sexta-feira, 2 de maio de 2025

ACERCA DA DIGNIDADE HUMANA NO TRABALHO

Vale a pena ver na RTP Play (aqui) a entrevista com o título O trabalho não é mercadoria, que a historiadora Raquel Varela fez a Alain Supiot, especialista em filosofia do direito e direito social e do trabalho. Reproduzo três breves extractos:

01:03 "... considerar o trabalho como uma mercadoria é algo muito recente na história do trabalho. Surge com o capitalismo (...) – e isto foi o grande economista Karl Polanyi que o explicou – tratar como mercadorias três coisas que não são mercadorias: o trabalho, isto é, os seres humanos, a terra e a moeda (...). São ficções jurídicas que pressupõem, para serem defensáveis, que exista um direito ambiental que proteja a natureza, um direito do trabalho que proteja os seres humanos e uma legalidade monetária que garanta o valor da moeda. Na maior parte da História, o trabalho não é considerado uma mercadoria. Havia homens livres que viviam da venda do produto do seu trabalho e havia os escravos considerados eles próprios uma mercadoria."

39:26. "O neoliberalismo é o último avatar do cientismo. É a ideia de que haveria uma ordem espontânea no mercado que é preciso impor em todo o planeta e então surgirá a melhor justiça possível. E todas as tentativas dos seres humanos para questionar se é justo ou não, só irão entravar o bom funcionamento espontâneo, homeostástico da sociedade (...). Donde, a necessidade de restringir a democracia. Isto é claro nos autores neoliberais. O grande historiador do neoliberalismo é Quinn Slobodian que escreveu um belíssimo livro sobre ele. E eles estão todos de acordo ao dizer que a democracia não pode perturbar a distribuição das riquezas do trabalho porque isso é feito espontaneamente nas melhores condições possíveis pelo mercado. É por isso que foram admiradores de Pinochet, ou seja, de um sistema onde não existe essa perturbação. Hayek, que é uma das grandes figuras da economia neoliberal, para descrever o papel dos governos utiliza uma imagem muito eloquente: são como os relojoeiros que lubrificam os mecanismos do relógio. Isto é, o relógio funciona sozinho e o governo deve velar para que o mercado funcione por si só. Evidentemente, trata-se de uma miragem que produz injustiças e a injustiça produz sempre violência."

50:26. "Os nazis falavam de material humano e Estaline de capital humano. Estamos aqui numa espécie de cientismo que vê os seres humanos como matéria-prima e que é cego perante as questões antropológicas do trabalho. Por conseguinte, é preciso sair disso... Vou citar o Preâmbulo da Constituição da OIT [Organização Internacional do Trabalho] estabelecendo um regime de trabalho verdadeiramente humano (...) que permita a cada um incorporar uma parte daquilo que é naquilo que faz. Tanto Estaline como Hitler consideravam aqueles que metiam nos campos como escravos destinados à morte (...). Simone Weil diz, e muito bem, que é a projeção sobre o trabalho humano da noção física de força. Só vemos neles uma força que podemos dominar."

4 comentários:

Anónimo disse...

Em Raquel Varela, prefiro a forma ao conteúdo académico-conceptual, mas isto não significa que, ao nível das ideias, não tenha alguns pontos de contacto com ela.
Eu vi, em primeira mão, a entrevista que a historiadora fez a Alain Supiot, especialista francês em filosofia do direito e do trabalho. Em dado momento falou-se da organização do trabalho em hospitais e escolas, tanto em França como em Portugal. Alain Supiot disse que, em França, os enfermeiros e os médicos ficaram revoltados quando as chefias os obrigaram a preencher resmas de papelada burocrática, onde se detalham ad nauseam as boas práticas a cumprir no trabalho, assim roubando-lhes tempo e disposição para tratarem bem dos seus doentes! Diz Alain Supiot que os profissionais da saúde só pediam que os deixassem em paz!
Este exemplo de irracionalidade na organização do trabalho serviu para ilustrar o predomínio dos resultados numéricos, ou seja, da quantificação, na economia neoliberal, em prejuízo do bem-estar dos trabalhadores e da qualidade dos serviços e bens produzidos.
Raquel Varela deu o exemplo dos trabalhos académicos que são, antes de mais, avaliados pela sua quantidade. Valem mais seis trabalhos medíocres do que um trabalho muito bom!
Depois temos os exemplos das escolas secundárias em Portugal. Para que sejam muito produtivos, os professores são encerrados, horas a fio, a preencher montes de grelhas e relatórios indispensáveis ao processo burocrático de certificação do sucesso de todos os alunos, quer estes tenham aprendido muito, pouco, ou nada, em contexto de sala de aula. O papel principal do professor já não é ensinar. Agora o mais importante é tomar conta dos alunos, enquanto os encarregados de educação trabalham nos serviços, nas fábricas e nos campos.
No ensino profissional, tanto professores como alunos têm de cumprir escrupulosamente o número de horas de formação. Cumprido esse requisito básico, o sucesso vem, inevitavelmente, nem que voem mesas e cadeiras, por acréscimo...

Carlos Ricardo Soares disse...

Somos seres de linguagem ao ponto de não podermos separar aquela parte da linguagem com que percepcionamos da parte que percepcionamos sem os filtros da linguagem.
Mas, com ou sem ideologia, com ou sem religião, com ou sem partido, com ou sem pátria, com ou sem filosofia, todos temos uma condição biológica semelhante, independentemente dos rótulos, das classificações, e das condições sociais e culturais.
Normalmente, o que nos move e influencia a nossa vontade é uma situação em que combinamos, de múltiplas formas, o que queremos, o que podemos e devemos querer, o que é conveniente querer, em função do que está ao nosso alcance obter.
Se os indivíduos funcionassem sem estarem agregados ou agrupados em partidos, religiões, instituições e Estados, tenderiam a reivindicar para si razões, direitos e liberdades, de exercício e de gozo, que se definiriam como limites à ação e interferência dos outros. Não passaria pela cabeça de ninguém querer impor aos outros, por exemplo, uma condição de inferioridade e de submissão, por via ideológica, religiosa, económica, estética, ou física.
Quando organizados e estruturados em grupos, partidos, religiões, bandeiras, ideologias, políticas, começam os grandes problemas. É quando vemos líderes de partidos, que não se limitam a defender e a reclamar proteção para seus os direitos e liberdades, que até nem estarão em causa, a defender uma ordem e a querer dizer e impor aos outros o que eles acham que lhes deve ser imposto. Esta vontade, esta mobilização dos grupos para dizer aos outros, e impor-lhes, não apenas justos limites da sua esfera de ação, mas sobretudo limites ditados e justificados pelos seus interesses e pela sua força, ainda que democrática, ou culturalmente estabelecida, é algo que legitima o uso da força e o confronto violento como forma de resolver problemas que o direito não resolve, porque não há respeito pelo direito se este não for coercivo.
Discutir quem tem razão, qual o sistema político económico mais justo, ou as formas de governação mais adequadas à salvaguarda do mérito, da liberdade, da igualdade e do desenvolvimento social, pode ser muito interessante para os académicos e os teorizadores e os filósofos, mas para o comum dos mortais, agricultor, comerciante, operário, banqueiro, negociante, industrial, administrador de empresas, chefes de gabinete, traficantes, contrabandistas, presidentes de junta, feirantes, artistas de circo, desportistas, casas de apostas, casinos, etc., nem chegam a ser problemas.
É um pouco como a ideia da paz pela força. A discussão da paz justa cede à tentação da imposição da força.
Está de volta a redução à estaca zero dos debates em torno da justiça das políticas e das políticas económicas e de justiça. As políticas, nomeadamente económicas, são boas e são justas enquanto houver interesse. O critério de bondade e de justiça das soluções é a satisfação do maior interesse possível.
Vamos assistir a todo o tipo de conflitos derivados da generalização deste critério como base das regras de um jogo que muitos sabem de antemão estar montado para serem sempre os mesmos a ganhar, aqueles que desfazem o casino quando começam a sentir-se ameaçados.
De resto, a liberdade de ir ou não ir a jogo nem sequer existe.

Rui Ferreira disse...

"A governação pelos números abrange todos os sectores do trabalho, bem como todas as hierarquias, incluindo os próprios dirigentes políticos, consubstanciando-se no princípio que vale tudo para aumentar as margens de lucro".

"Estamos a assistir ao regresso de formas de servidão (uberização governado por algoritmos). A uberização não está só nas entregas, na edição chamam-se freelancers, a ideia de que são livres, mas é uma promessa falsa".

"A subcontratação é uma das características do neoliberalismo e um dos males que causou é que permite a dissociação entre os lugares de exercício do poder e aqueles onde é imputada a responsabilidade. Ou seja, aquele que tem o poder pode esconder-se por detrás de outras personalidades jurídicas e morais, para não ter de responder pelas suas próprias decisões".


"Enquanto, na sociedade, todos concordam quanto ao que é o mal: a violência, os roubos, a brutalidade… Mas sobre o que é justo, aí já há um problema".

Carlos Ricardo Soares disse...

O problema da garantia dos direitos fundamentais, como das regras e da lei, em geral, é que só funciona se e enquanto os titulares desses direitos também os respeitarem, ou seja, que quem os invoca a seu favor não seja passível de imputação da sua violação. Só estamos vinculados aos direitos dos outros se e na medida em que eles o estiverem. Um tirano que rasga a Declaração dos Direitos Humanos não deve estar à espera que os outros a respeitem se isso lhe interessar. O mesmo se diga do Direito Internacional, em geral. O problema que coloquei no texto anterior também toca neste aspeto. Frequentemente, os ordenamentos jurídicos servem sobretudo, mesmo nas democracias, para que "os outros" os respeitem, havendo uma parte da população a quem aproveitam os direitos mas que não está onerada, nem responde, pelos deveres e pelas correspondentes obrigações. Fazer leis para "os outros" é mais comum do que parece e esses "outros" têm uma aguda percepção dessa realidade perversa.

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