sábado, 5 de novembro de 2022

MEU PREFÁCIO A «AMOR, MATEMÁTICA E OUTROS PORTENTOS» DE JORGE BUESCU (GRADIVA)

 


O número sete tem um significado especial na nossa cultura: são sete os pecados capitais, os sacramentos, as notas da escala musical, as cores do arco-íris, as vidas dos gatos, os anões que acompanham Branca de Neve, as colinas de Roma (e também de Lisboa), e os livros do Harry Potter.

A partir de agora são sete os livros do Jorge Buescu na colecção «Ciência Aberta» da Gradiva. O autor reforça assim a sua posição de dianteira como o português com mais títulos publicados nessa colecção. Os seis títulos anteriores, por ordem de publicação (o ano está indicado entre parenteses), são: O Mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias» (2002); Da Falsificação de Euros aos Pequenos Mundos. Novas Histórias das Fronteiras da Ciência (2003); O fim do mundo está próximo? (2007); Casamentos e outros desencontros (2011); Primos Gémeos, Triângulos Curvos e outros Histórias da Matemática (2014); e Curvas Ideais, Relações Desconhecidas e Outras Histórias da Matemática (2018).

O presente Amor, Matemática e outros Portentos é uma bela adição. O título é assaz curioso como os demais. Refere-se à história de um casal de matemáticos britânicos que viveu nos séculos XIX e XX, Grace Chisholm Young e William Henry Young (primeiro as senhoras). E, tal como nos livros precedentes, trata-se de uma colectânea de crónicas sobre temas matemáticos que o autor escreveu para a revista Ingenium da Ordem dos Engenheiros. O autor, físico de formação e matemático profissional, colabora com a revista há tantos anos que já mereceu amplamente a distinção de «sócio correspondente» que a Ordem dos Engenheiros decidiu atribuir-lhe. Tal como nos outros livros, sucedem-se aqui histórias curiosíssimas da história da Matemática ou problemas matemáticos que, por uma razão ou outra, nos prendem a atenção. A Matemática tem esta coisa extraordinária de não se desactualizar: os teoremas demonstrados por Euclides continuam a ser verdadeiros hoje.

Como contei no prefácio a Casamentos e outros desencontros (o autor volta neste livro ao tema dos casamentos e volta, vá-se lá saber porquê, a solicitar-me um prefácio), conheci o Jorge no ano de 1984 (portanto, há 38 anos), quando ele era tinha apenas 20 e ainda era estudante, e eu era um jovem doutorado acabado de regressar da Alemanha.  De então para cá, ele foi fazendo uma brilhante carreira: durante duas décadas, foi professor de Matemática no Instituto Superior Técnico e, desde há quinze anos, é-o na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde tinha feito a sua licenciatura. Concluiu o doutoramento em 1995 na área de sistemas dinâmicos em Warwick, sob a supervisão de Ian Stewart, o autor de tantos e tão interessantes livros de divulgação da Matemática, alguns deles saídos na Gradiva. Deu-se até a circunstância bastante original de o Jorge se ter ido doutorar depois de ter escrito um prefácio do livro do seu futuro supervisor.

O currículo do Jorge foi muito enriquecido pela sua presidência da Sociedade Portuguesa de Matemática e por um lugar subsequente no comité executivo da Sociedade Europeia de Matemática, onde atualmente é Vice-presidente. É o primeiro português a sê-lo numa sociedade científica, muito prestigiada, que edita um conjunto de revistas entre as quais se inclui a portuguesa Portugalia Mathematica, com longa tradição entre nós. Tenho a certeza de que Portugal está muito bem representado nesse areópago internacional.

Além dos sete livros publicados pela Gradiva, o Jorge tem um ensaio na Fundação Francisco Manuel dos Santos (Matemática em Portugal, uma questão de Educação») e é coautor de uma obra colectiva saída na IST-Press intitulada Matemática no Planeta Terra. Publicou ainda, em coautoria, um pequeno livro para crianças, Que número vem a seguir ao infinito?, na Reverso. Isto, claro, além dos numerosos trabalhos técnicos, em livros e revistas, que publicou internacionalmente. A sua especialidade dá pelo nome de «sistemas dinâmicos», a que se liga o que modernamente se chama «caos». Uma metáfora de caos é bem conhecida: o abanar das asas de uma borboleta o Brasil pode provocar um furacão no Texas.

O Jorge tem um conhecimento enciclopédico da Matemática, que excede largamente a sua área de especialidade. E sabe transmiti lo como ninguém. Tenho também a certeza de que o Jorge é o maior responsável pelo recente interesse de jovens e adultos portugueses pela Matemática. Os seus livros de divulgação da matemática têm sido verdadeiro serviço público, que só ainda não foi publicamente distinguido com um prémio porque Portugal é historicamente ingrato com alguns dos seus melhores.

No livro que o leitor tem entre mãos, o autor conta-nos, para além das aventuras matemáticos do referido casal britânico, a história do papa-matemático que governou a Igreja na mítica passagem do primeiro para o seguindo milénio da era cristã, fala de uma família de matemáticos suíços – os Bernoulli – que parecem contradizer a tese de que não há um gene matemático, do matemático francês Legendre que foi confundido com um seu homónimo, da relevância do chá com leite para o desenvolvimento da estatística, da invenção de um novo microscópio no tempo dos nazis, do modo como o célebre físico Feynman curou uma depressão grave, como Lorenz introduziu a teoria do caos (é dele o referido «efeito borboleta»), e como as mulheres estão finalmente a entrar na galeria das medalhas Fields, os maiores prémios matemáticos do mundo. Além disso, o autor explica quatro problemas matemáticos recentes : como optimizar processos de transporte, como fazer «gémeos digitais», como é um objecto com um só ponto de equilíbrio estável e um só ponto de equilíbrio instável, e como um matemático japonês se diverte a inventar «brinquedos». Estou em crer que os leitores se irão divertir ao conhecer estes temas que, tratados por outra pena que não a do Jorge poderiam ser considerados difíceis. Ele tem o condão de tornar não só inteligível como excitante qualquer tema de Matemática, por mais árido que ele à partida possa parecer.

Seja-me permitido destacar aqui - embora fale com um inevitável conflito de interesses - o papel verdadeiramente pioneiro de Guilherme Valente ao fundar em 1980 a Gradiva e a sua emblemática colecção «Ciência Aberta» que tantos e tão bons livros de Matemática e, mais em geral, de Ciência nos tem dado: não só os do Jorge, mas vários outros para cuja publicação o autor deste livro contribuiu com selecções, traduções e revisões. Poderia acrescentar outras colecções, como a entretanto finda colecção «O Prazer da Matemática», que o Jorge diligentemente dirigiu. O editor da Gradiva é um homem da Filosofia e das Relações Internacionais que percebeu no pós-Revolução de Abril, com notável clarividência, o papel das Ciências, incluindo a Matemática, na Cultura. Não foi há muito tempo que ainda se considerava a Matemática nos antípodas da Cultura, por esta ser entendida como meramente literária e artística. Isto sucedia apesar de, nos anos de 1940, o matemático Bento de Jesus Caraça ter mostrado, na sua tão notável como efémera colecção «Cosmos», que a Ciência era uma componente insubstituível da Cultura. Idealizada por Guilherme Valente, a colecção «Ciência Aberta», que já foi objecto de uma tese de doutoramento na Universidade Nova de Lisboa, tem mostrado que a ciência é, como bem disse Carl Sagan, uma «luz na escuridão» num «mundo infestado de demónios». Desejo ao sempre jovem Guilherme que prossiga na sua tarefa de espalhamento de claridade num mundo que, por vezes, parece preferir a obscuridade. Nós agradecemos-lhe – falo em meu nome e também decerto no do Jorge e de tantos outros -, e se Portugal não lhe agradeceu ainda o suficiente, só pode ser porque o país, como já disse, é ingrato para alguns dos seus melhores. Mas tenhamos esperança no futuro. Os livros, semeados por quem os soube fazer e desfrutados por quem os soube escolher, ficarão e o tempo se encarregará de fazer justiça.

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