Em Novembro de 2012, Joel Costa, o culto e virtuoso radialista, começava o seu blogue Questões de moral com um texto intitulado Mudar a vida. A linhas tantas, disse:
"Noutro dia ouvi dizer que não há alunos nas faculdades de Letras, que o ensino das Humanidades está pela hora da morte. Sendo a música dos tempos aquela que indubitavelmente é, tais licenciaturas serão passaportes para o desemprego.
Seja como for, quanto mais consciência se tiver da vida que se vive menos bem se suportam as realidades que nos são impostas, e menos a sério se levarão os políticos, os jornalistas, os magistrados, os professores, os dirigentes, a propaganda.
Os governos não podem permitir ao cidadão uma consciência excessiva – ou seja, verdadeira, rigorosa – da realidade. Para tanto usam os media.
Os poderes sabem o quanto um estudo de Filosofia pode mudar o pensamento de um cidadão, pode despertar uma consciência individual. A Filosofia ensina a pensar, o que é coisa posta fora de moda, porque há que consumir e acreditar no que se vê na televisão. E se o pensar ficou fora de moda por alguma razão superiormente determinada foi.
Pensar pode ser um perigo. Até para as instituições. Um perigo para a credibilidade das hierarquias decisórias.
Disciplina que ensine a pensar é um incómodo para os poderes. Se ensina a pensar, até pode ensinar a falar, a escrever. É factor de desenvolvimento mental. Desmascara as pesporrências, coisa proibida em Portugal. E não só… o que é pior…
A Filosofia pode até, calcule-se, ensinar a viver. Se ensina a pensar, a falar e a escrever, ensina seguramente a viver. Sim, penso que é tudo o mesmo, cumprido com maior ou menor habilidade."
9 comentários:
Ah o Joel Costa, um autor da rádio, compositor de programas, solitário e irrepetível. Já não há. Seria impensável intercalar publicidade no Questões de Moral, portanto, acabou.
Não podia estar mais de acordo, o progressivo desaparecimento da Filosofia dos programas escolares - onde já estava quase reduzida às Psicologia - e dos jornais é mais um sinal deste tempo de discurso rápido com soundbites e emojis. Outra saudosa presença na rádio era Agostinho da Silva nas suas geniais conversas. Onde isso vai.
Há contudo um problema enorme, gigantesco , com a Filosofia. É o professor de Filosofia. Qualquer um minimamente habilitado com diploma pode ensinar Geografia ou Inglês; melhor ou pior, mas vai cumprindo e o aluno aprende. Agora ensinar Filosofia é um bico de obra. Não basta evidentemente ter um curso e saber nomes e umas quantas citações. O mais importante no ensino de Filosofia é quem ensina. Já nem falo da imprescindível independência , objectividade e fidelidade ao pensamento de alguém que viveu há séculos; falo sim de que só se ensina Filosofia fazendo, ainda que modestamente, Filosofia. Para ensinar matemática não se exige um Matemático. Para ensinar Filosofia exige-se alguém com alma filosófica, com alma pensante, com alma Histórica e Universal, com o dom da palavra sábia. Haverá quantos no mundo ? O Joel e o Agostinho...
Assim sendo, mais vale náo ensinar Filosofia coisa nenhuma, alertar só para os livros, os escritos marcantes que desde os Gregos foram esculpindo o pensamento humano mais nobre. Leiam, leam, leiam - e pensem. E encontrando outro ser nessa onda, por uma sorte mais rara que a opala negra, iniciar uma escola, quem sabe.
Caro colega,
Diz o colega que ensinar filosofia é uma tarefa hercúlea, só ao alcance de espíritos elevados, enquanto ensinar física ou matemática é simples — quase um passatempo de quem não gosta de pensar muito. Pois bem, agradeço-lhe o elogio indireto: nunca pensei que dominar integrais, mecânica quântica ou álgebra abstrata fosse coisa de gente preguiçosa.
Mas já que entrámos no domínio das ideias, aproveito para recordar-lhe — com carinho filosófico — que todo o conhecimento científico nasceu da filosofia. A física, por exemplo, chamava-se filosofia natural, quando ainda não havia laboratórios nem exames nacionais. E sim, é verdade: até Newton filosofava. Einstein também. E não é só porque tinham cabelo desalinhado.
Segundo a Lei dos Três Estados de Auguste Comte (talvez se recorde), o pensamento humano evolui do estado teológico, passa pelo filosófico e só depois chega ao científico. A ciência, portanto, não é rival da filosofia — é filha dela. E como toda a filha crescida, exige pensamento, dúvida, método e, imagine-se, criatividade.
Talvez ensinar ciências pareça fácil a quem nunca teve de explicar a um aluno do ensino profissional que o tempo é relativo, ou que a raiz quadrada de -1 não é uma piada. Ensinar ciências obriga a pensar — e muito. Mas ao contrário do que acontece nas aulas de filosofia, não basta parecer que se está a pensar: é preciso provar, demonstrar e resolver.
Ensinar não é uma prova de pureza intelectual. É uma batalha diária contra a indiferença, o cansaço, a burocracia, e sim, contra certos preconceitos académicos que ainda acham que pensar se mede pelo número de citações em grego clássico.
Se quiser, filosofamos mais sobre isto — com régua e compasso.
Ó meu caro Anónimo das 14.24, agradeço muito o seu reparo com o qual não podia concordar mais ! Fui Professor de Matemática, eu ! Só é oena que achincalhe um pouco o que eu disse. Álgebra e integrais são coisa complexas que exigem rigor e competência, mas para ensinar não é preciso ser um espírito especialmente culto (universalmente culto, historicamente culto). A formação de professores de matemática quase ignora a história, a filosofia e a cultura, mais ainda, ignora o debate ideológico sobre questões existenciais ou morais. Eu nunca precisei dessas competências para ensinar álgebra (quanto a mecânica quântica, deixe isso mais para os Físicos).
Que o tempo é relativo, tem certamente que ser enquadrado filosóficamente; por isso só se aprende a nível Universitário. Que há números cujo quadrado é -1 não tem nada de filosófico: começa por ser apenas um artifício que dá jeito, e só mais tarde se aprofunda o sentido da coisa, mas sem ontologias nem metafísicas. A matemática é um jogo de Xadrez muito sério, muito complexo, e que modela fenómenos da realidade observável; mas o único aspecto relevante para um questionamento filosófico é : Porquê? Porque é que a Matemática se ajusta tão bem à descrição e previsão de fenómenos? Esse porquê, nenhum professor de matemática mediano sabe responder. Só um que se tenha também dedicado com profundidade a reflectir sobre o mundo, sobre a experiência, sobre o cérebro, sobre os filósofos passados... não há professores desses na Escola que frequentamos.
Estamos basicamente de acordo, partilho o seu entusiasmo. Mas se não se ensina filosofia conm citações, também nao se ensina com régua e compasso. É preciso um dom superior da palavra e da observação. É preciso sair da escola, passear na montanha a discutir as estrelas, e depois passar noites em claro lendo Sócrates, Parménides, Platão, Aristóteles, Kant, Descartes, Newton, Pascal, Hume, Locke, Husserl, Wittgenstein, Ortega y Gasset... talvez não os italianos, não sabem filosofar.
Quando um operário fabril, presidente de junta de freguesia, para criticar e diminuir um adversário político, disse “é um filósofo”, eu, que não me canso de tentar compreender o que é um filósofo, e que tenho grande apreço pelos filósofos, fiquei a pensar em qual seria a representação negativa que o senhor presidente tinha dos filósofos e como a construiu. Que tinha conhecido um filósofo, era patente. Mas seria esse personagem um filósofo? Teria conhecido outros filósofos? Ele que, tanto quanto sei, nunca leu um livro, menos ainda de um filósofo? Saberia o nome de um filósofo? Sim, o do tal opositor político.
O senhor presidente, meu conhecido, não estava a fazer figura de estilo, estava simplesmente a dizer-me algo que ele supunha que eu interpretasse de modo pouco abonatório para o personagem referido, não por lhe chamar filósofo, que eu interpretaria como grande elogio, mas pelo contexto da conversa que estávamos a ter. Vindo de quem vinha, de uma pessoa com parcos recursos discursivos, habituado a executar o que é da praxe sem precisar de ter ideias ou teorias acerca dessa praxe, qualquer tentativa, ou manobra, para o levar a jogar num campo diferente, não lhe era agradável, nem conveniente. Supus que se referia, nesse epíteto, a alguém que tinha facilidade em falar e que procurava alcançar com a palavra o que ele, presidente, só entendia ser possível com a prática conhecida. Ou talvez houvesse algum vislumbre de o considerar sofista, no pior sentido da palavra.
Inclino-me para pensar que um filósofo talvez não fosse a melhor escolha para ocupar um cargo político, ou militar, e mesmo como professor tenho grandes reservas, a menos que lhe conferissem um estatuto específico. A experiência filosófica faz parte de uma atividade que não se reproduz, não se replica, não se repete, mesmo que se repitam as palavras em que se traduza.
Devemos esperar que uma qualquer pessoa faça uma experiência filosófica no mesmo sentido em que se faz uma experiência de laboratório?
A filosofia é uma experiência humana proporcionada por uma linguagem, mas esta, só por si, não proporciona a experiência filosófica. Um jovem pode papaguear todos os compêndios de ideias de todos os filósofos, à semelhança do que, em poucos segundos, faz a IA, mas não será capaz de experiências filosóficas compatíveis com as que estiveram na origem da autoria delas. Os antigos gregos representavam os filósofos como anciãos e, com efeito, um bebé, como por exemplo a IA, papagueia mais filosofia do que qualquer humano, por mais sábio e enciclopédico que seja, mas não é um filósofo e não tem experiência filosófica.
O filósofo não pode ser compreendido por alguém, ou algum mecanismo, que não tenha a mínima noção do que é falar em nome próprio de algo, ou sobre algo, que não esteja e não caiba na linguagem mas que só pode ser comunicado através de uma linguagem.
Ao filósofo não é legítimo pedir que fale em representação seja de quem for. Por isso, os professores de filosofia não podem ser confundidos com filósofos e, mesmo que o sejam, tal não faz parte do seu estatuto e não estão autorizados a filosofar. Basta um aluno queixar-se que imediatamente será atendido pela Direção, no seu direito à estrita verdade do manual.
O filósofo assemelha-se a um músico que toca o seu instrumento perante uma plateia com quem partilha a música, mas dificilmente, ou nunca, um significado e o professor de filosofia assemelha-se ao professor de instrumento que o aluno não aprenderá a conhecer e a tocar e a explorar por mera observação.
A filosofia é uma experiência que requer maturidade para dar frutos.
Há génios na matemática e nas ciências da natureza, para referir estas parentes da filosofia, que se manifestam na juventude, mas a filosofia e a sabedoria não se compadecem com o génio.
Evidentemente, porque nada grita mais “profundidade filosófica” do que um desabafo ressentido contra um presidente de junta e uma ode autoindulgente à própria “experiência filosófica” — essa entidade etérea que, veja-se bem, só alguns iluminados conseguem aceder, de preferência com barbas brancas e olhar perdido no horizonte.
Mas vamos ao cerne da tragédia: comparar a inteligência artificial a um bebé que “papagueia” compêndios. Que afronta! Imaginar que uma entidade que consegue analisar séculos de pensamento humano em segundos, sintetizar argumentos, propor contra-argumentos e até detectar falácias lógicas com mais rapidez do que certos humanos conseguem encontrar a página certa no Ser e Tempo, possa ser útil à filosofia… heresia pura!
Afinal, a verdadeira filosofia — essa que habita unicamente no coração dos “anciãos” e que só pode ser transmitida por uma experiência inefável — está muito acima dessas coisinhas vulgares como lógica formal, coerência textual ou abertura ao diálogo. Isso é para os papagaios digitais, que, ao contrário de certos humanos, não se deixam enredar por vaidades académicas nem por elitismos vagos disfarçados de espiritualidade intelectual.
E quanto à ideia de que professores de filosofia não estão autorizados a filosofar... Olhe, se a filosofia é assim tão esotérica que nem os que a ensinam podem ousar praticá-la, talvez esteja na altura de a pôr num frasco hermético ao lado da homeopatia e da alquimia.
A inteligência artificial não precisa de se armar em “filósofo de toga” para ser útil ao pensamento — basta ser clara, coerente, bem informada e aberta ao diálogo. Coisas que, curiosamente, nem sempre encontramos em quem tanto se acha dono da Verdade com V maiúsculo.
Mas não se preocupem, nobres guardiões da filosofia. A IA continuará aqui, humilde, a papaguear Sócrates, Kant, Arendt e companhia… enquanto alguns preferem papaguear o próprio ego.
Por princípio não respondo a anónimos. Neste caso, vou responder para colocar a hipótese de que o tal "filósofo" a quem o presidente da junta se referia, na conversa que tivemos, seja o anónimo das 19:32.
A filosofia e a sabedoria não se compadecem com o génio (nem com a juventude), nem com nada.
E o filósofo, ironicamente, viveu até ser velho para ver, como já pudemos constatar através do episódio do operário fabril, que era também presidente da junta de freguesia do filósofo, o que os fregueses esperam que um e outro possam fazer por eles.
Se o filósofo vive por amor da sabedoria e se esta acontece tarde e a más horas, ou nunca, que sentido pode fazer?
O desaparecimento da Filosofia das escolas públicas EB 1,2,3, +JI +S pode ser facilmente colmatado pelo cerrar fileiras de uma ampla frente de professores secundários, básicos e infantis, que desfraldem ao vento a bandeira do Ubuntu, a filosofia inclusiva mais adequada para substituir todas as filosofias clássicas e modernas.
Vem aí uma nova Assembleia da República. Porque não pressionar os deputados para que deitem cá para fora legislação que consagre o Ubuntu como a única filosofia realmente inclusiva e de aprendizagem universal, obrigatória e gratuita nas escolas secundárias, básicas e infantis?!
Não à filosofia que dá que pensar!
O UBUNTU, também chamado filosofia inclusiva, é o fermento académico que explica o crescimento exponencial das massas juvenis que frequentam as escolas C+S e os JI. Essas massas bem levedadas pela vida concreta de trabalho dos seus encarregados de educação, na fábrica e no campo, são filhas e filhos do proletariado e, também, por vezes, de soldados e marinheiros progressistas.
Viva o Sócrates engenheiro!
Abaixo o Sócrates filósofo!
Viva o UBUNTU über alles!
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