agrado do autor, que decidiu ser
crítico e não autor de ficção literária.
A primeira frase do primeiro diário, datado do verão de 1940, em São pedro de Rio Seco, terra natal do escritor, no concelho de Almeida, diz: «Foi quase anteontem que eu fui eterno. Eu sei que ninguém pode acreditar nisso. Nem eu. Mas o certo é que nesse tempo ninguém tinha morrido ainda.» Basta começar a ler para perceber a enorme capacidade de pensamento e de escrita do rapaz de 17 anos, que, tendo nessa altura terminado o Colégio Militar, em Lisboa, ia ingressar no Curso de Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Leitor omnívoro, o caloiro notaria as limitações da velha universidade coimbrã. Mas lá foi fazendo todas as cadeiras, com notas brilhantes. Depois dos seis anos da licenciatura, foi contratado como assistente, tendo tido como mestre o professor Joaquim de Carvalho (1892-1958), que se distinguiu tanto na crítica literária como na história da ciência (a Gulbenkian publicou a sua obra completa). As suas funções docentes em Coimbra prolongaram-se nominalmente por sete anos (portanto até aos 30 anos), mas foram interrompidas por estadas em Bordéus e Montpellier, em França, em Hamburgo e Heidelberg, na Alemanha, e na Bahia, no Brasil. Passou a viver em França em 1960, de onde foi observando com grande acuidade a vida literária e política em Portugal. Os seus escritos valeram-lhe os maiores prémios e distinções nacionais como o Prémio Camões (1996) e o Prémio Pessoa (2011) e alguns prémios e distinções internacionais.
Leiderfarb delimitou a seu livro entre os 17 e os 30 anos de Eduardo Lourenço,
portanto os seus anos de jovem adulto. A
sua maturidade intelectual era notável. Logo no texto inicial e para se
perceber a qualidade do pensamento e da escrita de Lourenço, vale a pena transcrever
o excerto em que ele fala do aparecimento do primeiro automóvel na sua aldeia,
na raia entre Portugal e Espanha:
“Eu estava aqui no dia em que um automóvel atravessou a minha aldeia. Era a
primeira vez. Ninguém deu conta, mas alguma coisa de novo ia acontecer. Alguma
coisa de terrível: talvez mesmo Cristo fugisse de automóvel. Quando o carro atravessou
a pequena aldeia, ele dividira o nosso tempo mítico em dois. Os homens
clarividentes deviam ter visto que era pelo meio de um quadrante eterno que
nele passava. É verdade que tinha havido um comboio, mas não ali. Em Vilar Formoso. Era ainda um elemento misterioso. Agora o tempo sagrado estava morto. Pelo
menos já não era o tempo único. Tinha de dividir o tempo dos homens com o tempo
profano, o tempo do simples automóvel. É verdade que desde sempre o tempo
sagrado teve de fazer grandes concessões. Os cuidados do pão e do vinho, a música
e a dança eram subtis degradações da viagem perfeita neste mundo. Mas tudo voltava
à ordem se um filho estava para nascer ou mesmo uma pobre vitela, e para ninguém
se podia apelar senão para o Senhor que por distracção se abandonara. A doença,
a seca, a chuva interminável eram avisos precisos do Senhor. E finalmente essa certa morte, gadanha monótona
juntando periodicamente a aldeia inteira à volta de um parente de todos, de um
irmão.
Mas agora era diferente. A história de Jesus não falava de automóvel. Havia
alguma coisa que não pertencia a essa sabedoria secular. Era essa estranha máquina
monstruosa, trepidante como coisa viva, especada ali, no meio do povo, fazendo
frente ao mistério glorioso do Cristo. Sem saberem, uma grande luta se renovava
e no meio deles e muitos não podiam pensar ao mesmo tempo em Nosso Senhor e no
automóvel sem experimentar uma sensação esquisita. Seriam inimigos?»
Poucas vezes terá sido exposto de maneira tão lapidar o embate entre a
modernidade e a tradição. E esta é apenas uma pequena amostra de um livro que
vale a pena ler. As obras de Eduardo Lourenço estão a ser publicadas pela
Gradiva e pela Gulbenkian, usando critérios e formas diferentes. Mas este livro
é uma verdadeira introdução ao nosso maître à penser. Mostra que o jovem
adulto era já um verdadeiro mestre quando começou a pensar.
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