segunda-feira, 22 de julho de 2024

Qual é o segredo da Física Divertida?

Prefácio do David Marçal ao meu livro «Toda a Física Divertida», que acaba de sair na Gradiva:

Carlos Fiolhais já chegou ao seu livro número 70, tendo agora mais livros do que anos de vida. Mas Física Divertida foi o primeiro, saído em 1991 e entregue na Gradiva em disquete (se não souber o que é poderá “googlar”, algo que não podia fazer nessa altura). Foi escrito com base em inúmeras palestras dadas em escolas de muitas partes do país, que o autor percorria primeiro num Renault 5 (pode “googlar” também) e depois numa carrinha Rover. Alcançou o topo de vendas rapidamente, tendo sido feitas sucessivas reedições. José Mariano Gago, físico que mais tarde haveria de ser o primeiro e mais marcante ministro da Ciência e Tecnologia em Portugal, escreveu no Expresso uma recensão, em que elogiava o editor Guilherme Valente, chamando-lhe “o reitor da Universidade da Gradiva, tão ou mais exigente do que as demais”, proclamando a ascensão à cátedra pelo autor com aquela obra. Física Divertida ganhou dimensão transatlântica com a tradução para brasileiro, coisa rara num livro publicado em Portugal, surpreendendo o próprio autor com a sua prosa em português do Brasil (os electrões passaram a ser “electrons”, mantendo a sua carga negativa, e a impulsão passou a “empuxo”, continuando a ser para cima).

 Qual é o segredo de Física Divertida? Como confessa Carlos Fiolhais, a receita de sucesso “consiste em misturar e mexer bem ingredientes que são conhecidos e que se encontram avulsos por aí”. E o que o que é que se encontra avulso por aí? Para começar o humor, e não só nos “bonecos do José Bandeira”, mas também no texto. 

O sentido de humor de Carlos Fiolhais é omnipresente, descodificando amiúde a realidade com uma punch line. Somos amigos há muito e as vezes que lhe vi perder o sentido de humor contam-se pelos dedos de uma mão, cingindo-se a situações em que não consegue encontrar as chaves e outras que tais. Mas logo as encontra, as chaves e a graça no acontecido. A importância das chaves também se explica pela física clássica: ao contrário dos electrões, nós temos de ir de um sítio para o outro passando por todos os pontos intermédios, não podemos dar um “salto quântico” do exterior para o interior, sendo pois conveniente ter chaves para abrir portas. 

Outro ingrediente da receita é a história. A da ciência e a história em geral, na verdade as duas são apenas uma, pelo menos desde o século VI a.C. quando os gregos Tales e o seu discípulo Anaximandro, ambos de Mileto, formularam os primeiros princípios da ciência (não da moderna, pois ainda haveria um longo caminho até Galileu nascer). Para Carlos Fiolhais a física não está circunscrita, alastra-se para a vida. Deixamo-nos embalar nas histórias sobre o mundo, o nosso de hoje e os mundos passados e futuros, sem darmos conta da física, que a espaços vai espreitando certeira no livro, como uma personagem que se impõe. Quase sem repararmos estamos, de repente, a fazer experiências mentais com recurso a princípios físicos recém aprendidos, aplicados a situações do dia a dia, do nosso ou de outras pessoas. Esses são os ingredientes e a receita não é secreta, pois está aí à vista de todos! 

 Muitos livros passaram e, em 2007, saiu a Nova Física Divertida. Se a Física Divertida é sobre física clássica, Nova Física Divertida é acerca da física moderna – a paradoxal física quântica, a fantástica teoria da relatividade e as bombásticas física atómica. Aqui as coisas são um pouco diferentes. A física clássica está alinhada com o senso comum: todos sabemos o que acontece quando largamos uma fatia de pizza do topo da torre de Pisa. A física clássica pode ajudar-nos a calcular que velocidade atinge e quanto tempo permanece no ar, mas, na verdade, ninguém fica surpreendido quando a pizza se esmaga no chão nem tem dúvidas de como ela lá chegou. 

 Já na física moderna as coisas são contra-intuitivas e muito matematizadas, sendo a matemática não só uma ferramenta que proporciona e torna útil a teoria, mas não raras vezes indissociável da sua plena compreensão. Numa entrevista feita em 1979 ao Nobel da Física Richard Feynman, um físico divertido, o entrevistador, a propósito dos avanços da física do século XX, pergunta-lhe se somente um reduzido número de indivíduos seria capaz de entender o que se está a fazer. Feynman responde afirmativamente, «a não ser que descubramos um meio de abordar os problemas que os torne mais facilmente compreensíveis.» Esta entrevista está publicada no livro Uma tarde com o Sr. Feynman, recentemente republicado pela Gradiva. 

 O cepticismo de Feynman quanto à possibilidade de real compreensão pública da física moderna é justificado, face ao seu carácter e à sua complexidade. No mundo do muito pequeno (à escala dos átomos e das partículas que os constituem) e do muito grande (das galáxias, dos buracos negros e do Big Bang) as coisas não funcionam como estamos habituados. E não devemos confundir popularidade – Albert Einstein, por exemplo, é uma figura extremamente popular – com compreensão. Mas Feynman também abre uma porta, antevendo a possibilidade de a física moderna se tornar compreensível através de um novo meio de a abordar. É por essa porta que entra Carlos Fiolhais, sem nunca ter perdido as chaves! Com os mesmos ingredientes de antes – o humor e as histórias da vida e do mundo – confeccionou a Nova Física Divertida. 

 Em 1991, quando saiu a Física Divertida, não havia exoplanetas (bem, eles já lá estavam a orbitar estrelas longínquas, nós é que não os tínhamos ainda detectado). Nem havia o Telescópio Espacial James Webb, que os permite analisar. Ainda faltavam alguns anos para os telemóveis se generalizarem e as pessoas tinham em casa tubos em vácuo por onde eram disparados electrões em direcção a ecrãs fluorescentes. No nosso país famílias inteiras passavam horas, sem medo, no enfiamento desses electrões, podendo escolher entre 16 Toda a Física Divertida a RTP1 e a RTP2. 

Havia quem dispusesse de um videogravador, podendo assistir também a programas previamente gravados ou a filmes que alugava num videoclube. Em 2007, ano da Nova Física Divertida, não havia partícula de Higgs (bem, havia, mas ainda não tinha sido encontrada), já todos tinham telemóveis, mas não havia Whatsapp. As famílias dispunham-se de frente a ecrãs de cristais líquidos, LCD (Liquid Crystal Displays), que se alinhavam quando era aplicada uma corrente eléctrica, podendo escolher entre vários canais por cabo. 

Hoje podemos ver televisão em ecrãs de LED (Light Emission Diode), graças à invenção do LED azul, que deu origem ao Nobel da Física de 2014, atribuído a dois japoneses e a um norte-americano. São precisos LED de três cores para fazer uma imagem colorida: vermelhos, verdes e azuis. E o sinal televisivo chega por fibras ópticas, que conduzem luz laser, um conceito que Einstein anteviu. Além de uma multidão de canais o telespectador pode ver séries e filmes à la carte, usando serviços como a Netflix ou a Amazon Prime Vídeo. 

 Mas, na verdade, as coisas não estão assim tão diferentes. Embora o conhecimento e a tecnologia tenham continuado a avançar, não deitámos fora a maior parte do que já sabíamos, pois, a ciência é cumulativa. As leis da física clássica continuam iguais – em 1991 não tínhamos encontrado nenhum planeta a orbitar uma estrela que não o Sol, mas sabíamos, que, se o encontrássemos, a força que o mantinha em órbita seria descrita pela lei da gravitação universal de Newton. Em 2007 já usávamos dispositivos GPS (Global Positioning System) para saber onde estávamos no nosso planeta, que só funcionam graças à teoria da relatividade de Einstein formulada no início do século XX. A aventura continua: em breve poderemos usar computação quântica, aproveitando a misteriosa física quântica. 

 A Física Divertida e a Nova Física Divertida tornaram-se clássicos. Eles aqui estão juntos pela primeira vez num só volume, para as novas gerações, porque a física moderna continuou a física clássica, mantendo-a na sua maior parte. As leis da física que a humanidade  descobriu e descobre continuarão válidas mesmo depois de ter desaparecido o último ser humano, por algum incrível azar ou pelo inevitável falecimento do Sol daqui a cinco mil milhões de anos. A Física Divertida e a Nova Física Divertida talvez não sobrevivam à humanidade, mas, enquanto cá estivermos, vale a pena deleitarmo-nos com a graça da física, que é como quem diz a graça do mundo.

 David Marçal 

 Cruz-Quebrada, 15 de Fevereiro de 2024

1 comentário:

Miguel Dias Costa disse...

Se bem me lembro, foi o Física Divertida que me introduziu aos livros da Gradiva, e o facto de eu ter escolhido o curso de Física (em 1995) teve muito a ver com isso.

Alguns anos mais tarde, quando escolhi um mestrado interuniversitário, também não foi alheio a essa escolha o envolvimento daquele que na minha mente era ainda, apesar de já saber na altura o quanto essa descrição era redutora, "o autor do Física Divertida".

Os meus filhos nasceram e estão a crescer longe de Portugal, num país onde o ensino da Física e da ciência em geral é sempre importante mas raramente divertido. Não tenho a certeza se a minha cópia do Física Divertida sobreviveu a 30 anos de mudanças e arrecadações, mas já sei que livro vou comprar da próxima vez que aí for.

Bem haja, Professor Carlos Fiolhais.

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