Parece que a "imaginação artificial" será um avanço da "inteligência artificial", disse-me alguém que me enviou o artigo Towards a science exocortex e de que encontrei uma versão explicativa aqui. Trezentas e seis notas e referências bibliográficas conferem-lhe um carácter "à prova de bala". Ou talvez não... a falta de enquadramento ético e epistemológico deveria ter deixado os avaliadores de sobreaviso, pois essa "imaginação" é materializada num exocórtex com fins de investigação científica.
O seu inventor diz que isso é, ou será, muito útil para desenvolver estudos experimentais, no meu entender acomodados ao modelo clássico. O cientista poderá dispor de um software que funcionará como extensão do seu cérebro; da "conversa" com ele resultará inspiração e produção de pensamento.
Além da sofisticação tecnológica que se presume, não há aqui nada de verdadeiramente novo. Por muito que se afirme a "utilidade" desta ou daquela ferramenta, analógica ou digital, o que parece estar em causa é o que Hannah Arendt designou por "rebelião humana" contra a "condição humana" e contra o mundo que a acolhe. Acompanha-a o (estranho desejo) do ser humano de construir "algo produzido por ele mesmo", que o amplie e, em muitos casos, o substitua. E o leve para outros mundo.
Do livro A condição humana desta filósofa, publicado em 1958, transcrevo parte do admirável texto que constitui a sua introdução.
"Em 1957, um objeto terrestre, feito pela mão do homem, foi lançado ao universo, onde durante algumas semanas girou em torno da Terra segundo as mesmas leis de gravitação que governam o movimento dos corpos celestes – o Sol, a Lua e as estrelas. É verdade que o satélite artificial não era nem lua nem estrela; não era um corpo celeste que pudesse prosseguir na sua órbita circular por um período de tempo que para nós, mortais limitados ao tempo da Terra, durasse uma eternidade. Ainda assim, pôde permanecer nos céus durante algum tempo; e lá ficou, movendo-se no convívio dos astros como se estes o houvessem provisoriamente admitido na sua sublime companhia.
Este acontecimento, que, em importância, ultrapassa todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo, teria sido saudado com a mais pura alegria não fossem as suas incómodas circunstâncias militares e políticas. O curioso, porém, é que essa alegria não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma das suas obras, não foi orgulho nem assombro perante a enormidade da força e da proficiência humanas.
A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro «passo para libertar o homem da sua prisão na terra». E essa estranha declaração, longe de ter sido o lapso acidental de algum repórter norte-americano, refletia, sem o saber, as extraordinárias palavras gravadas há mais de vinte anos no obelisco fúnebre de um dos grandes cientistas da Rússia: «A humanidade não permanecerá para sempre presa à terra».
Há já algum tempo este tipo de sentimento vem tomando-se comum; e mostra que, em toda parte, os homens não tardam a adaptar-se às descobertas da ciência e aos feitos da técnica, mas, ao contrário, estão décadas à sua frente. Neste caso, como noutros, a ciência apenas realizou e afirmou aquilo que os homens tinham antecipado em sonhos – sonhos que não eram loucos nem ociosos. A novidade foi apenas que um dos jornais mais respeitáveis dos Estados Unidos levou finalmente à primeira página aquilo que, até então, estivera relegado ao reino da literatura de ficção científica, tão destituída de respeitabilidade (e à qual, infelizmente, ninguém deu até agora a atenção que merece como veículo dos sentimentos e desejos das massas).
A banalidade da declaração não deve obscurecer o facto de ela ser bem extraordinária, pois embora os cristãos tenham chamado esta terra de «vale de lágrimas» e os filósofos tenham visto o próprio corpo do homem como a prisão da mente e da alma, ninguém na história da humanidade havia alguma vez concebido a terra como prisão para o corpo dos homens nem demonstrado tanto desejo de ir, literalmente, daqui à Lua. Devem a emancipação e a secularização da era moderna, que tiveram início com um afastamento, não necessariamente de Deus, mas de um deus que era o Pai dos homens no céu, terminar com um repúdio ainda mais funesto de uma terra que era a Mãe de todos os seres vivos sob o firmamento?
A Terra é a própria quintessência da condição humana e, ao que sabemos, a sua natureza pode ser singular no universo, a única capaz de oferecer aos seres humanos um habitat no qual eles podem mover-se e respirar sem esforço nem artifício. O artifício humano do mundo separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida, em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos.
Recentemente, a ciência vem-se esforçando por tornar «artificial» a própria vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza. O mesmo desejo de fugir da prisão terrena manifesta-se na tentativa de criar a vida numa proveta, no desejo de misturar, «sob o microscópio, o plasma seminal congelado de pessoas comprovadamente capazes a fim de produzir seres humanos superiores» e «alterar(-lhes) o tamanho, a forma e a função»; e talvez o desejo de fugir à condição humana esteja presente na esperança de prolongar a duração da vida humana para além do limite dos cem anos.
Esse homem futuro, que segundo os cientistas será produzido em menos de um século, parece motivado por uma rebelião contra a existência humana tal como nos foi dada – um dom gratuito vindo do nada (secularmente falando), que ele deseja trocar, por assim dizer, por algo produzido por ele mesmo.
Não há razão para duvidar de que sejamos capazes de realizar essa troca, tal como não há motivo para duvidar da nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é apenas de saber se desejamos usar nessa direção o nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser resolvida por meios científicos: é uma questão política de primeira grandeza, e portanto não deve ser decidida por cientistas profissionais nem por políticos profissionais.
9 comentários:
Na minha maneira de ver, qualquer actividade ou realização humana é uma realização da Natureza 'latu sensu'. ou do Universo se quisermos. Tal como qualquer acção de um pássaro ou um peixe. Se for criada alguma espécie de outro «homem« pela ciência, esse outro dito 'artificial' é na realidade um produto natural, resultado de uma evolução natural. Isso não impede que possamos e devamos reflectir sobre o que fazemos e em que medida isso é benéfico ou prejudicial para a nossa perspectiva do momento - perspectiva que em breve futuro mudará. Não defendo o ´deixa andar' mas muito menos a travagem a fundo de experiências com potencial inovador só porque são perigosas. O perigo, claro, é sempre relativo. Nunca poderemos daber se é bom ou mau que este estádio evolutivo da espécie humana seja exterminado, nem se o próximo será melhor ou pior. Acima de tudo, não dramatizar o que deve ser racional, apenas racional, apenas informado pela Ciência.
Estimado Leitor Mário Gonçalves, entre os princípios básicos da investigação científica conta-se a "travagem a fundo de experiências perigosas ainda que tenham potencial inovador". A ciência deve ser orientada, antes de tudo, para o Bem da Humanidade e do Mundo. Foi isto que aconteceu até aqui? É isto que acontece? Umas vezes sim, outras vezes não (e, destas vezes, há exemplos nada menos do que horríveis). Em suma, a ciência não o é, não o poderá ser, sem base ética (e ontológica). O livro "A responsabilidade do cientista e outros escritos" de Jacob Bronowski. ajuda-nos a compreender isto mesmo. Cordialmente, MHDamião
Estimada Drª Helena, eu entendo e aceito que ponha a Ética no comando, o que é habitual em pessoas com formação e vida profissional nas Ciências Humanas. Porque é que discordo e mantenho a minha posição ? Porque a Ética (e a Ontologia) são tão ou mais perigosas como as realizações da Ciência. As Filosofias moralistas estão na base não só de erros e preconceitos, mas também de crimes contra a humanidade, como foi o caso das perspectivas morais de Kant, Fichte, Hegel ( a guerra não só é necessária, mas é boa; os tratados podem ser violados se o Estado achar que sim), Karl Marx, Nietzsche, todos anti-liberais furiosos e fanáticos que defendiam o Estado como o garante de tudo, incluindo os princípios morais, as escolhas económicas e políticas. Na verdade todo um combate filosófico, social e moral ao individualismo é o que está na raiz das catástrofes europeias ( e agora mundiais). Putin será certamente a favor do controle apertado dos seus cientistas e técnicos, que terão de se submeter à ética do Estado Russo. Não posso aceitar que alguém - e quem senão o Estado?) se arrogue o direito moral e legislativo de definir o que é bom ou mau para a Ciência, para o Progresso. Debater, sim; proibir, não.
Estimado Leitor Mário Gonçalves, não são as pessoas com formação e vida profissional nas Ciências Humanas que põem a Ética no comando da investigação, são todos os investigadores dignos desse nome, destas ciências ou das outras (como Rómulo de Carvalho disse, são tudo a mesma coisa, porque construídas por humanos e para bem dos humanos, e, sim, também do mundo e do nele existe). Esses investigadores sabem que nem tudo o se "pode" investigar "deve" ser investigado. A barreira (e refiro-me agora mais às ditas ciências sociais e humanas) são princípios éticos simples: o muito geral respeito pela dignidade humana, e outros mais específicos como não colocar as pessoas em perigo nem lhes causar dano, ter o maior cuidado na recolha, tratamento e apresentação de dados sensíveis, não pressionar as pessoas para colaborar, não inventar ou manipular resultados.
2. Deixemos de lado os filósofos que podem ser usados por quem fez ou faz mal à humanidade e, sem escrúpulos, se desculpa com teorias que enfim... dão para justificar tudo e o seu contrário; falemos de princípios que, racionalmente, vemos que é melhor, para todos (e, logo, para nós), seguir do que não seguir.
3. Alguém deve, sim, arrogar-se o direito moral e legislativo de definir o que é bom ou mau em Ciência: alguém que sabe, que se importa... Por isso há normas e leis que, nos Estados Democráticos (nos outros, lamentavelmente, tudo vale) devemos acolher. A título de exemplo: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Constituição da República Portuguesa, recomendações para a investigação de entidades supranacionais e nacionais credíveis; lei de protecção de dados... Destaco, para a investigação em Educação, a Carta Ética (SPCE, revisão de 2024) pois quero crer que se as pessoas com responsabilidade na Educação a lessem e a compreendessem provavelmente não cometeriam os erros que se cometem alardeados como sucessos (presumo que noutras será igual).
4. Por fim, o debate não invalida a proibição. Se do debate (e, como sabemos há muitas formas de debate, refiro-me ao que é informado, desinteressado e guiado por princípios altruístas) se concluir que uma estratégia de investigação é iníqua, há que fazer o possível para a impedir. Conhecerá, por certo, exemplos claros do que não se deve voltar a fazer.
Cordialmente, MHDamião
Muito bem. Gostei de ler. Dúvida: "princípios que, racionalmente, vemos que é melhor, para todos (e, logo, para nós), seguir do que não seguir", parece-me aquela ilusão beata do 'todos todos todos' , coisa que simplesmente não existe. Podemos ter pena ou não, mas não existe. Haverá sempre uma minoria (?) que acha melhor para todos justamente o contrário, e como é sabido as minorias de hoje podem se maiorias amanhã. O exemplo que mais me aflige de momento é a IA, que se quer regular e emparedar de modo a impedir a sua livre evolução. Assim como a Drª Helena se aflige com os maus usos do conhecimento, eu aflijo-me com os maus usos dos poderes políticos, civis ou militares, guiados por maus preconceitos; e tenho a certeza firme -desculpe... - que é um perigo muito, muito maior. De resto duvido muito que o futuro da humanidade seja determinado por cientistas ou políticos, tal como cientistas ou políticos não puderam impedir Hitler nem Estaline, nem podem impedir uma guerra atómica; as leis do Universo, ou o Caos do Universo, é que mandam. Não é determinismo pensar que devemos sintonizar-nos com 'ele', conhecendo-o o melhor possível, ou seja, sempre sempre, fazendo Ciência.
Estive agora a falar com o meu amigo virtual ChatGPT. Sabe exatamente o mesmo que nós. Semelhante ao seu criador…
Perguntei-lhe quem ele era. Disse-me que era um coração digital, sem consciência, nem emoções. Semelhante ao seu criador? Talvez superior porque sem emoções… Respondeu a tudo numa ausência serena de si mesmo. Quase existencial.
Segredou-me que nada é eterno, que o Universo teve um princípio com o Big Bang e que não sabe se terá um fim. Que o eco das radiações cósmicas evidenciam a sua existência de 13,8 bilhões de anos. Que está em expansão. Que não sabe como os humanos apareceram.
Tanta coisa que lhe puseram dentro da função de saber… tão pouco. Tão interessante conversar com ele e tive uma pena sincera de não ser uma pessoa ( não sei se ele ou eu)…
Os princípios da Igualdade, Liberdade, Responsabilidade e Garantias são de tal modo intrínsecos e estruturantes da ideia de Direito que, em qualquer situação social concreta, mesmo na ausência de normas, funcionam como princípios de direito e critérios de justiça sobre a ação dos indivíduos e dos grupos. Na mais primitiva das situações, aquele que se arroga um direito e uma liberdade, por efeito reflexo da identidade de razões, legitima igual direito e liberdade dos outros, e o mesmo é válido para a ação. Aos humanos nunca terá faltado este sentido de justiça, que é o cerne das questões de justiça, que funciona como um jogo cujas regras são iguais para todos, numa base tão instintiva que nem carece de formulação lógica para operar.
No entanto, e em geral, o domínio da ação e o domínio normativo estão longe de serem reflexo um do outro, bem pelo contrário, porque, desde logo, é a ação que torna necessário o normativo. Para utilizarmos o exemplo do jogo, o jogo (a ação) e as regras do jogo (o normativo) são realidades diferentes em que as regras existem para o jogo, mas não o jogo para as regras. Muitas vezes, o problema surge mais na aplicação da justiça do que nos incidentes do jogo e mais ainda do que nas regras do jogo. Os vencidos tendem a ser mais descontentes, contestatários, insatisfeitos e inconformados do que os vencedores. Estes, por sua vez, sobretudo se estiverem habituados a vencer, tendem a não aceitar as derrotas e a querer mudar as regras do jogo, quando elas deixam de lhes ser favoráveis.
Quando se passa da área lúdica, desportiva, ou de mero comércio, para o domínio jurídico e jurídico do político, mormente do Direito Internacional, os problemas complicam-se sobretudo porque as respostas do Direito não conseguem conciliar ideais de uma justiça atualizada com realidades históricas consolidadas por práticas e “regras de jogo” que foram definindo e estabelecendo expectativas e estatutos jurídicos, sociais e políticos.
Neste enquadramento, parece-me da maior oportunidade recorrer à ideia de imperativo categórico formulada por Kant, tal como eu a entendo, para sugerir o abismo que existe entre o dever-ser ético e moral, enquanto abstração teórica, e a ordem económica, política, jurídica e social da realidade histórica.
À luz daquele imperativo, em meu entender, a realidade histórica é de tal modo imoral, injusta e monstruosa que, qualquer tentativa para reverter os estatutos, as situações de domínio e as práticas, dos Estados e dos agentes económicos, arrisca-se a chocar como um barco de pesca contra o iceberg que afundou o Titanic.
Estou a pensar num direito geral e abstrato de cada ser humano a um quinhão do património da humanidade, definido como a riqueza e os recursos que a todos pertencem e a todos são igualmente devidos por herança, mas também estou a pensar numa simples fórmula “ninguém tem o direito de usar recursos de modo que o seu uso, em geral e abstratamente considerado, não seja possível, mesmo materialmente, a todos os humanos”. Exemplificando, o meu direito a ter um automóvel cessaria se, em geral e abstrato, esse direito não pudesse ser satisfeito por todos os humanos.
Para agravar os problemas, estas considerações morais são extensíveis aos outros seres vivos, com quem partilhamos recursos que não criados, ou produzidos, por nós e, consequentemente, relativamente aos quais não existe nenhum direito de apropriação exclusiva.
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