quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Do direito à indignação

Por Isabel Ponce de Leão 

Eugénio Lisboa é, em meu entender, o melhor autor da escrita do eu e um dos maiores ensaístas vivos. Independência, irreverência, acutilância, sinceridade, coerência tornam-no, pontualmente, incómodo no mundo académico, e ainda bem. 

Por vezes é preciso “Meter os estribos na barriga da burguesiazinha” (Di Cavalcanti) e, através de um rigoroso argumentário, destemido de capelistas e quejandos, manifestar, como o autor de Uma Conversa Silenciosa (2019), o direito à indignação também através da palavra poética (eg. Poemas em tempo de peste, 2020). 

Através dela, da palavra poética de Eugénio, evoco Schlegel: “Há tanta poesia, e, no entanto; nada é mais raro que um poema”. Ora os textos que integram poemas em tempo de guerra suja (2022) patenteiam a irredutibilidade, a especialidade e a irreversibilidade do poema enquanto ponto de encontro com o homem, contrariando Schlegel e também George Lukás quando afirma: “Há muitos versos, mas há pouca poesia”. 

A obra de arte – e aqui refiro-me à arte poética – inquieta, desafia, reclama tempo e reflexão. Grandes escritores – Sá-Carneio, Pessoa, Régio, … –, na euforia imediatista, foram alvos de críticas vorazes e só o tempo se encarregou de lhes fazer justiça. Presentemente, não se dá tempo ao tempo e aplaudem-se fenómenos histriónicos que só o mesmo tempo silenciará – irá fazê-lo, por certo. 

Eugénio Lisboa não cabe dentro desses fenómenos histriónicos mas a sua linguagem cria e sustenta algo que a transcende, produz sinergias antagónicas em permanente apelo à participação cívica. Há, na sua poética, uma identificação forma / substância através do material sonoro, das opções lexicais, das construções frásicas, das associações de ideias, do exigente respeito pelos ancestrais ditames da Ars poetica

Estes poemas em tempo de guerra suja são, antes de mais, um valiosíssimo grito de alerta para os riscos em que a humanidade incorre, mas são também reacções a momentos do quotidiano, coetâneos dessa guerra suja, em que os afectos não se ausentam. 

A invasão da Ucrânia pelo Kremlin prefigura-se aqui na maligna figura de Putine, 
“o ditador” (p. 17), “o opressor” (p. 17), “o bufo prodigioso” (p. 26), “o psicopata” (p. 29) ou o “Mostrengo” (p. 41) que assim retrata: “Pálido e traiçoeiro, / ele tem o sangue frio, / de insensível bandoleiro, / que convoca calafrio. // Bufo de rosto sombrio, / assassino mafioso, / solitário arredio, / bom cliente de Lombroso, // salafrário teimoso, / saudoso de impérios, / megalómano ardiloso, / vomitando impropérios, // bom filho de Satanás, / bicho que não teve mãe, / no inferno assarás / ou dele ficarás refém!” 
Contudo, ao longo da obra, vai-se dando conta que este miserável Putine mais não é que a encarnação pontual, metonímica e efémera, ainda que carnificina, da forma pouco dialogante, gerada na ineptocracia, como a humanidade gere os seus conflitos. 

A guerra é, aqui, o monstro a que alude Padre António Vieira, e se hoje, Kiev é “Túmulo frio de heróis” (p. 21), amanhã sê-lo-á todo o planeta, não só por guerras como também pela inconsciência ecológica reinante. Altamente perturbado pelo momento actual, o poeta estabelece pontes com outras guerras, outras tiranias, outros malefícios que vão dizimando a raça humana.

A cobardia e uma certa forma de hipocrisia inscreve-as Eugénio Lisboa, especificamente, no poço dos grandes males da humanidade, visíveis em poemas onde o tom acusatório intimida os que calam e consentem, ou os que se confortam em guetos protectores como são os casos de “Interpelação aos poetas portugueses silenciosos perante a catástrofe” (pp. 18-19), “Small is beautiful” p. 48), “A obscena adversativa” (p. 49) ou “Classificação taxonómica do filho da mãe” (p. 63).

Mas não só de guerra vive esta poesia e, embora seja esse o tempo da produção, há, nesta obra, lugar a outras reflexões. Por um lado, fortes preocupações metapoéticas em que o soneto, forma aqui privilegiada, se questiona, questionando (eg. “Arte poética escarninha ou soneto maldisposto”, p. 59, “Do uso enviesado das palavras”, p. 61 ou “Para que serve o soneto”, p. 82) bem como, recorrentes e oportunas práticas intertextuais reveladoras não só da enciclopédia cultural como da sensorial do autor de Acta est fabula; por outro, para além do referido despotismo, configurado na guerra, três linhas axiais se destacam: a evocação da juventude sempre amparada por Sísifo, em locais sabiamente implícitos, visível em “Os cisnes da nossa infância” (p. 95) ou “Lá antigamente” (p. 108); a consabida devoção aos felinos a quem consagra – sobretudo à Ísis – uma meia dúzia de poemas extravasantes de afectos; e talvez a mais forte mas não por isso derrotista ou angustiante: a fugacidade da vida e o “Inventário de perdas” (p. 36), deixadas no percurso; direi o quase lamento do inacabado (“Un petit obstacle inattendu”, p. 37) ou o “Balanço do não feito” (p. 73), e o percurso para “A banalidade da morte” (p. 55) contabilizado no “Soneto do último ano” (p. 85) ou em “Vita Brevis” (p.104). 

Tudo dito através de um inusual respeito à métrica e à rima, disciplinadoras do pensamento, espelhamento do hard labour; tudo ainda dito de forma corajosa, sem a preocupação do politicamente correcto, num estilo coloquial e, concomitantemente, pleno de erudição, em que a ironia mordaz viabiliza jogos de palavras com recurso ao oportuno calão, clara expressão de estados de fúria e revolta longínquos de uma qualquer rendição.

Acresce o facto da genialidade diarística e memorialística espreitar, sibilinamente embora, em muitos destes poemas. “Que pena” (p. 91), “Os amores assassinados” (p. 96) ou “Uma vida cheia” (p. 111) são paradigma da atracção pela escrita do eu de quem alcança a mestria de ser capaz de falar de si sem se desvendar, mesmo se admitindo: “Que pena sabermos só já tão tarde / onde é que o verdadeiro calor arde!” (p. 91) 

poemas em tempo de guerra suja marcam o direito à indignação, face ao estado do mundo actual, com o virtuosismo de, desassombradamente, o exibirem. Direito conquistado por alguém, escrevi um dia, cuja poderosa forma de integridade interior, fez com que, ainda que instado a viver na Casa Grande, nunca virasse costas à Senzala

Eugénio Lisboa (2022). poemas em tempo de guerra suja. Lisboa, Guerra & Paz.

Isabel Ponce de Leão 

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