Na visita que ontem fiz ao site online da Direção Geral da Educação vi que se havia acabado de disponibilizar o Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar (para o ensino básico e secundário já existiam Cadernos de Educação Financeira).
Explica-se, muito naturalmente, no texto de apresentação que o documento surgiu "no
âmbito de uma parceria entre o Ministério da Educação, Ciência e
Inovação, o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (Banco de
Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Autoridade de
Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões) e quatro associações do setor
financeiro (Associação Portuguesa de Bancos, Associação Portuguesa de
Seguradores, Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e
Patrimónios e Associação de Instituições de Crédito Especializado).
Não é estranho, portanto, para o Estado constituir uma parceria com entidades financeiras. Sobre isto já me pronunciei por diversas vezes neste blogue, mas não deixo de me surpreender com cada passo que é dado na ampliação e consolidação desta e de outras parcerias congéneres.
Exploro a estrutura: até certo ponto (p. 26) um texto, que se pretende enquadrador, denso, salpicado de referências bibliográficas (onde não faltam as da OCDE) que lhe conferem patine científica. A partir desse ponto, a referência aos temas e sub-temas que constam no Referencial de Educação Financeira e propostas de implementação (p. 32 e seguintes) e a apresentação e análise de projectos (p. 49 e seguintes).
Avanço para a leitura, mas passados poucos parágrafos desisto! Rediz-se o que é dito e redito até à exaustão nos documentos que indiquei em texto anterior e que conheço bem. Já fiz esse esforço (e que esforço!) de decifração e de interpretação, dispenso-me de o continuar.
Regresso à realidade e a realidade é muito simples: este documento destina-se a operacionalizar, a partir das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar, o que se designa por "educação financeira" de crianças dos três aos seis anos de idade! E, pela capa, aqui reproduzida ao lado, percebe-se que sentido ela tem. Tão feliz que está o menino e a menina a brincar com a moeda oficial!
Sendo referida na bibliografia a Convenção sobre os Direitos da Criança (2019), seria de esperar que as entidades e autoras lhe tivessem prestado a devida atenção, nomeadamente no que respeita à dignidade humana, que toca as crianças de modo muito particular dada a sua particular vulnerabilidade, a formas, como as que estão em causa, de conduzir a vida pessoal naquilo que só às pessoas diz respeito.
2 comentários:
“O homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é. É a vaidade em ação.”
Fernando Pessoa
A unificação da carreira docente, abrangendo professores dos ensinos básico e secundário e educadores de infância, revela-se, em diversas situações, uma medida desprovida de rigor técnico e pedagógico. Tal é o caso do Guião para a Educação Financeira na Educação Pré-Escolar, onde se pressupõe que os educadores de infância, enquanto profissionais monodocentes, detenham competências para leccionar conteúdos tão diversos como Português, Francês, Física, Astrofísica, Biologia, Química, História, Matemática, Geografia, Educação Financeira ou Neurociência, entre outros.
A adoção de uma lógica semelhante na área da saúde — unificando, por exemplo, as carreiras de médicos, enfermeiros e auxiliares de ação médica — seria, com razão, alvo de amplo repúdio e considerado um atentado à especialização e à qualidade dos serviços prestados.
É, pois, difícil compreender como se justifica, com base em argumentos pedagógicos sólidos, a produção de documentos orientadores sobre educação financeira dirigidos a crianças entre os três e os seis anos de idade, ainda que elaborados por especialistas, muitos deles com formação avançada nas ciências da educação. Todavia, tais propostas parecem ganhar legitimidade institucional, apesar da sua fragilidade conceptual e questionável aplicabilidade prática.
Falar em filosofia de Buffet, como filosofia de investimento de um investidor que teve grande sucesso, é propaganda enganadora, muito ao jeito do Marketing que invadiu e colonizou as nossas mentes formatadas pelo audiovisual divertido, aparentemente inofensivo e até muito instrutivo, mas atrevido e intrusivo da natural curiosidade dos públicos-alvo, muito à laia de anúncios constantes de um admirável mundo novo que estava a dar entrada no mundo velho como um comboio de música e de efeitos psicadélicos, que tudo contaminam, tão mutantemente interminável que não tem frente nem traseira e que não pode parar, que é para apanhar e deixar em andamento, dando sempre a impressão de que somos nós que estamos parados, mesmo quando estamos dentro dele, porque se parar ninguém entra nem sai e para o tempo de uma fé que logrou grande expansão e se foi consolidando nos templos do consumo, tutelados por inevitáveis e recomendadas organizações de defesa do consumidor, garantes e fiéis depositárias da confiança pública nos guardiões de fictícias passagens de nível, para maior tranquilidade e segurança de todos.
A dita filosofia de Buffet não é senão um conjunto de princípios ou regras de investimento que, se forem seguidas, resultam quase necessariamente, exceptuando casos de força maior incontroláveis. Mas isso começa por ser sempre o cartão de apresentação das instituições financeiras, a quem não favorece que haja sequer a suspeita de que querem enganar e aproveitar-se da legítima ambição ou mesmo ganância dos investidores. É uma espécie de tábua dos mandamentos infalíveis. De acordo com esses mandamentos, qualquer pessoa, e não apenas o senhor Buffet, ganha sempre na bolsa e quase nunca perde.
Ora, é aqui que está o problema e a alma do negócio, até porque, não é isso que vemos acontecer. Se a literacia financeira não fosse uma forma avançada e sofisticada de evangelização pelos credos firmados, ainda que apenas num senhor Buffet e servisse para algo mais do que para encorajar, recrutar e mobilizar potenciais investidores, abrindo-lhes as portas secretas do labirinto do Minotauro…
Ainda assim, o/a professor/a deveria ser Ariadne e cada aluno Teseu.
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