sexta-feira, 11 de novembro de 2022

"ASSIM SÃO OS TIRANOS"

Uma das obras mais admiráveis que li sobre a condição humana e a dignidade que deve ser a sua marca distintiva foi escrita por um jovem de dezoito anos. O título é Discurso da Servidão Voluntária e o seu autor é Étienne de La Boétie, nascido em França em 1530 e falecido em 1563, sem ter completado trinta e três anos. Amigo de Michel de Montaigne, deixou-lhe em testamento o seu espólio e foi este que publicou o Discurso em 1577.

La Boétie foi diplomata, político, poeta e traduziu autores clássicos. São evidentes as referências greco-latinas (presentes desde a primeira à última página da obra) na leitura dos conflitos sociais que conheceu. 

Nessa leitura viu um problema que passou a explorar: como é possível o povo, a maioria, submeter-se, sem resistência, voluntariamente, à vontade de um só homem, um rei ou equivalente? 

Eis a formulação desse problema e algumas passagens significativas da resposta que ensaiou. Resposta que, passados quase seis séculos, mantém inteira actualidade:
“Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente (…). 
Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem humidade e alimento, se torna ramo seco e morto (…). 
Numa só coisa, estranhamente, a natureza se recusa a dar aos homens um desejo forte. Trata-se da liberdade, um bem tão grande e tão aprazível que, perdida ela, não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter. Gentes miserandas, povos insensatos, nações apegadas ao mal e cegas para o bem! Assim deixais que vos arrebatem a maior e melhor parte das vossas riquezas, que devastem os vossos campos, roubem as vossas casas! (…) 
Mas parece que vos sentis felizes por serdes senhores apenas de metade dos vossos haveres, das vossas famílias e das vossas vidas; e todo esse estrago, essa desgraça, essa ruína provêm afinal não dos seus inimigos, mas de um só inimigo, daquele mesmo cuja grandeza lhe é dada só por vós, por amor de quem marchais corajosamente para a guerra, por cuja grandeza não recusais entregar à morte as vossas próprias pessoas. Esse que tanto vos humilha tem só dois olhos e duas mãos, tem um só corpo e nada possui que o mais ínfimo entre os ínfimos habitantes das vossas cidades não possua também; uma só coisa ele tem mais do que vós e é o poder de vos destruir, poder que vós lhe concedestes. Onde iria ele buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis? Onde teria ele mãos para vos bater se não tivesse as vossas? Os pés com que ele esmaga as vossas cidades de quem são senão vossos? Que poder tem ele sobre vós que de vós não venha? Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência? Que poderia ele fazer se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos? (…). 
Enquanto vós definhais ele vai ficando mais forte, para mais facilmente poder refrear-vos. E de todas as ditas indignidades que os próprios brutos, se as sentissem, não suportariam, de todas podeis libertar-vos, se tentardes não digo libertar-vos, mas apenas querer fazê-lo. Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que o empurreis ou o derrubeis, mas somente que o não apoieis: não tardareis a ver como, qual Colosso descomunal, a que se tire a base, cairá por terra e se quebrará.”

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