segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Lição

Ler-te-ia outro poema de Cesariny,

Por tudo o que me fizeste sofrer a sério.

Riste quando a lágrima iniciou o pântano.

Riste do comboio dos tesos,

Que, rente ao abismo e ao ocaso dos álamos presos,

Eu tomava na margem do rio.

Riste das pedras imundas, chão

Até à porta do meu prédio

Onde palavras profundas me viam o coração.

Riste da minha confusão, do desatino,

Quando te disse que era obtuso e desorganizado.

Já tinha reparado, respondeste-me.

Só mais tarde soube que havia uma menina,

Que, próxima de mim, respondia às tuas indagações.

Riste da minha sempiterna magreza 

E da pobreza da alma-de-deus.

Riste da minha inércia, da minha indolência,

E só não riste do meu labor

Quando foi partilhado contigo.

Tinhas sempre escusas e afazeres.

Mas logo esquecias tudo e me subestimavas.

Eu tive de comer lume, como diz a mãe.

Era humilhação atrás de humilhação.

Doía-me o peito e recrudescia o teu riso.

Um dia, após dizeres para eu não te entender mal,

Que éramos apenas colegas de trabalho,

Eu passei a noite a tremer encostado à janela e ao rio.

Passei então a saber mais sobre a ausência e o homem,

E jurei que nunca iria abdicar de um dia poder sorrir,

Tremer e colocar o coração também para além do quarto.

De manhã, sem pudor, defenestraste-me à face

Que eu não tinha interior 

E que as minhas aulas deviam ser um sonho.

Num outro dia, para me molestares mais,

Quando me encontrava sozinho e com ar de abandono,

Disseste-me que andavas à procura de alguém distinto.

Eu sabia que as pessoas distintas estavam muito longe de nós

E não te disse nada.

Eu nunca reparei na tua soberba,

Nem na tua posição tão inclinada ao desprezo.

Confrontei-te com as mentiras.

Antes, já tinhas começado a tratar-me com indiferença.

Num pequeno supermercado, não tinhas reparado em mim,

Porque o teu filho estava inquieto e queria tudo.

E ele era todo mansuetude!

Depois afastavas-te, colocando em mim um olhar intimidador.

Eram, afinal, os alunos que te faziam queixas.

Todavia, no final do ano, disseste-me a sós,

Que tinhas gostado de trabalhar comigo,

Enquanto eu via de viés uma albízia mirífica.

Nunca tive tanta vontade de rir e morrer!

O que me melindrava mais eram as mentiras

E a tosse da velhinha que partilhava o apartamento comigo.

Não tinhas palavras, tinhas uma palavra: constrangimento.

Que prazer eu tinha em te ouvir falar em projetos!

Alguns eram sobre doenças mentais.

Então, abria um caderno e rabiscava 

Um trabalho interdisciplinar num instante.

Eu gostava era de dar aulas, num ambiente pacífico,

Enquanto uma miríade de professores desenvolvia projetos.

Italo Svevo ensinara-me onde encontrar o sabor da vida.

Dostoievsky ensinara-me que a vida

Vale mais do que a compreensão da vida.

O amor, o amor, aprendera-o com Boris Pasternak.

Com Lara e a estepe em flor,

Com o inverno e o elétrico.

Ah, como eu amara tanto Lara!

Mais tarde, Tchekhov ensinara-me o valor do trabalho

E Vítor Hugo, em Os Homens do Mar, o da verdade. 

Então, disse à mãe que queria o seu caminho da terra para o céu.

Que ela encontraria os olhos azuis do pai repletos de alacridade,

Mas não encontraria as duas lágrimas,

Nem as últimas forças de sua mão fria nem a minha mão.

Então, disse à mãe que o meu rosto tinha de estar longe dessa colina.

Nessa altura, alguns professores começaram a virar-me as costas,

Porque havia alguém do meu barro que não o sentia

E porque tu contavas a minha vida no seio da escola. 

Então, disse à mãe que não era exímio.

Era incomum e infeliz.

Por isso, um sete era para mim um sete e não um quatorze

E um quatorze era uma alegria tão desmesurada como imerecida.

Riste também do tamanho dos meus poemas

E da sua conspícua inanidade.

Nunca quis ir pela mania do tamanho e do prazer.

Como te disse, eclodiram penas e amargor das calúnias,

Onde se sente a vida mais perto e mais longe.

Riste, quando te falei da precária saúde de que padecera

(o maior erro da minha vida!)

E que tinha receio de voltar a manifestar-se sob alta pressão.

Então, irradiavas uma compaixão sem centro:

Corrias os estores das janelas para a luz me beijar o rosto.

Depois, e de forma inclemente e fria,

Serviste-te dos meninos para me obstruírem o pensamento,

Para se increparem diante de mim e eu perder as estribeiras.

O meu peito cederia e eu teria de partir do monte.

Desse belo monte que se chama Cardo de Ouro. 

A boca ardia-me, línguas mordiam-me no peito,

Os miúdos chamavam-me maluco, 

O peito tremia-me e tremiam-me as mãos.

Prestes a desmaiar, sentava-me num banco,

Encostava a nuca à parede,

E, com denodo, erguia a cabeça.

Despontaste o bulício para que eu partisse mais cedo da colina.

Ainda me lembro do teu júbilo,

Quando eu parti no início daquele agosto.

Disseste, então, com um sorriso, que moravas no prédio defronte,

Que eu merecia ser feliz,

Que tinhas deixado muito a desejar

E que nos cruzaríamos de certeza noutra vida.

Eu até acreditaria nisso, se não fosses tu a dizê-lo.

Nunca pensaste no meu regresso, mas a verdade,

Para mim, vale mais do que a vida.

Eu queria saber toda a verdade.

Continuei no quarto que fora de um palhaço e de um padre.

Tive a sorte e os santos comigo para o encontrar sem ninguém.

Mas o inimaginável e surreal ainda estava por vir:

O rumor de que eu te andava a perseguir.

Nunca te perseguira: o remorso é que te perseguia.

Eu queria o futuro, não queria o amanhã.

Mas, entretanto, nada se alterou.

Então, disse à mãe que retornaria à missa, mas, ao quarto e ao monte,

Não retornaria mais.

Ainda assim, continuei em busca da verdade.

Os homens eram aí exímios,

Como tu eras, menina dos projetos grandiloquentes,

Dos tubérculos que não medravam,

Da Ribeira Azul, que nascia sob as ruínas de uma abadia,

Onde revolvi pedras e larvas.

Após uma semana, estavas com o disco a medir a transparência da água,

Enquanto eu olhava para o fundo e olhava para ti. 

Aí, os homens eram sábios, petulantes,

Conheciam impérios que por aí passaram e pereceram.

A verborreia, de alguns desses homens, enojava-me!

Então, disse à mãe que queria a sua estrada, o seu caminho,

Tão próximo do entardecer,

Que não queria estar com os exímios,

A ver o pulmão de um porco a boiar na água de uma cisterna

E as mãos ensanguentadas de sangue.

Então, disse à mãe que não queria ver os meninos

Com o dedo indicador exangue

A aproximar-se do globo e de uma miríade de mapas.

Nesse sítio, não havia misericórdia nem coragem. 

Só altivez e um monte onde adivinhava o arco-íris,

Depois de erguer um estore.

Que se lixasse o Oi perto da face

E o Boa Noite para todas as horas longe de mim.

Colocaste-me, depois, um processo por difamação.

Eu perdi todo o dinheiro que até então ganhara.

A minha coluna, doente, teve de voltar às vinhas.

Apesar disso e com pudor, salvaguardei muito a tua vida.

Até hoje, nunca me pediste desculpas. 

Este poema será entregue ao coração de quem ama,

Como a estrada começa,

Como a mãe que caminha com os olhos postos no céu.

Este poema será entregue a quem procura o amor,

Sem pensar noutro conceito que afaste a acédia e a tempestade.

Este poema será entregue a quem procura o sonho inteiro e a verdade, 

E não apenas o desafogo.

Como pode agora a minha alma soletrar o teu nome de fora para dentro?

Por que tive de passar por isto, Deus?

Será que foi para não acreditar no deslumbramento?!

Será que foi para fazer o caminho com o pó de tudo isto

E alcançar o que quero?

Eu que  ainda continuo a querer o longo caminho da mãe 

Quase a cumprir-se.

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